EntreContos

Detox Literário.

Campo Santo (Simone Xavier)

N’augusta solidão dos cemitérios,
Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.

(Soneto, Augusto dos Anjos)

Era alta noite quando despertei. Sim, sou noctâmbulo, e a minha insônia é daquelas que acontecem ocasionalmente no início da madrugada. Ainda que tente, raramente consigo voltar a dormir. Então rolo de um lado para o outro da cama (imensa, na qual sempre estou sozinho), conto carneirinhos, levanto-me para ir ao banheiro, tomo um chá, rezo, nada. Simplesmente o sono não volta. E só me resta ver, angustiado, a coloração do céu passar do negro ao claro da manhã e ir lentamente iluminando as corujas que enfeitam o cortinado da minha janela.

Desta vez, porém, não apenas acordei sem conseguir voltar ao sono. Senti-me plenamente desperto e incomodado por me manter na cama. Ergui-me. Vesti um roupão velho, herança única do meu velho pai. Do quarto fui à sala, na sala dirigi-me à porta. Um impulso de sair. Olhei o relógio: faltavam vinte minutos para as três. A hora morta, angústia dos insones e desejo dos suicidas. A hora dos ladrões. O que desejarão me roubar?, pensei, sem desejar de verdade uma resposta.

Abri-a e, num segundo, estava na rua. O vento frio da madrugada me arrepiou o corpo, exposto apesar do velho roupão. A rua estava mal iluminada, como de costume. Segui à direita, sem noção ao certo do que queria ou de onde desejava chegar, apenas envolto na certeza de que precisava ir. Eu Alice no país das maravilhas, perdido, sem rumo, apenas querendo saber dos caminhos para onde deve, mas não sabe ir.

Seguia já uns trezentos metros longe de minha casa quando a vi. Era alta e vestia preto. Seus cabelos longos dançavam, travessos, na brisa que anuncia o crepúsculo, envolvendo a noite com o brilho deles. Sorria.

Embora nunca houvesse visto aquela mulher, sabia que sorria para mim. Não havia mais viva alma na reclusão daquela madrugada. O frio aumentava, incentivado pelo sorriso dela. Chamou-me pelo nome e me estendeu a mão. Em seus lábios se esboçou um leve sorriso que me fez segui-la. Esquecido de que vestia apenas o velho roupão, logo eu, tão preocupado sempre com a ostentação da aparência; sem medo de ir após alguém desconhecidamente sedutor, logo eu, sempre preocupado em pesar os prós e contras de cada situação; excitado pela beleza daquela mulher incógnita, logo eu, que sempre preferi pisar em solo firme. Segui-a. Logo eu, inabituado a receber ordens, mas sempre apto a distribuí-las, submisso, segui-a.

Entramos por um portal antigo e belo. O muro que circundava aquele lugar era baixo, e isso era tudo o que se podia ver em meio à escuridão. Seguia um pouco atrás dela, mas bem perto, sentindo vez ou outra uns assanhados fios de seus cabelos me roçarem o rosto. O perfume que dela saía era um misto de maviosos odores e prazeres. Deixava-me tonto enquanto me seduzia. Quem é essa mulher, meu Deus? era a pergunta que me afligia, mas logo me esquecia das dúvidas e me bastava seguir após ela, sentir o roçar de seus cabelos e respirar seu cheiro bom.

Então ela parou ao pé de uma cruz, como pude avistar sob a luz da lua, que agora me parecia ainda mais brilhante. Ajoelhou-se, fronte e mãos postas junto ao peito. Fez sinal para que eu a acompanhasse. Éramos nós dois ali, sob a égide de um lugar estranho, buscando numa prece ser feliz. Ergui discretamente meu rosto e olhei-a de soslaio. Mantinha ainda a posição de veneração e humildade profundas. Havia tanta beleza nela, assim, tão casta, criança livre do ar de sedução e sensualidade de instantes atrás. Parecia uma santa, virginal e pura, que pedia com fé ao Ser Superior uma graça arduamente desejada.

O pio de uma coruja me fez desviar o olhar. Reparei então que o local onde estávamos era o cemitério do bairro, localizado algumas quadras após minha casa. Não havia relógio algum em que pudesse verificar as horas – e quem quereria isso num momento como esse? – mas a sensação de que a terceira hora do novo dia acabava de existir me invadia a mente com tamanha intensidade, que provocou um espasmo a me percorrer todo o corpo. Hora morta e eu num Campo-Santo. Era assim que meu pai chamava os cemitérios. Campo-Santo, terra sagrada, com o poder de tornar santo qualquer intento de profano coração. E também de profanar a mais pura alma humana. Tudo dependia da intenção de quem ali entrava, de como era sua vida, se seus pensamentos eram bons ou ruins. Aquele Campo-Santo em especial, talvez pela proximidade da minha casa, era um lugar que sempre repugnei, em cuja calçada evitava passar e no qual jamais tinha entrado. O simples fato de ver caravanas funéreas levando um morto para aquele recinto me incomodava e fazia tremer. A dor de familiares, as lágrimas das carpideiras e o aglomerado de pessoas. A solidão do esquife, prestes a desaparecer para sempre do espaço físico e mais breve ainda, talvez, da mente daqueles que choravam a passagem do defunto. O muro baixo que pouco ou nada escondia. Temia profundamente aquele cemitério. Arrepiava-me passar perto dali, talvez porque me lembrasse de que, em criança, cada vez que fazia uma travessura meu pai ameaçava, como punição, me deixar uma noite inteira preso e sozinho no cemitério. Isso me causava calafrios! Uma vez ele chegou a me levar até à frente do Campo-Santo. Segurava minha mão com força, enquanto eu me derramava no choro mais sofrido que já chorei na vida e ouvia ameaças, entrecortadas por suas gargalhadas fedidas a bebida barata. Sua intimidação era suficiente para me fazer mudar de ideia e pedir perdão pelo mal feito.

Assustei-me ao constatar que, a despeito das convicções e receios que me afastavam dali, nesse momento era exatamente onde desejava estar, na escuridão daquela noite que ia, pouco a pouco, sendo vencida pela inocência do dia, como aquela mulher que esbanjava a dualidade de ser pura e sensual, cândida e voluptuosa, anjo e demônio. Bênção e, talvez, maldição?

Arrependi-me por me perder nesses pensamentos e lembranças, e deles voltei bruscamente quando ela se levantou de onde estava. Pôs-se à minha frente, olhando-me com olhos tão doces e firmes que só pude me levantar. Estávamos frente a frente, e nossa respiração se entrecortava sincronicamente. Talvez em seu rogo ela apenas tivesse se purificado para o nosso amor. Estendi a mão para alisar-lhe o rosto. Ela suspirou de prazer ao receber meu toque. Aproximei seu corpo do meu e beijei-a. Seus lábios eram frios, mais até que aquela fria madrugada. Que beijo intenso foi aquele! Sensual e santo, profano e casto, ali, nós dois, em meio ao maldito Campo-Santo, sob a bênção do cheio luar. Eis-nos ao pé da cruz marmórea que se erguia dum túmulo, num beijo que me revirou a alma e me fez esquecer qualquer temor de ali estar. Apagaram-se de minha mente os medos, as ameaças paternas, o horror dos esquifes que ali vi entrar, as tristezas e os choros dos que sofreram velórios, a solidão dos entes ali perdidos e para sempre esquecidos. Uma forma de amor intensa, insana e pura acontecia entre nós. Lábios unidos, corpos ritmados, suores irmãos. A luz da lua sobre nossa paixão, nossa fome e amor, que pareciam maiores que qualquer tempo já vivido.

Abri os olhos enquanto a beijava, mania insana que acumulara desde a adolescência. Doentemente, sentia prazer ao ver a mulher beijada me beijando e as expressões que fazia de olhos fechados. Mas o horror tomou conta de mim ao ver que os olhos daquela mulher também me olhavam e eram extremamente vermelhos, contrapondo-se, tão vivos e quentes, à frialdade de sua boca. Tive o ímpeto de afastar meus lábios dos dela, o que tentei fazer, mas em vão. Nossas bocas estavam coladas, inseparáveis. Olhava-a. E enquanto meu olhar era de desespero e terror, olhar fundo de quem sente medo, os olhos daquela mulher exibiam o prazer de quem conquista o que deseja. Suava, ansiosamente aflito, o roupão velho encharcado e o coração estreitando-se no peito. Com repugnância, tentava não sentir o odor que vinha dela, agora transmutado em cheiro de enxofre misturado a patchuli. Meu Deus… era o que tentava gritar, mas era eu, mudo, preso naquele momento dantesco.

Então senti que perdia forças. Não as físicas, mas as que vêm da alma e nos permitem viver melhor. Amor, paz, alegria. Como num jogo de campo minado, cada força que me mantinha vivo ia sendo detonada, e eu ali, preso pelos lábios àquela monstruosa mulher que me olhava com prazer, penso até que sorria enquanto tirava o que havia de melhor em mim. Exauria-me. Até que, como por encanto, ela me soltou. Cai num baque surdo sobre uma base gelada, tão esvaziado de mim mesmo que não tinha outra opção a não ser me deixar ficar ali, inabalável.

No céu à minha frente, pude ainda ver as estrelas de brilho cada vez mais tênue, ofuscadas pela brisa rutilante trazida pelos primeiros raios de sol. Estava sobre meu túmulo, percebi. Um túmulo gasto, uma lájea fria, naquele Campo-Santo odioso. Erguida sobre mim, o corpo daquela mulher outrora bela, mas que agora se revelava cada vez mais feia e cadavérica, de sorriso repulsivo, vestes desgrenhadas e cabelos em desalinho. Ergueu-se num pio agudo e tornou-se a coruja que me assustou horas atrás.

Asseverei-me de que meu pai nunca teve razão, nem em suas ameaças, nem nas filosofias. Meu coração e pensamentos nunca foram muito bons. Mas meu fim não foi doce, tampouco santo, embora minha alma tenha sido sempre profana. Surgia, enfim, a aurora morta. E eu, trancado para sempre na escuridão opaca de mim mesmo.

21 comentários em “Campo Santo (Simone Xavier)

  1. Felipe Holloway
    29 de setembro de 2013
    Avatar de Felipe Holloway

    Esse conto foi muito prejudicado pela inverossimilhança, eu acho. Ou talvez possa ser colocado dessa forma: o narrador-personagem não conseguiu me convencer, por meio de sua descrição, de que a atração exercida pela mulher misteriosa era algo ao qual não se podia resistir. E falhando nesse aspecto, os demais meio que desandam. Também foi um pouco inevitável a associação da entidade como “draga de emoções boas” com os dementadores, da série Harry Potter, o que inconscientemente comprometeu um pouco a seriedade da situação, para mim.

  2. vitorts
    29 de setembro de 2013
    Avatar de vitorts

    Ótimo conto. Um tanto prolixo em alguns pontos, mas não dá para negar a qualidade. Boa sorte no concurso!

  3. Diogo Bernadelli
    28 de setembro de 2013
    Avatar de Diogo Bernadelli

    Este conto pode ser reduzido a alguns adjetivos, mas o mais preciso é: risco. Sua construção inspira risco. O lirismo voluptuoso e a supressão dos diálogos, pra não mencionar a ingenuidade quase inacreditável do narrador-protagonista, podem imprimir simultaneamente ares de patologia ou de grande sacada. Tenho comigo que é um misto dos dois.

  4. Fernando Abreu
    28 de setembro de 2013
    Avatar de Fernando Abreu

    Gostei da ideia, mas não gostei da construção do texto, além de ter achado os elementos da esfera “cemitérica” muito óbvios.

  5. Inês Montenegro
    26 de setembro de 2013
    Avatar de Inês Montenegro

    O narrador autodiegético tem tendência a divagar, o que cansa um pouco a leitura.
    Gostei da ideia, ainda que não se possa chamar de original.

  6. Maria Inês Menezes
    26 de setembro de 2013
    Avatar de Maria Inês Menezes

    Fascinante! Uma leitura corrida, sem diálogos e muito interessante! Prende mesmo o leitor. Muito bem escrito, um dos melhores contos. Adorei!!

  7. Bia Machado
    26 de setembro de 2013
    Avatar de Bia Machado

    Gostei, sua forma de escrever me envolveu e achei a situação bem descrita e a narração bem emocional, bem vívida.

  8. Marjory Tolentino
    25 de setembro de 2013
    Avatar de Marjory Tolentino

    Gostei da história. Textos sem diálogos sempre me encantam trazendo sutilidade e comprometimento do narrador.

  9. Thais Lemes Pereira (@ThataLPereira)
    25 de setembro de 2013
    Avatar de Thais Lemes Pereira (@ThataLPereira)

    Muito bom! Mesmo não tendo diálogos, não foi um texto cansativo de ler. Parabéns!

  10. Sandra
    24 de setembro de 2013
    Avatar de Sandra

    Bela alquimia! O transformar de uma trama com esse tema mórbido em um texto fluido, prazeroso e permeado de lirismo.

  11. Martha Angelo
    24 de setembro de 2013
    Avatar de Martha Angelo

    Gostei. O estilo refinado do autor conseguiu tornar uma trama algo banal em um texto que lemos com prazer e que consegue nos surpreender no final.

  12. Rubem Cabral
    24 de setembro de 2013
    Avatar de Rubem Cabral

    Lindo conto; bem escrito e poético. Imagino que o narrador teve um encontro com uma versão mais sensual da Madame M.
    Gostei, gostei.

  13. piscies
    23 de setembro de 2013
    Avatar de piscies

    Muito bem escrito. Muito bem escrito MESMO. Repeti o parágrafo do beijo, que é quase poético. Uma escrita muito bela e que até soa bem. Incrível.

    Até o final é interessante: o personagem morre uma morte diferente: a mulher suga não sua vida, mas tudo o que torna a vida bela. Um belo conto de terror, é tudo o que tenho a dizer.

  14. Marcelo Porto
    23 de setembro de 2013
    Avatar de Marcelo Porto

    Não se pode negar a qualidade da narrativa. Mas ouso discordar quanto a história. O autor(a) é competente em nos prender e tem um talento inegável , mas a trama não ajuda. Li até o final e fiquei com um sentimento de déjà vu.

  15. Emerson Braga
    23 de setembro de 2013
    Avatar de Emerson Braga

    Atraente e escrito com afinco, dedicação. Você demonstrou respeito pelo que escreve e por quem se propõe a ler seu trabalho. Parabéns!

  16. José Geraldo Gouvea (@jggouvea)
    22 de setembro de 2013
    Avatar de José Geraldo Gouvea (@jggouvea)

    Gostei da história, embora no fim não tenha conseguido entender se o narrador é um fantasma ou uma vítima de algum tipo de vampiro. Essa dificuldade de entendimento dá um charme a esse texto. Que também funciona bem por ter apenas o tamanho necessário para contar a sua história.

  17. Gustavo Araujo
    21 de setembro de 2013
    Avatar de Gustavo Araujo

    Eu achei sensacional. Muito bem escrito, muito bem mesmo. Cada palavra, cada frase, tudo parece se encaixar perfeitamente. As descrições dos cenários, a loucura do narrador, a maneira como vamos entendendo a situação horrenda que o envolve… Se pararmos para analisar, veremos que o enredo é simples, de modo que o maior mérito do texto é tomar essa ideia prosaica e transformá-la em um choque arrebatador. Excelente.

  18. Claudia Roberta Angst
    21 de setembro de 2013
    Avatar de Claudia Roberta Angst

    Eu sempre sinto falta de diálogos, mas sem dúvida, é uma boa história.

  19. feliper.
    20 de setembro de 2013
    Avatar de Rodrigues

    Não consegui me prender à leitura. Talvez não tenha gostado da inserção da mulher ou de como as ações vão ocorrendo com certa obviedade. Isso de distanciou do texto.

  20. selma
    20 de setembro de 2013
    Avatar de selma

    bem escrito, historia boa, final adequado! gostei, parabens!

  21. Reury Bacurau
    20 de setembro de 2013
    Avatar de Reury Bacurau

    Muito bem escrito e uma ótima história de fantasma! Gostei!

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 19 de setembro de 2013 por em Cemitérios e marcado .