EntreContos

Detox Literário.

O Grande Talvez (Sandra Datti)

raffaA neblina espessa se entranhava pelos arbustos e flores do jardim, assim como pelos meus pensamentos sem paragens. Pouco a pouco, o banho dos raios mornos da manhã desabrigava as gotas de orvalho, ora fazendo-as evaporar para sanar a sede do céu, ora desovando-as na boca úmida da terra. Sentada à varanda, acomodava meu corpo enfraquecido sobre a cadeira de rodas – recente companheira -,sem desabotoar meus olhos das divagações que se perdiam na paisagem meio urbana, meio bucólica, onde tinha vivido toda minha infância. Sobre o chão frio, minha amiga migrava os pensamentos para uma edição antiga de O Lobo da Estepe, de Herman Hesse, encontrado no velho sótão, pelo meu avô Pedro. Era Lúcia, que todos os dias me trazia a primavera, com seus vestidos de flores e borboletas coloridas, e os cabelos em forma de tranças descendo pelos ombros. Eu, Katherine, sentia-me seu avesso: se Lúcia era a aura primaveril, eu era o inverno áspero, rigoroso, mortal. Somente o gorro cor de céu azul sem nuvens e o cachecol também azulado quebravam minha aura espessa de menina sem riso.

Mas não eram somente as limitações impostas pela doença debilitante que me aprisionavam numa lápide fria, claustrofóbica, de dúvidas, medos, querências e impotência; mas o fio roto com que minhas quinze primaveras foram tecidas.Vivia com o trauma da lonjura de um rosto materno que se apagava gradativamente da memória, e da promessa de um pai que voltaria um dia para me levar para casa.

A cada pensamento, a sensação de desalento e uma falta de ar me preenchia os ânimos. A bombinha sempre à mão me dava alguma razão a mais para desalojar os por quês. Meus dedos sagravam frequentemente nas extremidades, causando-me uma dor insuportável. Já era comum a presença da avó Laura me observar da janela com seus cândidos olhos de pesar e pernas prontas para me acudirem. Com o passar dos dias, as forças iam se esvaindo, e via isso nitidamente em seu olhar. Os médicos, deseperançosos, desobrigaram-se aos cuidados. Devia morrer em casa”- quase podia escutá-los.

Meu único lenitivo era Lúcia, que escutava minhas queixas e muitas vezes me trouxera à tona, quando os mergulhos se faziam demorados.

Ao voltar de mais um mergulho, meus olhos vidrados estremeceram. Sentia o corpo com o peso de todos os “nãos” do mundo. Todos presos dentro de mim, como velhos barcos encalhados numa eterna noite penumbrosa. Lúcia parou a leitura e veio em minha direção. Ajudou-me a me desvencilhar do cachecol. Puxei para fora da grossa blusa a corrente que trazia ao pescoço e com ela três pequenas chaves: ouro, prata e bronze. Apertei-as com força, e as pontas dos meus dedos se puseram a sangrar. Lúcia pegou um lenço bordado com pequenas flores e me ajudou a estancar o sangue que vertia pelos poros.

– Meu tempo está se esgotando, Lúcia… Preciso ir até lá… – e suspirei pesarosa. – Ele virá conosco. Concordou em me acompanhar… – e perdendo-me em pensamentos como se caísse em águas revoltas, lamentei o amor que o amigo sentia. Um sentimento natimorto…

Ambas sabíamos que Júnior não poderia ir muito além.

– E você, Lúcia… Vai até o fim comigo?

– Vou. – respondeu sem titubear. – Não tenho outra escolha, lembra?

– Sou uma companhia tão ruim… – concluí quase chorosa – Convivo todos os dias com os mortos apodrecendo dentro de mim. Na verdade, tenho um cemitério na cabeça. Às vezes, parece que estou em outro lugar, num caixão fechado, aguardando ansiosa o abocanhar da morte – duas lágrimas desceram frias de meus olhos encovados – A impotência, Lúcia, é a pior dor que existe… Ela limita, reduz, espreme a gente dentro do vazio. Daí vêm as doenças da mente…

Lúcia me abraçou com ternura. Quisera sentir a eternidade sem o peso do tempo, mas do hiato, da pausa infinita: como queria morar dentro dessa dimensão atemporal e sonhar…

– As pessoas não deveriam desistir de si mesmas. – respondeu, com seu olhar de primavera.

– Como é bom ter você ao meu lado, nesse momento… Minha amiga invisível… Júnior também é um bom amigo; mas não deveria amar alguém como eu. Sei que está extremamente impressionado, mas preciso dele…

Lúcia e eu fomos ao velho Cemitério da Filosofia, que ficava ao final da rua, onde eu morava. Cabisbaixa, sentia-me constrangida com o auxílio da cadeira de rodas. Júnior deveria aparecer por ali a qualquer momento. Quanto mais aguardava, mais sentia algo a me queimar por dentro. Quando notei a presença do amigo, olhei para Lúcia e percebi meu rosto em brasas. Cumprimentei-o com um abraço e senti que ele se demorou nesse laço mais do que o normal. Acho que estava com medo de algo. De minha fragilidade, de me perder, talvez…

Engoli seco. Sentia-me em pânico, mas tentava esconder esse segredo de todos. Tremia. Minhas unhas voltaram a sangrar. Rapidamente, peguei a toalhinha que estava no bolso da blusa. E chorei convulsiva antes de passar pelos velhos portões de ferro. Chorava pelo carinho dos avós, pelas incertezas, pela vida fugaz, pela incompletude, pelas cinzas de meus mortos. Subi sobre o muro de pedras que construíra para não ultrapassar os limites da sanidade. E vi somente os céus distantes e um imenso abismo abaixo de mim.

Júnior, pacientemente, ajudou-me, passando um lenço pelo meu rosto com delicadeza.

– Desculpe-me, por fazê-lo passar por isso… – lamentei entre soluços – Não poderia pedir para mais ninguém.

– Se quiser, podemos voltar outro dia, Katherine… Você não precisa…

– Mas eu quero, Júnior…

O sol imponente pelo céu azulado realçava um clima de paz e harmonia com a natureza que ali vivia. A rua central, não muito larga, dividia o velho cemitério em duas faces, ambas ladeadas por campas mais ou menos antigas e ruas paralelas entre elas. Em algumas lápides, podiam-se notar musgos, pequenas samambaias, flores murchas e o silencioso abandono das almas. “Será que estariam ainda por ali?” – pensei espontânea. No meio da via principal, jazia uma capelinha simples de concreto e cor encardida, em cujo interior ficava o velho zelador Pité e seu cachorrinho, Ulisses, velhos conhecidos de meus avós. Pité era um homenzinho arqueado, muito magro, de pele crivada de rugas e queimada de sol. Ele notou nossa presença e coçou a cabeça.

– Procuramos o mausoléu da família Versutti. – antecipou-se meu amigo.

– Como se chama, filho? – perguntou o velho, com uma flexão acentuada na voz.

– Me chamo Dante, e essa é minha amiga Katherine. O mausoléu pertence à família dela e…

– Sei quem é a menina. – cortou o velho, após uma baforada do cachimbo que trazia à boca. E prosseguiu com uma autoridade que causou estranheza – A neta de Laura trouxe as chaves?

Puxei a corrente para fora da blusa cinza.

Então vamos até lá… – mas antes entrou no pequeno escritório improvisado da capela e trouxe algo enrolado em uma sacolinha de supermercado.

O cãozinho esqueceu o sono e se levantou faceiro. Abanou o rabo para nós e seguiu o velho Pité com uma alegria que parecia inquebrantável. A rua principal do cemitério prosseguia atrás da capela e as campas e mausoléus dali para trás pareciam muito antigos. O mato ganhava viço em cima de algumas lápides. Velhas fotos ainda se incrustavam nas grossas paredes revestidas de cerâmica. Minha mente analisava tudo e não parava de perguntar: “onde estariam agora?” A rua principal terminava num muro crivado de gavetas, a maioria fechada. Pensamentos de que algumas pudessem estar me esperando, fez-me fechar os olhos apertadamente.

Atrás dos muros, havia dois montes verdes, não muito altos, que ao longe pareciam fazer parte do lugar. No fim do cemitério, o último mausoléu era o da família Versutti. Era muito antigo, de um azul-escuro desbotado. Havia vários nomes escritos na face anterior. Muitos, incompletos, com fotos esmaecidas, parecidas com fantasmas. Por dentro, eu tremia. A cripta acinzentada dormia no esquecimento total. Pequenas plantas empurravam as velhas cerâmicas para baixo. Algumas jaziam despedaçadas, outras ainda se colavam às paredes como se desafiassem o tempo. Pareciam-se comigo.

Tomando coragem, virei-me para Júnior, sem tirar os olhos de Lúcia, meu farol…

– Você pode ir daqui, se quiser Júnior… Não posso obrigá-lo a seguir.

– Não desisto fácil das coisas, Kath. Até aonde puder, eu irei… Com você… Por você… – disse, sem a intenção de esconder o que lhe passava na alma.

– A chave de bronze. – pediu Pité, retirando o cachimbo já apagado da boca. – As outras duas, usará lá dentro. – E a sua amiga, – disse, olhando para Lúcia -, escute-a, para não se perder.

Júnior ficou paralisado de espanto, mas nada disse. Não havia mais ninguém ali.

Katherine assentiu com a cabeça e agradeceu ao velho com o olhar. Meu coração acelerava cada vez mais. Sentiu as palmas das mãos e dos pés suados. O velho abriu a porta e uma brisa gélida com forte odor de coisas sem vida, histórias em ruínas, mofo e poeira baforou nossos rostos. Ulisses correu para trás e se pôs a latir assustado a uma distância que lhe dava alguma vantagem para uma fuga, se necessária. Lúcia pegou uma máscara que cobriria parte de meu rosto e prendeu-me nas orelhas. Júnior, distraído, mostrou-se surpreso quando me viu com a proteção. Mas não disse nada.

– Já lhe explico. – tentei confortá-lo.

Pité pediu que entrassem. Retirou da sacola de plástico uma lamparina muito velha e a acendeu, entregando-a ao rapaz. Os três entramos. Ulisses latia assustado. O velho resmungou algo que não parecia fazer sentido a Júnior: “Não coma nada do reino dos mortos.” E sem dizer mais nada, fechou a porta, deixando-nos na penumbra.

– Será que esse velho não é doido? Acho que nos trancou aqui. – resmungou nervoso.

O rapaz elevou a velha lamparina e ficou pálido, quando finalmente viu Lúcia.

– Não tenha medo, Júnior. Lúcia é minha amiga. Ela nos guiará pelo caminho.

Enquanto os dois se olhavam. Eu analisava tudo ao redor. Havia umas gavetas com fotos muito antigas. Alguns nomes já haviam desaparecido. Existiam dois lóculos mais recentes, um sem foto, ainda no reboco de cimento, e o outro, era o de Samantha, minha mãe. Senti as lágrimas caírem silenciosas. Aproximei-me e alisei a fotografia da mãe, como se ela pudesse sentir meu toque.

Os olhos de Júnior se imantaram aos de Lúcia. Ainda assustado, ele os sorveu por alguns instantes. Aqueles olhos, mesmo permeado de penumbra, “onde já os teria visto antes?!” Parecia querer dizer aquela feição interrogativa. Sem perceber, procurou meu ombro. Apertei sua mão com força.

– Por favor, ilumine aqui, Júnior. E dê-me a chave de prata, Katherine. – pediu-me Lúcia parecendo tranquila. Deixando-me a pouquíssimos metros para trás, na semipenumbra. Ainda receoso, Júnior iluminou o local próximo à fechadura e ajudou Lúcia a empurrar a grossa porta que se abriu após um creck. Depois de alguns segundos, mais escuridão entrou como uma brisa fria e úmida impregnada de odores mais fortes de excrementos e matéria em decomposição. Havia uma escadaria que descia até um rio subterrâneo vaporoso.

– Você vem em meu colo, Katherine. – disse-me o amigo, arrumando cuidadosamente a máscara sobre meu rosto. Eu podia ler o que se passava em seus olhos mesmo com tanta escuridão presente.

– Vim procurar… – respondi, lendo os pensamentos do amigo.

– Procurar o quê, Katherine?

– Eu não sei… – respondi com as bochechas quentes. – Acho que um pedaço de mim está trancafiado em algum lugar escuro por aqui.

– Mas como o velho já a esperava? E ela? – Júnior levantou a lamparina e olhou para Lúcia.

– Não tenho uma resposta concreta… Tudo isso me veio como num sonho.

Lúcia se preservava em seu silêncio.

Júnior inspirou fundo, entregou a lamparina para Lúcia e me pegou no colo. Talvez pensasse que eu o contagiara com minha loucura. Cautelosamente, descemos os trinta e três degraus da escada estreita de concreto. Lúcia ia à frente e nos iluminava. Eu estava prestes a entrar em pânico, mas não deixei de sentir o calor exalado do corpo do amigo. Uma energia gostosa foi invadindo o meu. Uma sensação de bem-estar afogou meus temores por alguns instantes e me aconcheguei um pouco mais. Meu amigo sorriu em meio aos medos.

Exausto, Júnior parecia não se sentir bem. Lúcia desceu na borda do pequeno ancoradouro primeiro. Um remexer de águas foi se aproximando e um barco apareceu. Um ancião de traços fortes, nariz saliente, olhos esbugalhados e poucos tufos grisalhos atracou o barco pequeno. Percebemos que Lúcia dera ao homem duas moedas e sussurrou algo que não compreendemos.

– Júnior, – chamou Lúcia – Deixe Katherine no barco. Caronte irá levá-la e a trará de volta.

– Mas não posso abandoná-la. – respondeu, convicto.

– Daqui não poderá passar. – resmungou o velho – A passagem é das almas. Se vier com ela, não voltará.

– O caminho daqui para frente é solitário, Júnior. – explicou Lúcia. -Tem que ser feito por ela.

– Katherine não terá a menor chance se for sozinha…

– Por favor, Dante! – pedi com firmeza. – Preciso fazer a travessia só. – retirou a máscara e beijou os lábios do amigo.

Júnior me colocou delicadamente sobre o barco. Percebi que tinha rosto molhado em lágrimas. Olhou para o rude barqueiro com certa animosidade de quem lhe roubava um bem precioso. Parecendo ler-lhe os pensamentos, o velho homem cuspiu no escuro, sem tirar os olhos de meu amigo.

– Sou responsável apenas pela travessia. Entende que eu digo?! – e, gargalhou, insano, acompanhado por ecos que se perdiam pelas paredes escuras de pedra. Júnior deu um impulso e pulou para trás. Uma sensação de desespero se entranhou na mente dele. Eu quase poderia tocá-la. Podia imaginá-lo a saltar naquele lodo apodrecido só para me salvar. Lúcia o segurou.

Caronte remou. Aquele cheiro começava a me deixar tonta, confusa. Então cochilei até sentir os raios de sol a me acarinharem o corpo. Aportarmos enfim num bosque. Tirei a máscara do rosto e a deixei no barco. Caronte aportou nas margens, perto de uma mulher que tecia num tear. Ela cantava uma canção com uma voz maravilhosa, numa língua esquisita e não parou ao nos ver. Levantei-me meio cambaleante e fui em direção à mulher. O canto cessou. Parecia que um encanto havia sido quebrado.

– Caronte, que faz por aqui?

O velho sorriu.

– Você teceu minha saída do subterrâneo, e eu vim vê-la, Cloto. Trago a menina, cujos fios você tece.

– Preciso de ajuda. – eu disse, quase num sussurro.

– Katherine – ordenou a parca. – Vá para o lago que borbulha e se lave; mas não desça ao fundo, pois é muito quente. Há uma roupa pendurada na Árvore Gigante, mãe de toda a vida, mas – frisou – não coma seus frutos.

Obedeci. O lugar era paradisíaco. O barulho de água escorrendo me acompanhou, assim como as alfinetadas dos raios de sol tentando entrar pelo véu denso das folhas. Retirei a roupa fétida, joguei-a sobre a relva verde e desci nua às águas, sentindo uma incrível leveza . Lúcia me observava na borda do lago. Ao vê-la, sorri reconfortada.

Havia uma túnica branca pendurada na árvore. Vesti, sem me dar conta que no grosso tronco havia uma serpente amarelada sorrindo para mim. “Coma o fruto, pequena Eva”. E apontou com seu grande guizo para uma romã que parecia docíssima. “Guarde-a…”e sibilou maliciosa.

– Estou com fome. – disse, com um olhar interrogativo à Lúcia.

– Sem graça, não é?! – disse a serpente, ainda na árvore. – Com tantos frutos sumarentos e você, menina, passando fome… Precisa levantar novos paradigmas…

Olhei para a romã e imaginei o sabor da poupa invadindo meu paladar.

– Não, Katherine! Se comê-la, tudo estará perdido…

A serpente pareceu furiosa. Sibilou frenética e deslizou raivosa para outro lugar.

Ficamos a observá-la por alguns instantes até que sumisse. Depois, olhamos para o lago, alimentado por uma pequena fonte que desaguava na borda oposta. Embaixo dela, havia a figura dourada de um grande Buda a sorrir. Ele brilhava ainda mais com a presença dos débeis raios de sol que criavam uma aura meio nevoenta próxima ao lago. Pequenos sátiros timidamente aguardavam nossa saída. Mas antes que fôssemos, percebemos que a serpente ardilosa deixara a romã caída no chão. Confesso que salivei como um cão. Deixamos a fruta no solo e fomos em direção à mulher que cessava seu tear. Ela não mais cantava, nem mais trançava os fios, mas desmanchava seu trabalho.

– Por que faz isso? – perguntei, com voz endurecida.

– São os destinos dos homens. Às vezes, é preciso desfazê-los.

Percebi que havia mais duas mulheres sentadas ao longe a tecer suas peças.

Aproximei-me e peguei a peça inacabada das mãos da mulher. Do lado avesso, havia meu nome.

– Você pode comer a romã. – repetiu a serpente, não muito distante. – Ela fará sua fragilidade desaparecer… Olhe suas mãos, já tão machucadas… Sua escuridão tão claustrofóbica… Por que resiste?

– Não existem atalhos, Katherine. – sussurrou Lúcia.

De repente, a terra estremeceu. A imagem de Buda sentado sob as águas que descaíam da fonte se levantou. Sátiros, musas e outros pequenos seres que ali se divertiam, espalharam-se pelo bosque, assustados. A serpente habilmente deslizou para longe. O gigante ficou estático no meio do lago. A estátua dourada começou a estilhaçar: um dragão escuro de grandes olhos profundos apareceu de seu interior. A imagem de Buda foi caindo sobre as águas límpidas do bosque como flocos de neve. O dragão veio em minha direção, apanhou-me com suas imensas garras, e voamos pelos céus obscuros e grandes oceanos. Volta e meia, sentia o vento a me bater no rosto e a cantar próximo aos meus ouvidos. Minha lucidez estava comprometida. Fui largada em um ninho no alto de uma colina: ali havia um grande ovo. Amortecida, olhava o céu se preenchendo de estrelas. Despertei do transe com a serpente ziguezagueando próxima a meu corpo.

– Ora, ora, ora. Aceitará minha oferta, oh, doce criatura? Seu tempo está quase se esgotando… Eis sua deliciosa romã… Abocanhe-a… – e sibilou ansiosa.

Olhei para a fruta que aparecera em minhas mãos.

– Vamos, menina. Experimente-a! – exigiu mais agressiva.

– Não! – gritei – Prefiro morrer a compactuar com você!

De repente, a romã se transformou em uma espada num flash de luz… A serpente deslizava de um lado para outro, sussurrando promessas. A voz de Lúcia vinha do interior de minha cabeça. “Confie em você, Katherine! Foque.”

O assédio da víbora foi me deixando mais nervosa e irritada. E cada vez que a raiva aumentava, o monstro mais se engrandecia. Segurei a espada por alguns segundos com as duas mãos e foquei na serpente. Quando a raiva atingiu a linha fronteiriça do ódio, pensei em cortar sua grande cabeça.

– Venha! – deleitava-se o animal peçonhento.

– Não, Katherine. – sussurrou Lúcia – Ela se alimenta de seu ódio. Olhe para o ovo. Corte-o com a espada!

Foi tudo muito rápido: ia atacar a víbora, mas corri em direção ao ovo e o parti de cima a baixo. O céu se escureceu de vez. A víbora sibilou muito alto. O ovo se partiu e pude ver que havia um dragão ainda vivo, envolto em uma substância gelatinosa que deslizou até meus pés. Fiquei em choque. A serpente desapareceu.

– Corte-o e beba o sangue. – sussurrou uma voz desconhecida.

Obedeci. Sabia que deveria fazê-lo. Enfiei a espada no coração do bicho e o escutei a gemer dentro de mim. A espada subitamente se transformou numa taça e, embora enojada, ordenhei um fio rubro do corpo cuja vida se esvaía naquele instante. Engoli a bebida numa só tragada. Eu era aquele dragão. Fui à borda do ninho e arremessei a taça de metal, lançando-me ao abismo também. A vida se passou às retinas como numa tela de cinema, até meu choque contra a terra úmida. Nas mãos, o tecido inacabado e a chave dourada. Levantei-me um pouco tonta e adentrei num quintal, cuja casa tinha o interior repleto de luzes. Enfiei a última chave na porta da frente e girei a fechadura com facilidade. Empurrei a maçaneta e logo me encontrei no centro de um círculo de velas. Caí de joelhos em prantos e comecei a rezar. Uma cruz grudada à parede trazia a imagem de um salvador que parecia sofrer. Mas era meu rosto que estava ali. Os olhos da imagem se remexeram. A cruz soltou-se da parede e caiu sobre mim, fechando-me numa urna escura para sempre. Meus gritos, a falta de ar, minhas unhas sangrando, o tecido rasgado, meu pavor… A consciência que voltava límpida como um céu de verão. A morte, meu anjo que me velava ainda distante. Gritava por ela: Lúcia, Lúcia… Tire-me daqui, meu anjo!

E como uma folha ser destacada de um caderno, Lúcia me desprendia da dor. No velho mausoléu da Família Versutti, a cerâmica nova era colocada e, logo abaixo, uma foto recente: a minha. Dentro do caixão branco, meu corpo jazia contorcido em sonho.

Naquele dia, Ulisses uivou até o amanhecer.

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Este conto foi escrito por Sandra Datti , para o Desafio Literário de Setembro de 2013.

23 comentários em “O Grande Talvez (Sandra Datti)

  1. Sandra
    1 de outubro de 2013
    Avatar de Sandra

    Valeu, galera, pela paciência, pelas dicas (preciosas). Será certamente reescrito, agora, com mais atenção após várias sugestões que me acordaram num tranco… Realmente, como o Zé pontuou, dele foram retiradas muitas partes (a história ficou grande demais, com mais de 5000 palavras e eu a decepei.). Daí tudo ficou corrido, o personagem, longe demais, e eu tentei atraí-lo para as lentes de um narrador em 1ª pessoa (esqueci alguns filhos desgarrados em 3ª!). Então acelerei tudim para conseguir entregar ao Gustavo até a meia noite (quase viro abóbora!).
    Não dei banho de dicionário nele, Zé (rs). Sou louca e sem noção assim mesmo.
    Agradeço a todos pela oportunidade. E pela viagem maravilhosa que alguns textos nos levaram.

    Recadim para o Gustavo: o Bruno (Falconeri) tem que ficar de fora… assim não tem graça… rs

  2. vitorts
    29 de setembro de 2013
    Avatar de vitorts

    Não sei ao certo o que dizer sobre esse conto. Gostei de como foi escrito e adorei a abordagem mitológica. Por outro lado, fiquei meio perdido; não peguei toda a simbologia e achei um pouco prolixo. Não vi a finalidade do Júnior no texto, por exemplo. Mas ainda assim, um conto muito bom.

  3. Fernando Abreu
    28 de setembro de 2013
    Avatar de Fernando Abreu

    Olha, eu nunca fui de cobrar referências para um texto. Acho que quando as informações são bem colocadas, com explicações arranjadas dentro do conto, não há necessidade. O que senti nesse texto foi uma beleza incrível no começo, o que seria uma introdução para algo bem bacana. No entanto, no decorrer da narrativa, perde-se aquele ânimo inicial, levado embora pelos diversos elementos que dificultam a proximidade entre autor x leitor, além de criarem barreiras para o conto.

  4. Sandra
    27 de setembro de 2013
    Avatar de Sandra

    Narrativa bruta, crua, longa demais, que poderia ser melhor elaborada. Há a necessidade de referências que deem pistas de alguns por quês. Deveria voltar ao forno: encorpar melhor a ideia inicial e depenar seus excessos…

  5. Leandro Barreiros
    26 de setembro de 2013
    Avatar de Leandro Barreiros

    Achei o texto bom, mas a ideia dificilmente é aproveitável em um conto. Não acho que tenha informação demais, pelo contrário, há informação de menos em um estrutura que comporta menos informação ainda.

    Acredito que uma aventura desse tipo precisa de um ritmo diferente, insustentável nesse formato. Resumindo: muita coisa acontecendo, pouco espaço para aproveitar.

    O que me deixou um pouco desconfortável foi a mudança no clima, talvez mais por uma expectativa minha do que por demérito do autor. Pelos primeiros parágrafos esperava uma história sobre a morte. As palavras da narradora me remeteram a ideia de que essa seria uma história triste. Contudo, ocorre um salto que a transforma em uma aventura.

    O conto, contudo, traz (ótimas) qualidades. O sincretismo é interessante e a escrita me agradou bastante.
    Bom conto! Parabens e boa sorte!

  6. Diogo Bernadelli
    26 de setembro de 2013
    Avatar de Diogo Bernadelli

    Não é um texto ruim. Mas a leitura exige certa paciência para concatenar suas informações (que foram descarregadas de um caminhão todas ao mesmo tempo). É como se o texto estivesse colado à roda de uma bicicleta em movimento. A história sobreviveria ainda que perdesse alguns parágrafos do meio (sobretudo na região em que ocorre a troca injustificável do narrador) e os dois blocos restantes fossem juntados.

    No fechamento das contas, a revisão adequada seria capaz de garimpar todos os méritos que o texto possui.

  7. Maria Inês Menezes
    26 de setembro de 2013
    Avatar de Maria Inês Menezes

    Meio nebuloso. Nao dá para entender muito a ideia que o autor quis passar mas que tem uma mente, fértil, isso tem!

  8. Rubem Cabral
    25 de setembro de 2013
    Avatar de Rubem Cabral

    Achei bonito, mas excessivamente carregado de informação. Gostei da mistura de mitologias e da linguagem poética, em linhas gerais, pois às vezes soava pretencioso (o que não combinou em nada com algumas falhas de revisão).

    Enfim, também tive a impressão que o universo do conto é grande demais para o formato de conto, deixando muitas pontas soltas.

  9. Inês Montenegro
    25 de setembro de 2013
    Avatar de Inês Montenegro

    Gostei da ideia, mas não da prossecução. No início enrola-se demais, e mais tarde, nos desafios que tem de enfrentar, mais desenvolvimento teria ajudado à compreensão do leitor, ou a um maior embrenhamento na história.
    Ainda ao nível do enredo há muitas questões que ficam no ar: as razões para o acontecimento de tudo estão lá, mas parecem não ter importância, quase coladas a cuspo, o que leva à sensação de terem sido uma desculpa para a viagem ao interior do mausoleu.
    Por fim, a narração tem um excesso de purple prose – tentativa excessiva de embelezamento do texto que acaba por o prejudicar – e algumas falhas de pontuação, bem como uma falta de revisão que fez com que não houvesse espaçamento a seguir a alguma da pontuação.

  10. Thais Lemes Pereira (@ThataLPereira)
    25 de setembro de 2013
    Avatar de Thais Lemes Pereira (@ThataLPereira)

    Gostei muito da leitura poética. Aprecio muito histórias assim. Envolvi-me completamente até a hora do barco, depois fiquei um pouco perdida. Talvez por falta de conhecimento. Apesar disso. é lindo de se ler.

  11. Bia Machado
    23 de setembro de 2013
    Avatar de Amana

    Achei bonito. Lírico, encantador até, não sei explicar. Mas como alguns também achei muita informação para um conto, me peguei com uma sensação de estar lendo as páginas de um romance… Precisa ter cuidado com as mudanças de narrador, a alguns talvez isso não soe estranho, mas a mim me pareceu um tanto…

  12. Gustavo Araujo
    23 de setembro de 2013
    Avatar de Gustavo Araujo

    Há algo de Zafón neste conto. As descrições em prosa poética, a maneira como o autor nos faz imergir nos sentimentos de Katherine. “Quisera sentir a eternidade sem o peso do tempo, mas do hiato, da pausa infinita: como queria morar dentro dessa dimensão atemporal e sonhar…” Isso é de arrepiar. Sei que alguns podem não apreciar, mas eu me amarro nessas viagens em meio à história – é o que torna o texto único. Gostei do enredo, da mitologia, dos conflitos. A velha do tear – que ideia fantástica. Claro, o texto não é isento de erros. Há mudanças na narração – ora em primeira pessoa, ora em terceira – que chegam a dar a impressão de que o texto fora originalmente escrito de uma forma e depois alterado para a outra. Também acho que não é exatamente um texto sobre cemitérios, mas sobre a passagem da vida à morte.

    De todo modo, apesar de longo – o mais longo do Desafio – foi para mim, uma leitura prazerosa. Confesso que me senti transportado para esse mundo fantástico sob a tumba dos Versutti. Por sorte, não fiquei lá com a Kath.

  13. Emerson Braga
    23 de setembro de 2013
    Avatar de Emerson Braga

    Não fiquei confortável com sua escrita. Achei carregada demais, o pirotecnismo e excesso de ornamentos no escrever comprometeu a qualidade de seu texto. Tornou a leitura pouco atraente, sem falar que o texto é confuso e não diz muito.

  14. José Geraldo Gouvea (@jggouvea)
    22 de setembro de 2013
    Avatar de José Geraldo Gouvea (@jggouvea)

    Pode-se dizer, sem medo de errar, que este é, de fato, um daqueles contos que padecem de pedantismo. Não pela complexidade da linguagem, mas pela complexidade desnecessária, que se traduz em arcaísmos gratuitos (“desesperançosos”) ou em palavras de cunho claramente piegas (“quinze primaveras”). Quando esse tipo de vocabulário convive com uma estrutura sintática que não está à altura (“iam se esvaindo”) a gente nota que o texto tomou um banho superficial de dicionário. Este é o pedantismo de que falo: o autor deve buscar um vocabulário mais ao nível de sua linguagem usual, sem o artifício de uma cultura postiça e livresca.

    Outra coisa que me incomoda é o excesso de pontuação. Especialmente os momentos em que o sujeito é amputado do predicado por uma vírgula (“Era Lúcia, que todos os dias me trazia a primavera”) ou aparece uma vírgula antes de uma conjunção aditiva (“Vivia com o trauma da lonjura de um rosto materno que se apagava gradati­vamente da memória, e da promessa de um pai que voltaria um dia para me levar para casa.”)

    Quando digo, porém, estas coisas, não é porque detestei absolutamente o conto, mas porque percebi que estes defeitos comprometem a qualidade de um texto que, sem eles, poderia ser muito melhor.

    A alteração do narrador foi um erro também importante. Não acho que seja somente um erro de revisão, é sinal de que houve a amputação de algum pedaço do texto.

    Falta de revisão é quando o texto repete palavras dentro de um intervalo muito curto (“o outro, era o de Samantha, minha mãe. Senti as lágrimas caírem silenciosas. Aproximei-me e alisei a fotografia da mãe,”) .

    O texto tem uma contradição gritante: Lúcia, a amiga da narradora, ao mesmo tempo em que fica para segurar Dante/Júnior, também segue para orientar a narradora no diálogo com a serpente.

    A mitologia em si não me incomodou, muito pelo contrário, a construção mitológica é o que dá carne e sangue a este texto, que de outra forma poderia ser raso e piegas. E é em nome dela, e de outras qualidades que não foram estragadas pela má pontuação ou pelo vocabulário pretensioso, que eu acho que este texto rankeia entre os melhores do desafio.

    Uma obra defeituosa, mas merecedora de apreciação. Porque os defeitos que nela existem têm conserto. O que não tem conserto é a falta de imaginação e a ausência de qualidade. Para todo o resto, dicas dos leitores beta, sugestões de outros autores e a intervenção dos revisores.

    Aliás, digo mais, o/a autor/a deste texto me atrai muito mais enquanto escritor do que muito autor que escreveu texto melhor nesse desafio.

  15. selma
    22 de setembro de 2013
    Avatar de selma

    mitologia demais, como se o autor quisesse demonstrar tudo que ele sabe; tambem gosto de mitologia, acredito, curto, mas a historia ficou confusa, misturada.

  16. Martha Angelo
    22 de setembro de 2013
    Avatar de Martha Angelo

    Achei interessante, mas não sei se entendi bem a história que, pela inserção exagerada de personagens de mitologias variadas, se tornou um tanto confusa. Por outro lado, há trechos com belas imagens, um cenário onírico, meio surreal, enfim interessante, mas sobrecarregado de informação…

  17. feliper.
    20 de setembro de 2013
    Avatar de Rodrigues

    Fazia tempo que eu não era fisgado por um começo TÃO bom. Que primeiro parágrafo! Mas, quando me apeguei aos personagens e ao clima, me senti perdido e distante no desenrolar da trama, talvez por falta de referências, talvez pela construção do texto ou inserção exagerada de elementos.

  18. lu261292
    20 de setembro de 2013
    Avatar de lu261292

    Texto bem escrito, embora algumas vezes o autor fez de Khaterine a narradora, em outras não. Penso que o conto deveria ser mais trabalhado em sua narrativa, ficou um pouco “apressado” e sua conclusão me deixou em dúvida.

  19. Reury Bacurau
    20 de setembro de 2013
    Avatar de Reury Bacurau

    Também achei uma narrativa densa e muito bem elaborada! Bem diferente dos demais e muito interessante.

  20. piscies
    20 de setembro de 2013
    Avatar de piscies

    Não entendi muita coisa. Deu pra pegar a essência da narrativa e seu objetivo, mas o resto – o miolo – foi para mim, como leitor leigo, uma grande mistura de crenças, mitologias e fábulas narrada em um tom poético.

    Faltou um pouco de consistência na narrativa também: as vezes o narrador era a Katherine, as vezes não.

    Mas a escrita é realmente boa e bonita de ler. Só achei a história confusa mesmo.

  21. Claudia Roberta Angst
    20 de setembro de 2013
    Avatar de Claudia Roberta Angst

    Uma viagem mitológica com paradas poéticas. Densa narrativa com imagens construídas de forma sensível e diferenciada. Muito bom!

  22. selma
    20 de setembro de 2013
    Avatar de selma

    achei que escreve muito bem! tentei adivinhar a historia mas por fim me rendi e apenas segui, é facil ler, gostoso! acho que entendi a mensagem, mas fica mesmo confuso em alguns momentos. parabens!

  23. Marcelo Porto
    20 de setembro de 2013
    Avatar de Marcelo Porto

    Por várias vezes desconfiei do final e por outras vezes achei que seria outro. É uma bela narrativa. Gostei das mitologias inseridas e as achei muito bem colocadas.

    Confesso que voltei em alguns parágrafos, por não ter entendido alguns trechos (continuo com algumas dúvidas ainda). Um bom conto, muito sensível e bem interessante.

E Então? O que achou?

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Publicado às 19 de setembro de 2013 por em Cemitérios e marcado .