Eugênio sempre teve medo de altura. Desde criança nunca se aproximava de janelas, grades, balaustradas, terraços, varandas e quaisquer beiradas. Davam-lhe fortes vertigens. Sentia primeiro um leve torpor ao ver-se aproximando do precipício. Logo a tontura tomava conta e o fazia cambalear, trôpego, até começar a andar para trás.
Eugênio hoje tem 47 anos de idade e ainda sente a mesma sensação de engulho em tais circunstâncias. O suor que espoca milhares de gotículas na sua testa é um velho conhecido. O esbambear das pernas, o tropicar dos pés hesitantes, o ressequir das mãos, tudo lhe é familiar.
Mas Eugênio agora não tem escolha. Busca chão e chão não há. Busca recuo e não consegue enviar a mensagem do cérebro às pernas. A garganta está seca, mal consegue engolir a saliva rara que lhe amarga a boca. Eugênio sabe que chegou a hora de encarar o vazio. De deixar-se levar alto abaixo, rasgando o vento, fardo humano, em direção ao seu destino. Eugênio sabe que cairá. Não sabe quando, mas sente o corpo atraído por uma espécie de vácuo. Tenta resistir, mas o abismo convida, atrai, seduz.
Eugênio limpa o suor da testa com as costas da mão. Precisa assumir o controle de seu medo. Respira fundo. Pensa, pela primeira vez desde que começou a se aproximar deste boqueirão, em Brígida. Deseja a mão dela, macia e morna, a agarrar a sua. Chega mesmo a sentir o seu hálito e o arrepio bom que ele lhe provocaria. Deixa escorrer as primeiras lágrimas. Logo é tomado por um pranto convulsivo e doloroso. Brígida!
Eugênio cobre o rosto com as duas mãos, limpa as lágrimas com violência e se põe ereto, rígido, em silêncio. Ouve o silvar dos ventos a lhe roçar os cabelos e vê a dança graciosa das nuvens que por ali vogam. Como que tomado de encanto, agora sorri. Ele vê um menino que brinca com o seu pião de lata de tiras coloridas. Diverte-se com as formas e cores que se misturam enquanto o brinquedo libera o seu zumbido metálico e mavioso. Revolta-se quando lhe some o pião das mãos e logo se distrai ao sacudir o chocalho de plástico azul claro que parece ter pequenos grãos de areia em seu bojo. O som das minúsculas pedrinhas no interior do artefato lhe traz cheiros, sabores, sensações que, de tantos, lhe sufocam. Um leve atordoamento faz com que seus olhos se fechem. De onde vem a música, doce e misteriosamente próxima? Esse embalo afável e indolente que neste instante conforta e refaz? De onde o gosto meloso que tão subitamente sacia?
Eugênio imagina onde está, adivinhando percepções e revisando lembranças. Sente um abrandamento no medo e uma nesga de conforto invade seus sentidos. Eugênio entrega-se sem nenhuma resistência a esta comovente e deliciosa mistura de todas as suas melhores recordações. Diverte-se com este inebriante estado de como sem quando. De estar sem necessariamente ser. De deixar-se levar pelo inexistente caminho. Sem rumo, sem roteiro, sem a prisão rígida da cronologia. Eugênio não sabe se é antes, durante ou depois. E nunca esteve tão seguro de si. Encara o nada com tanto gosto que parece entender finalmente ter vindo dali. O temor foi esquecido, as lembranças foram anestesiadas, os desejos parecem mais acolhidos do que em nenhum outro instante de sua vida. Brígida iria adorar estar ali, com ele. Iria ver com orgulho o seu homem livre de seus medos, de suas malditas fobias. Não teria despencado inapelavelmente de suas mãos flácidas e reticentes para o encontro com a morte. Ele, paralisado, diante do corpo inerte no calçamento. Bastava ter corrido, agarrado o braço, a mão. Mas a altura, a altura o assustava por demais. Eugênio está livre da ideia de tempo, de espaço e, especialmente, livre da noção de altura. Havia espiado a vida de longe, sem jamais arriscar chegar-se até a beirada. Agora, finalmente, saberia o que se pode ver de lá.
Muito bem escrito o conto, mas para mim faltou algo. Achei bonito, sim, mas talvez eu procure mais conflitos nas leituras que faço… E não conflitos como o do personagem, não sei se foi possível compreender, mas só justificando, que apesar de estar bem escrito, para mim não funcionou. Parabéns pelo texto, enfim. 😉
FO-DA!
Puro Bernardo Carvalho, esse texto! E isso é um elogio imenso, creia-me. A catarse final, quando enfim descobrimos o motivo pelo qual o personagem vai cometer suicídio, é sublime, cara, sublime! Faz todo o sentido, impacta e ecoa como um grito dado à beira de um abismo. Eugênio encontra, na morte (que se dá pela culpa que sente por não ter podido salvar a mulher, justamente devido a sua fobia), a libertação do temor que lhe privara do desfrute da vida. É como se se desse conta de que, afinal, do fundo do poço se vê a lua. “O resto é silêncio.”
Ganhará meu voto com certeza! Parabéns e muito obrigado ao autor ou autora!
gostei. bem escrito, leve. parabens
Muito bem escrito e com uma perspectiva interessante de viagem no tempo. Até pela natureza da viagem eu tiraria a frase “Eugênio não sabe se é antes, durante ou depois”, pois me parece inverossímil que alguém que está fazendo o que ele está não possa ter aquelas informações (não pelo menos em relação às lembranças, embora pudesse ser em relação “à viagem”. Me parece a primeira opção). Ou talvez dizer que ele já não se importava se…
Sei lá, detalhe bobo num ótimo conto!
Um conto muito bem escrito, bonito, poético. Gostei da maneira como o tema foi abordado, sutil, sensível, uma viagem no tempo pela qual, dizem, todos passaremos. Vejo que o tema foi utilizado sem limitar o autor, pois a história vai bem além. É curto, direto, conciso, perfeitamente adequado à proposta do autor. Ótimo trabalho, parabéns.
Achei que a divisão dos parágrafos prejudicou a leitura, mas no geral o conto manteve seu efeito. Para um concurso onde a maioria das histórias se caracteriza por “acontece tanta coisa”, a economia de ação funciona como um contraponto. Dava para o Lars von Trier filmar uma trilogia com esse conceito.
As ideias estão bem concatenadas, não consigo achar um falha no texto. Achei interessante, mesmo. Não me incomodo com a repetição do nome, que acaba por dar ritmo ao conto. Me parece que a estrutura do texto vai afunilando até chegar ao final, talvez pela própria premissa do conto.
Muito bom! O texto está muito bem editado, a ortografia está corretíssima e a narrativa, curta e precisa. Gostei muito da revelação final dos motivos do suicídio… apesar de bem sutil, pelos comentários percebi que nem todos entenderam. Se não estou ficando louco, a mulher de Eugênio estava a cair de um lugar alto, mas ele não pôde salvá-la por ter medo de altura, não foi? E por conta disso ele resolveu lutar contra o próprio medo e encarar a morte da mesma forma que a sua esposa, não é isso? Ao menos foi assim que li o final do conto.
De qualquer forma, parabéns pela capacidade de desenvolver uma história tão interessante e envolvente em pouquíssimas palavras.
Yeap! 😉
Só espero que ninguém leia o seu comentário antes de ler o conto… 😀
Todo conto precisa de , em alguma parte, qualquer parte, um “soco/soquinho/socão” na fuça do leitor. Este conto é uma tábua reta ao leitor, bem lustrosa, mas cadê a importância de contar essa passagem (no subjetivo criativo)?
Curto, mas mandou o seu recado. O fim foi bom e fácil de entender com um pouquinho de esforço. Só forçou um pouco no que toca o tema. Ainda assim, bom.
Sobre a história… Um texto montado diante do tempo que passa diante dos olhos. Não se trata de uma viagem no tempo ao pé da letra, me deixa até na dúvida se valeria dentro do concurso já que a idéia de viajar no tempo não pode ser associada a lembranças. Ainda assim, aceito. A história em si é muito boa: bem escrita, com um narrador onisciente que quase mergulha na mente do personagem. Talvez, por isso, o texto ficasse ainda mais forte se fosse em primeira pessoa. Mas continua bonito, independentemente.
Sobre a técnica… Muito bem escrito, delicado, ortografia corretíssima. Um detalhe que, na minha opinião, vale ser revisado é o abuso do nome “Eugênio”. Inclusive, todos os parágrafos são iniciados pelo nome dele, não sei se intencional (apostaria que sim). Mas o efeito não agradou tanto. Eu até mesmo acho que poderia suprimir boa parte das vezes em que o nome dele é citado, e colocar apenas uma vez no texto inteiro, lá no final. Como se, depois de tanto se autoavaliar e permitir a identificação do leitor, o personagem finalmente tivesse nome e fosse alguém.
Sobre o título… Simples mas efetivo.
Gostei da escrita, gosto muito de textos assim. Mas a história em si não me envolveu
Tenho que repetir alguns colegas. Texto extremamente elegante, de estilo romântico, talvez para mim a maior ousadia do autor. É muito dificil ser um escritor classico hoje em dia. Mas o autor provou o contrário. Maravilhoso! Parabéns!
Muito interessante as exposições da ideias.
O conto está bem escrito, mas não me fisgou. Não sei nem como criticá-lo, pois é um tipo de texto que costuma agradar muita gente. Não sei, realmente não sei. O que posso dizer é que, assim como no outro concurso, no conto que um morto descrevia seu enterro, a construção me parece correta demais, como se alguém não quisesse cometer deslizes, não quisesse decepcionar o leitor e, nessa tentativa, acabou por extrapolar no cuidado, deixando o texto meio achatado.
Rodrigues, diz logo que não gostou, pow! Rs! Gosto não se discute (as vezes até se lamenta, mas não se discute!). 😀
Se eu externasse aqui alguns dos principais Clássicos que eu simplesmente não suporto, certamente, seria “convidado” a me retirar deste blog com minha integridade física, virtual e até mesmo espiritual correndo sérios riscos…
😉
Fala, Ricardo. Mas não é que eu não tenha gostado, mesmo. Quando o texto realmente não me agrada, busco elencar todos os pontos que me desagradaram, mas nesse não há tantos. Apenas uma questão de estilo, sei lá, por isso não fui tão “murrinha”, rs.
(rs!) 😉
Conto muito bem escrito com escolha cuidadosa das palavras. A narrativa no tempo presente puxa o leitor para o enredo, aproximando sua atenção ao clima de suspense. Gostei.
Obrigado pelo comentário. Escrevemos para ser lidos, mais que tudo. Mas também para saber como fomos lidos. Abraços
Elegância, essa seria a palavra se me pedissem para resumi-lo.
Não se o porquê, mas no inicio pensei na viagem do tempo de Homens de Preto 3, quando o agente J precisa pular do alto do prédio para fazer o dispositivo funcionar.
O conto é muito mais que isso, o Gustavo traduziu o meu sentimento ao final da leitura: “… a tradução em palavras do velho chavão de que no momento da morte a vida passa diante dos nossos olhos. “.
Vale leitura!
Seu comentário me encoraja e estimula. Obrigado.
Achei muito bem escrito, com uma história continua e fácil de se ler, porém não foi algo que me atraiu tanto.
Obrigado pelo conetário honesto. Sua crítica será considerada.
Achei o texto correto, embora este não tenha me empolgado. O nome “Eugênio” foi um tanto repetido demais em minha opinião, e também penso que o conto – muito curto – falha em nos envolver com o drama de Eugênio.
Seu comentário servirá de parâmetro e é importante para miom. Obrigado.
Seu comentário servirá de parâmetro e foi muito importante para mim. Obrigado.
Uma concepção totalmente original em uma escrita muito elegante. Excelente.
Um conto extremamente bem escrito e, como observou o Ricardo, original no momento em que se afasta do estereótipo que caracteriza o tema viagens no tempo.
Achei bacana a tradução em palavras do velho chavão de que no momento da morte a vida passa diante dos nossos olhos.
Bem executado, bem escrito. Fiquei um pouco frustrado no fim porque queria mais.
Parabéns.
Agradeço o seu comentário positivo e espero poder participar mais vezes de desafios como este. Abraço
Gostei bastante! 🙂 Mais um conto para o raro roll dos que ousaram retratar o assunto-tema de forma imune às já batidas viagens temporais a lá Back to the Future e cia. Já sai de cara à frente da maioria, pelo menos no quesito ousadia! 😉 E nem digo em relação a originalidade, pois aqui a viagem temporal é tratada de forma até que esperada (a vida toda esperada…), mas principalmente por saber dosar exatamente ousadia com o (in)consciente coletivo.
O autor ousou também por utilizar o tempo presente na narrativa, trazendo ao conto uma certa dose de tensão e incerteza que apenas engrandecem ainda mais o “grand finale”, mesmo que já antecipado pelo leitor lá pelo meio do conto. Contudo, devido a esta magistral escolha da regência verbal, neste conto, a certeza é justamente a primeira a morrer…
Parabéns pelo trabalho!
😉
Agradeço muito o seu comentário elogioso e estimulante. Obrigado!