— Minha mãe não aguentou. Foi logo no começo — ela disse. Seus cabelos voavam sobre seu rosto.
— Que foda… — pausou e jogou o resto do cigarro na rua — Meu pai quis levar a família toda junto quando decidiu que não valia a pena.Sempre foi cabeça dura, achava que o que sabia era uma verdade absoluta.
— E ele sabia muita coisa?
— Ah, nossos nomes, um pouco de matemática e português, essas coisas, mas nada muito profundo. Às vezes imagino ele aqui, vendo tudo isso. Acho que ele diria que estávamos imaginando coisas. Não admitiria que isso fosse possível.
— Sério?
— Não. Não sei o que ele faria. Acho que se mataria de novo, então… — e ele deu com os ombros.
Os dois pararam pra pensar um minuto, respirando com dificuldade. Estavam em pé, apoiados num muro que tinha conseguido ficar quase por inteiro. Ela tinha os braços agarrados aos tijolos como se temesse cair, enquanto ele só encostava os ombros.
— Acha que é o que devíamos fazer?
— O que?
— Nos matar.
— Ah, pra quê? Eu quero ver até onde isso vai.
Algo caiu em algum lugar, fazendo muito barulho. Muito.
— Que foi isso?
O homem espiou pela lateral do muro.
— O Cristo.
A mulher riu.
— Uma maravilha do mundo e não aguenta nem isso?
— Acho que não — o homem riu também — a humanidade não parece tão foda vendo daqui.
— Bom, se parar pra pensar, a gente é melhor que quase todo mundo, eu e você. Evolução é sobre sobrevivência, não é? Estamos vivos, eles não…
— Gosto de como você pensa — e o homem sorriu — e gosto de você — e passou a olhar para ela — Queria ter te conhecido antes.
— Acho que não daria certo — ela o olhou também — O fim do mundo muda as coisas.
— É… — e voltaram a encarar o nada — Muda tudo.
E novamente pararam, pensativos. A terra começou a tremer.
— Droga.
Afastaram-se do muro, que finalmente caiu, e seguraram o chão. A maioria dos prédios já tinha desabado, então estavam seguros, por enquanto. Parou.
— Estão ficando piores. “No Brasil não tem terremoto”, tá bom.
— Pensei numa coisa agora — o homem disse enquanto se levantavam — acho que todo mundo era como meu pai. Os cientistas, os religiosos, eu e você… todo mundo tinha tanta certeza do que falavam e defenderiam essas ideias até o fim. O que fizeram, na verdade…
— É… sempre teve uma voz dizendo que ninguém sabia de nada, que a gente devia parar de achar que sabia alguma coisa.
— Eu sempre ouvia essa voz, mas confundia com fome e acabava numa lanchonete sem muito no que pensar. Como é seu nome?
— Fernanda. E o seu?
— Mateus. Se bem que a gente pode se chamar do que quiser agora. Que tal… Rei e Rainha? Do mundo?
— Por mim tudo bem.
Sorriram. Um carro explodiu na esquina.
— Como acha que aconteceu, Rei?
— Ah, eu li num jornal que era uma mistura de tudo, Rainha. Tudo o que podia dar errado aconteceu ao mesmo tempo.
— Que azar.
— É…
— Aquele homem está vivo?
— Que homem?
— Ali.
Ao lado do fogo da explosão, algo parecia se arrastar pelo asfalto. Os dois foram ajudar.
Levantaram-no do chão e o levaram até uma sombra, causada por uma pilha de concreto e vidro e pelo sol que já se deitava no horizonte.
— Quem… quem são vocês? — o homem perguntou com dificuldade.
— Somos os reis do mundo — o homem disse. A mulher concordou.
— Reis? Ótimo… olhem essa bagunça. Vocês… vocês não vão consertar?
Ele tinha graves ferimentos e estava muito sujo.
— Estamos de férias, entende? — a rainha disse — mas faremos o melhor, em breve.
O homem ferido riu, com sofrimento.
— E tudo vai voltar ao normal?
— Claro. Um normal meio diferente do que tinha antes, mas um normal — o rei assegurou.
O homem sorriu, já de olhos fechados, e nunca mais os abriu.
— Coitado… — disse Fernanda, tomada de súbito por uma intensa sensação de luto.
— Calma, pelo menos ele morreu sorrindo. É mais que muita gente…
E ele a abraçou e ela chorou em seu ombro, enquanto ele tentava guardar suas próprias lágrimas.
— A gente devia parar de fingir que está tudo bem — ela disse entre soluços.
— Nada está bem… mas desespero não vai melhorar nada.
Ela chorou por mais tempo, mas concordou.
— Não estamos tão mal assim, não é? — ela disse olhando-o através das últimas lágrimas — somos os reis do mundo e tudo mais.
Houve alguma movimentação na rua ao lado. Vários homens, com muitas armas. Alguns vestiam coletes à prova de balas e usavam o brasão da polícia, outros tinham roupas velhas e rasgadas, além de uma camiseta suja que cobria a região do nariz e boca. Vinham do morro, decerto.
— Ei, ali tem dois! — um deles gritou, apontando, mostrando para o grupo onde Fernanda e Mateus estavam.
Um policial se aproximou enquanto os outros ficaram olhando.
— Estamos indo pro porto, alguém disse no rádio que tem um barco lá esperando sobreviventes. Vai nos levar pro norte, onde as coisas devem estar melhores.
Os dois se olharam, enquanto o policial falava.
— Vocês vêm ou não?!
— Não — responderam juntos.
Com uma expressão confusa ele saiu, e com um grito todo seu grupo seguiu sem eles.
— O que tem no norte?
— Mais destroços.
— Imaginei.
E os dois se levantaram e começaram a andar pela rua, sem muito que fazer. Encontraram uma lanchonete quase intacta, tirando a parede da frente. Lá pegaram alguma comida e se sentaram conversando e saciando a fome.
— Não conte a ninguém, mas não planejo pagar por isso — o rei disse e os dois riram.
— Bom, que tal um brinde? Ao fim do mundo? — a rainha propôs, segurando seu refrigerante.
— Ao fim — tilintaram.
Mas eles ainda viveram por vários dias, meses e anos.
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Este conto foi escrito por Caio Pereira. A publicação neste blog foi devidamente autorizada pelo autor.
🙂
Maravilhoso!
Eu gosto muito quando o conto se desenvolve em diálogos. Agiliza a leitura. O cenário de fim do mundo foi amenizado pelo bom humor dos personagens sobreviventes. Rei e rainha do mundo em destroços. Interessante.
interessante por ser diferente, nos deixa espaço para imaginar mais do que está contado. não senti que ficou clara a viagem no tempo, mas gostei. parabens.
Uma visão tão serena… gostei muito do conto!
Parabéns!
Obs: belíssima imagem!
Muito Bom!!! Parabéns..
Fantástico. 100% obscuro, eu diria mais. Mas quem disse que o facho de luz estava voltado para os “efeitos” de um “cataclismo”? Talvez se a luz houvesse sido direcionada pro outro lado, o coração humano teria mergulhado nas sombras.