Naquela noite fria, nuvens escuras passavam como um véu pela face da lua e um vento gelado varrias as ruas do vilarejo onde, a essa hora, homens e mulheres ressonavam nas casas antigas. Enquanto alguns sonhavam, outros tinham a alma pesada pelo jantar e pelo vinho, e outros por terríveis pesadelos ou, quem sabe, pela culpa, a insônia que não permitia que repousassem em paz .
Eram três da manhã: a hora do risco, aquela em que os portais se abrem e os mortos podem descer à Terra. No silêncio de uma velha estrada, uma criatura surgiu vinda de algum lugar da vila. Caminhava devagar, olhos baixos, parecendo nem sentir o açoite do vento, exceto por alguns estremecimentos involuntários do corpinho esquelético, recoberto apenas por uma fina camada de pele suja e pelos que rareavam… Um cão solitário, a própria imagem do abandono, figura patética andando por aquele caminho desolador que levava ao cemitério da cidade. Ele se arrastava naquela direção, talvez buscando abrigo numa das tumbas centenárias.
Subitamente, o cachorro parou. Um arrepio ancestral percorreu-lhe a espinha, eriçando-lhe o pelo, olhou, então, para trás como se tentasse localizar alguma coisa . Um punhado de nuvens cinzentas desnudou uma lua imensa, dourada como um sol noturno, e o cão, atônito, reconheceu algo à distância, arregalando os olhos e ganindo alto, para, em seguida, disparar a correr desvairado pela estrada, como se fugisse do próprio demônio, porém olhos humanos não seriam capazes de ver aquilo que surgiu, em seguida ao cão, a caminho do cemitério.
Instantes depois, outra figura patética pôs-se a cruzar a estrada na mesma direção, um ser atormentado, com a determinação do desespero, que cruzou rapidamente o caminho ainda que com passos trôpegos e abriu o grande portão de ferro apenas encostado, que rangeu em protesto, como se estivesse contrariado pelo que viria a acontecer em seus domínios.
Ora, mas quem era este que andava como um sonâmbulo por entre tumbas e estátuas naquele cenário lúgubre, numa hora tão funesta, senão Lucas, o padre da vila, o sensato, piedoso, virtuoso, amado, sim, o amado padre defensor dos pobres, anjo dos doentes, rei da caridade! Ah, se uma das carolas o pudesse ver agora descomposto, de olhos vidrados, mãos trêmulas, procurando por algo no lar dos mortos como se disso dependesse a sua própria vida!
Segurava a bíblia sagrada em uma das mãos, a água benta num dos bolsos do sobretudo e recitava para si mesmo, entre dentes, o ritual romano : “Regna terrae, cantate deo, psallite dominio…tribuite virtutem deo, exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, omnis incuriso infernalis adversarii … Fazia força para acreditar que esta seria a noite da vitória e , sobretudo, que conseguiria resistir…Caminhava pelas veredas do cemitério, observado por estátuas majestosas com olhos acusadores e sentia-se enjoado com o cheiro de podre das flores ainda mais intenso após a chuva daquela tarde.
Parou em frente à pequena capela, na qual, não ousava mais entrar…Tirou uma vela do bolso e acendeu-a junto a uma singela estátua de querubim, abriu a Bíblia e começou a rezar em voz alta. Foi quando ouviu aquele som horrível, ela estava ali, ela estava ali… Oh, meu deus… a sensação de angústia que o preenchia levou –o a tapar os ouvidos com as mãos, sentia-se fraco novamente, em contradição, sem saber se devia fugir ou lutar… Então, ela surgiu no final de um corredor de túmulos: corpo equino e no lugar da cabeça, chamas infernais…
Um novo relincho furioso antecipou o galope veloz em sua direção. Ao pressentir o inevitável, o padre caiu de joelhos e abriu os braços olhando para o céu, milhões de súplicas e pedidos de perdão passavam vertiginosamente por sua mente agora, sem que ele conseguisse proferir palavra, estava como que vencido, perplexo diante da própria impotência. Labaredas saíam das ventas da besta que se dirigia para ele, como sempre, como tantas e tantas outras vezes…Quando ela parou bem a sua frente, o moço escondeu o rosto entre as mãos num gesto inútil de proteção, já que logo depois ela já estava sobre ele, em formas sinuosas e macias que serpenteavam pelo seu corpo, beijos aveludados, longos e sedosos cabelos que lhe escorregavam pela pele provocando leves cócegas, seios que surgiam desnudos, ao brilho suave da lua, e ele lutando para permanecer de olhos fechados, até que não resistisse mais, a olhar para a beleza plena e extasiante das formas que se metamorfoseavam, aparecendo e desaparecendo, capturando o seu desejo como uma isca, enquanto torturavam o seu corpo com tal prazer, tão similar à dor, que lhe causava medo e ao qual ele tentaria resistir até que não lhe restasse um único pedaço livre de alma, até que a culpa fosse substituída pela delícia de ceder, entregar-se plenamente àquele universo de maciez, calor, umidade, de perfumes e sensações indizíveis, chamas que o consumiam, até que acordasse com os primeiros raios de sol, dilacerado pela culpa e totalmente sozinho no cemitério e saísse de lá correndo como um fugitivo, temendo a cada segundo, que alguém descobrisse o seu terrível segredo. E assim, aconteceu, mais uma vez…
Numa outra parte do vilarejo…
Um sol tímido erguia-se preguiçosamente no azul…Os sinos da catedral anunciavam o início da manhã com suavidade, mas ninguém suspeitava que Ismália tivesse chegado à sua casa no final da madrugada e cumprido seu ritual : pé ante pé, dirigiu-se para o oratório da família no final do corredor da sala de jantar. Ajoelhou-se perante a estátua da Virgem e contemplou a imagem com reverência, deixando-se invadir pelo oceano de silêncio e paz que a madrugada trazia. Suspirou. Pronunciou baixa e timidamente as primeiras palavras da prece, repetindo-as depois cada vez mais ardorosamente inúmeras vezes como se tomada por um transe hipnótico. A luz já tinha inundado a sala quando ela se deu conta de seus joelhos doloridos, seus pés dormentes e o olhar de reprovação velada da mãe que ia para a cozinha. Era como se ela soubesse.
Um cheiro de café fresco penetrou-lhe o estômago vazio, levantou-se com dificuldade, meio tonta e foi tomar banho. Ao sair, não se espantou com as roupas passadas estendidas sobre a cama. Estavam ali para lembrar-lhe que sua presença na missa das dez era exigida, que aquela era uma família de hábitos e a cidade tinha conhecimento disso.
Se ela faltasse haveria perguntas, desculpas e …desconfianças…Alguém poderia pensar…bem, na verdade, já estavam pensando…mas não. Não lhes dariam motivos para abrirem as bocas.Ponto.
Nos domingos, a praça da catedral parecia um local de festa. Perto das dez da manhã, as escadarias da igreja estavam repletas de pessoas bem vestidas, alegres, distribuindo-se em grupos que conversavam animadamente até que o sino soasse anunciando o início da cerimônia, quando então, os mesmos grupos, que antes, conversavam animados,separavam-se, geralmente por famílias e status social e trocavam a animação pelo julgamento dissimulado dos outros, entre um louvor e um sermão…Ismália sentou-se no último canto do banco, com vontade de sumir dali, sentia-se tão mal naquele ambiente…
Os primeiros acordes do órgão prenunciaram a entrada do sacerdote que foi recebido como um astro pela comunidade! Aplausos silenciosos, gestos de aprovação, grandes e meio sorrisos. Em cada detalhe da cena, podia-se ler o efeito que a aquela figura carismática suscitava na multidão. Sua postura elegante, seu discurso inteligente e compassivo, que sabia como agradar gregos e romanos (e aos últimos, era sempre obrigatório agradar) e sobretudo, suas atitudes generosas e espontâneas, tinham despertado a paixão dos fiéis e a intriga e a desconfiança dos colegas,mas Lucas, sempre se moveu pelo sonho, era o sonho que o tinha levado até ali, e quando diziam que o caminho estava repleto de tentações, não poderia dimensionar o quanto isso era verdadeiro, pensava que era só conversa de velhos padres ranzinzas.
Agora ele se via ali, tentando contemplar a multidão como tinha feito no primeiro dia, uma massa informe e despersonalizada de espíritos que queria influenciar com as palavras do Cristo. Mas agora…agora, olhava para a multidão e só conseguia enxergar Ismália, ela que tentava se esconder num canto, só ela…Tentava em vão se concentrar no teor e no tom do sermão do dia, mas em vários momentos, flagrava-se, olhando furtivamente para Ismália para saber sua reação, sentiu-se corar em alguns momentos, perder o foco, pedir desculpas e continuar , sem que ninguém, aparentemente, notasse o motivo, mas no fundo tinha certeza de que muitos ali sabiam o que se passava…Numa vez, notou que lhe corriam lágrimas pelo rosto e que ela saiu da igreja, seguida pela mãe…
Então, finalmente, a missa acabou…
Algumas horas depois…
Lucas caminhava pelas alamedas dos jardins do convento, as luzes suaves do crepúsculo indicavam que a noite se aproximava, a lua já surgia no céu, dividindo espaço com o sol moribundo.A lua havia mudado e ele sentia um mal estar vago como um pressentimento estranho.Quando o noviço entrou agitado, era como se fosse uma confirmação. Procurou disfarçar a emoção :
“ – O que foi ?”
E, então soube que estava acabado. Ismália tinha se suicidado, se atirando ao mar, seu corpo fora encontrado agora há pouco…A família pedia-lhe que se encarregasse do velório e do sermão do enterro, tinham tanta estima por ele e …Ismália também…
Foi para o cemitério como um autômato, não ousava olhar para o corpo estendido no caixão, cercado de flores, não ousava olhar para ninguém, em alguns momentos, permitiu chorar durante o sermão, deixando que vissem as lágrimas escorrendo pelo seu rosto contido, como se chorasse por uma irmã ou uma amiga querida… Depois que todos se foram, ficou a contemplar a sepultura nova, com o epitáfio do poeta Alphonsus de Guimaraens :
“Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…
E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…”
Passou a noite ali, deitada no cimento frio, a sonhar com a próxima lua cheia.
……………………………………………………………………………….
Este conto foi escrito por Martha Angelo para o Desafio Literário de Setembro de 2013.
Vlw pessoal! Muito obrigada por todos os comentários ! 🙂
Gostei muito do texto, em especial pela inclusão de elementos tão brasileiros na trama. Fico na dúvida quanto à necessidade do poema na íntegra. Ótimo conto!
Gostei do enredo, tem essa parte interessante do folclore, do clima, são aspectos muito interessantes. O que me incomodou: o excesso de adjetivos, mas isso é coisa minha, certo? Eu não sou muito fã de textos que abusam disso. Adjetivos funcionam pra mim como doce, rs, se leio muitos assim, de uma vez só, me enjoam, rs… Mas é algo meu, repito, e ai você vê se concorda comigo ou não. 😉
O caminho seguido pelo escritor para dar cria à narrativa me desagrada. Mas é um dos contos que tem o clima mais suave e sombrio entre os inscritos. Gostei? Não. Mas com uns ajustes daria uma conto bacana. Sei apontar os erros? Não. Acho muito subjetivo.
Gostei muito do estilo da narrativa e da tensão provocada. Não acredito que a transgressão da lenda seja um problema, mas um benefício à história, nesse caso (um recurso criativo). Com relação ao poema, no momento em que li o título, ele já desce da memória: não o colocaria no texto, pelo menos, não inteiro.
A escrita é uma arte visual. Tão visual como uma escultura ou uma composição arquitetônica. Acho que inclusive estas últimas são bastante compatíveis com a arte de escrever, pois o apuro com os acabamentos, se ignorado, pode imprimir um aspecto grosseiro ao produto. A história em si é interessante e carregada de simbolismos; isto se verifica na transgressão de algumas características da lenda da mula-sem-cabeça, por exemplo. Em contrapartida, os erros de concordância e a inadequada posição dos acentos, aliados à desnecessária transcrição do poema na íntegra, brigam com a boa essência do texto.
Sua estátua é agradável à vista, mas possui ainda traços bastante rudes.
O inicio do texto não foi bom; muito carregado de clichês. No entanto, depois o conto ganhou boas descrições e o mote central, a abordagem mais sensual da criatura do folclore, foi bem feliz.
Quanto a citação do poema completo, fiquei em dúvida se foi um bom recurso.
Gostei no início, mas depois ficou meio confuso, mas mesmo assim achei interessante o folclore e mais pelo poema. Confesso que bastou ver o título lembrei dele e só pensava em quando apareceria no texto.
Gostei muito da inspiração. A mistura do folclore realmente foi demais! Também gosto quando poesias são citadas, mas concordo que deveria ser de uma forma mais sutil. Mesmo assim, está entre os meus preferidos.
Concordo com o que já foi dito nos comentários anteriores : falta uma certa lapidação no texto e a citação do poema poderia ser mais sutil.
Gostei do folclore utilizado no conto e a história me prendeu!
“Naquela noite fria…” É o clichê dos clichês, isso me incomodou de cara. A narrativa está permeada de clichês (é preciso usar com moderação) e isso impactou negativamente.
Achei a proposta da inserção do folclore brasileiro uma boa ideia, mas que não foi bem desenvolvida.
Você nos deu o conto prematuramente. Ele poderia ter sido melhor lapidado, merecia mais atenção. É um bom texto, mas que ainda merece novas intervenções.
Gostei da gama de significados que o conto pode tomar. Eu, por exemplo, tomei a mula sem cabeça como uma metáfora: que na verdade ele se encontrava com Ismalia normalmente, mas ela era uma besta no início pois significava sua tentação, algo que ele não poderia fazer. Então ele se rende e ela se torna apenas a mulher que era.
Não gostei da forma em que o conto foi escrito. Muitas reticencias e pontos de exclamação. Basta pensar um pouco nos contos ou livros que você lê (talvez até mesmo do autor que você mais gosta): quantas exclamações e reticencias você vê? Quase nenhuma. Reticencias são usadas muito raramente e geralmente em diálogos. O abuso delas no texto denota, para mim ao menos, uma forma muito coloquial de narrativa.
Também concordo com os outros comentários: o poema poderia ter sido completamente omitido, deixando o leitor a divagar… as vezes fazendo com que ele busque o poema e o leia em voz alta para então estabelecer o paralelo com o conto.
O toque dos elementos folclóricos deu uma nova visão para o conto. O poema Ismália deveria ter sido menos enfatizado, pois já está no título, e sim sutilmente posto aqui e ali como provocação de atenção.
Mais um texto de boa qualidade. O único real pecado estilístico foi citar por inteiro o poema do Alphonsus. A citação deveria ficar velada, brincar com a curiosidade do leitor. Descrever o suicídio sem citar o poema, isso seria ótimo.
Para os que conhecem o mito da mula sem cabeça existe também o estranhamento: a maldição noturna da mula, na lenda popular, não envolve encontrar-se com o padre sexualmente, mas persegui-lo em vingança. Daí percorrer sete capelas, sete cemitérios e sete encruzilhadas (nestes últimos lugares, para encontrar-se com o diabo).
Esta alteração, porém,mesmo não chegando a ser bem-vinda, acaba sendo salva pelo contexto: o padre VAI ao cemitério tentar exorcizar a mula, e sendo ele o único que a cavalga (domina) ela, obviamente, se renderá em sua forma humana.
Esse é um dos dois contos que já reservei para votar até agora.
Ideia interessante e gosto das citações das poesias. Há algo na construção do texto que não conseguiu me prender.
Gostei da mistura de folclore com suspense e com traços (inesperados) de sensualidade. Bastante provocativo, ainda que em contexto triste. O amor, de fato, não escolhe os protagonistas.
bem escrito mas confuso; fica parecendo que o padre adultero se relaciona com algo sobrenatural, alguem que se transforma? o ditado em romano sem tradução me fez sentir meio burra! será que eu deveria saber o que diz? e o final, não gostei.