O cheiro do tapete incendiando-se era algo forte, algo amargo e venenoso, e assaltou as narinas de Paulo enquanto ele imaginava tudo feito uma bola ardida que lhe metiam pela goela. Sentia o sabor do plástico derretido impregnado em sua língua como se estivesse a vida toda ali. Tossiu fracamente, descobrindo que cuspira para o chão, em meio a uma mancha pegajosa de sangue, três dentes.
— Já volto, senhor Mendes. Preciso reparar este incidente o quanto antes, porque dar fim a um corpo é mole pra nós. Uma casa incendiada, por outro lado, é uma pedra difícil de contornar. “Prevejo na coisa os valores da décadence”, e que pena não fazer ideia a quem pertencem palavras tão sábias.
Após ter falado isso, o homem que arrombara sua porta com o salto da bota e o acertara no rosto com uma pá deu meia-volta e foi até a cozinha fazendo barulho no piso. Paulo Mendes na hora soubera, vendo-o parado sob o umbral da porta que quase chutara das dobradiças — a pá suja de terra jogada no ombro como um rifle e o chapeuzinho à la Walter White escurecendo metade do rosto —, que aquele era o homem dos seus sonhos.
Ouviu a torneira sendo aberta e a água espumosa fluindo no interior de um recipiente suficientemente grande para prolongar o ruído.
— Nesta noite há um protocolo sendo observado e olhos posicionados acima dos nossos ombros — falou a voz, distante como as vozes costumam se propagar quando perdemos nosso centro de gravidade em um pesadelo habitado por demônios. — O Quarto Poder caminha através dos corredores das pilhas de protocolos e preza por todos eles. In hoc signo vinces. Se não é burro como penso que é, você deve ter percebido isso. Caso eu descumprisse ou acrescentasse um item na nossa lista de procedimentos, acabaria sobrando para mim. E sua casa consumida até os alicerces é o item que não constará no relatório passado aos caras. — A torneira foi desligada, Paulo escutava o fogo na sua sala/escritório.
Estou fodido, pensou atordoado. Esse cara não cala a boca, e quando sujeitos como ele não calam a boca, é porque querem se fazer ouvir por sujeitos realmente fodidos como eu.
Tentou levantar, mas desistiu, voltando a deitar sua cabeça no braço estendido sobre o chão, como alguém procurando alcançar sem resultado algo que escorregara para baixo do sofá. Se o homem houvesse tido ao menos a decência de derrubá-lo sobre o tapete, Paulo enxergaria naquilo menos covardia… Não, ele não enxergaria, porém o pensamento não o deixava menos deprimido. O rosto rolou do braço, batendo contra o solo, e um dos dentes que cuspira cravou-se na bochecha sem causar maiores danos que a própria pá. Aquela metade da cabeça já começara perigosamente a inchar. Paulo experimentou a certeza de que aqueles três dentes que pularam das gengivas eram seu menor problema, pois o homem de chapéu deveria ter lhe fraturado metade da cara. E na certa ainda tinha planos ao que conservara intacto; homens feito ele, a quem os postes do caminho acendem-se sozinhos e o semáforo muda para verde a fim de que sigam, sempre têm planos na cabeça.
As botas do sujeito tamborilavam novamente no assoalho. Como sua voz, tratava-se de um rumor indistinto, que fazia não mais do que excitar as almofadas enterradas nos ouvidos de Paulo.
— Você realmente achou — começou o homem, ofegando, então trocando passos macios sobre o tapete — que te contaríamos tudo, para deixá-lo se livrar dessa com um medíocre “não”?
Virou sobre o fogo (que ele próprio causara após socar a maçaneta da porta no reboco e derrubar da mesinha o abajur, o qual, metendo um novo item na castidade do seu precioso protocolo, perdera sua cúpula após o choque e deitara a lâmpada incandescente no tapete peludo) o que deveria ser uma panela de água. O chiado que se seguiu encerrou o fogo e a luz precária que oscilava pelas paredes em planos estranhos.
Um ruído de curto-circuito como moscas na janela perfurava o ar.
O homem mau puxou o cabo da tomada, subtraindo de vez a vida daquele aparelho arruinado. Um silêncio enlouquecedor instalou-se na penumbra.
O homem dos pesadelos começou a rir e por ora foi apenas isso.
— Como são idiotas — disse finalmente. — Acreditam que conquistaram a liberdade através do seu intelecto superior, enquanto concebem a melhor maneira de viver uma vida humilde. Acho que foi Huxley quem certa vez colocou em xeque toda aquela pretensa benevolência de São Francisco. Vocês artistas têm tudo e gostam disso, mas querem ser vistos como pessoas desapegadas dos méritos da sua genialidade. E alcançar este conceito ambíguo é que os tornam livres. E idiotas, também. — Neste ponto Paulo achou que a voz maníaca adquirira a prudente nota das verdades fundamentais. — A vida não é uma ovelha que vocês podem fechar em suas baias. Enquanto vocês fazem isso, existe alguém com um sorriso na cara amolando a faca atrás da janela. Não existe au-to-no-mi-a — soletrou. — Eu particularmente acho que vocês escritores são os piores e os mais burros.
Paulo estava enxergando o mundo (e o mundo se limitava aos riscos na madeira do chão) por meio de uma oleosa película avermelhada, que capturava todo o drama justo à situação. Na certa um derrame no olho — pensou. Um derrame provocado pela porrada.
Estudou com atenção aquilo que dissera o homem de chapéu e concluiu que ele errara. Naquela vez que escreveu sua pequena história sobre o cemitério de uma cidadezinha, jamais previra tamanha repercussão. Ela explorava o período de um sujeito que, aproveitando uma misteriosa onda de mortes (que chamou “A Safra”), resolveu tornar-se coveiro. Quando todos os habitantes da sua estranha cidadezinha finalmente morreram, o coveiro se descobriu num desolado estado de desespero. “Quem me enterrará?” Impossível em termos (em todos eles) de verossimilhança, mas uma história filosoficamente válida. Ele conseguira algum prestígio, uma publicação e um prêmio acadêmico, mas ainda era o responsável por abrir sua correspondência e atender aos telefonemas.
E anteontem atendera a um particularmente especial…
Ao ouvir estalarem as articulações do homem ao seu lado, Paulo Mendes esforçou-se para girar a cabeça um pouquinho. Sentiu o último cabo que segurava seu cérebro no lugar se romper, transformando-o em algo próximo a um caroço solto no abacate. O homem agachara-se ao seu lado, um pé parado na altura das suas costelas, a outra bota apontando seu cotovelo, e foi pelas pernas flexionadas e a bunda arriada que Paulo entreviu o tapete da sala. Aquele ponto nunca ficaria totalmente escuro, após a morte do seu abajur, porque era clareado por um halo oblíquo que se projetava através da porta dos fundos, escancarada. Descobriu que ver o mundo tingido de vermelho não era tão assustador assim. Divisou o abajur tombado contra uma chamuscada roda negra no tapete, a fumaça escapando em um sutil fiapo da água empoçada na concavidade rasa. Ver a coisa e antecipar as consequências caso o sujeito não tivesse “reparado” aquilo era o mesmo que entrar na sala e descobrir sua almofada estraçalhada, reduzida a pompons de poliéster espalhados por todo o caminho, mas sem sinal do maldito cachorro. Paulo fechou o olho direito, o dente preso à bochecha intumescida caindo de volta no chão com um ruído de dado, e duas coisas aconteceram simultaneamente. O seu campo visual foi reduzido pela metade, mas também perdeu o tom vermelho-alaranjado.
Ainda uma terceira coisa aconteceu — Paulo Mendes viu a pá.
Sua colher estava impregnada de terra seca e, agora, apresentava uma curvatura anômala acima da saliência afunilada que indicava o seu encaixe com o cabo. Soube que fora naquele ponto que a pá o acertara com força suficiente para se deformar. O cabo de madeira estava sujo de dedos marrons. Uma panela funda achava-se ao lado, a panela que o homem enchera de água e deitara no fogo.
Paulo ficou um pouco triste ao descobrir a coisa que o mandara direto para o chão; podia ainda ouvir o ruído de sino vibrando como um mantra em seus miolos e podia imaginá-lo vibrando também na ossatura dos braços do homem.
Mas estava pouco se fodendo para a tristeza impertinente que a visão da ferramenta resgatara. Paulo só pensava que deveria alcançar aquela pá suja.
— Tente — então disse o homem dos seus sonhos. Ficou em pé, e Paulo o viu unir as costas à parede. Foi assaltado pelo pensamento de que tivera a mente revistada como uma gaveta sem chave. Era isso. Não existe AUTONOMIA, seu escritor BURRO! — Se você for capaz de erguer o rabo do chão e rastejar, a pá será sua. Tente — tornou a convidar, voz sorridente.
O olho sadio de Paulo voltou-se ao objeto e, antes que pudesse considerar aquela uma péssima ideia, ele fez o maior esforço do mundo para descolar o estômago do chão, após recolher o braço que até então estava estirado feito algo morto.
Então Paulo, que se resumia a um corpo que tremia em contrações e ondas impensadas de dor, foi surpreendido com um chute no estômago que o fez rolar sobre as costas e encarar o teto, a vista novamente ampla e novamente vermelha. Tossiu uma tira de sangue, que se aderiu ao queixo.
— Peço desculpas por isso, senhor Mendes — falou o homem dos seus sonhos, rindo entre os dentes. — Mas o senhor é realmente burro, se ignorou toda a coisa dos protocolos.
A resposta de Paulo foi uma longa golfada de ar febril, que agulhou as covinhas da gengiva, no passado preenchidas por três dentes.
— Antes de matá-lo, senhor Mendes — declarou o homem, e a posição da sua voz dizia que tinha andado para recolher a pá —, quero que veja a coisinha que preparei ao lado da sua fonte nova.
E antes ainda que os dedos da mão livre do sujeito se fechassem na sua canela e o arrastassem com incalculável força até a porta dos fundos, Paulo Mendes lembrou-se da porra da fonte. O elefante de pedra eternizado em um impossível movimento de balé, como a porra de uma fonte no jardim da porra do Rei Babar. O topo encerrava-se na tromba dobrada em S, cuja função atribuída por Paulo era a de esguichar água.
O fato era que ele não tinha encomendado aquele trambolho, e sua base retangular, embora não fosse ocupar bastante espaço no quintal dos fundos, o faria de uma maneira desconexa com a totalidade do terreno e os elementos ali presentes. “Você tem um ótimo, um ótimo espaço cercado por muros altos, isso sim”, falou o entregador mais gordo e arranjado sobre um arqueado par de pernas curtas, nada preocupado em dissimular seu sorriso. “Nenhum vizinho xereta espiando, mesmo se tentasse.” E agora até mesmo isso fazia sentido.
Ontem e um dia após o telefonema, os dois entregadores vieram até sua casa no caminhãozinho ocupado por aquela paródia de algum deus oriental amarrada com correias.
Um dia após o medíocre “Não”.
Tentara proibir a entrega tocando o peito do gordão e sendo enfático:
— Eu não encomendei merda nenhuma de elefante!
— É uma fonte — o gordo retificara. E a concluir pela maneira como o segundo sujeito o encarava enquanto era ignorado, via-se que ao gordão pertencia o espírito do líder. O segundo sujeito tinha a expressão preguiçosa da efígie da República em uma nota de dois reais; o gordão, a de Calígula em uma moeda do império romano. Ele curvou o polegar sobre o ombro. — Senhor, nós viemos de Santa Catarina até o Paraná com essa coisa sacolejando ali atrás. — Paulo viu que no sol da manhã a pedra polida de mármore dispensava uma lâmina quente de luz. Pensou, “Vieram de Santa Catarina até aqui, mas que tipo de empresa não usaria ao menos uma lona para proteger essa porcaria? O bairro inteiro deve ter visto essa coisa desfilando pela rua.” — Somos uma companhia terceirizada de entregas e, bem, fazemos entregas. Responder perguntas não é com a gente. Seu nome consta na guia que tenho aqui e não, seu Paulo, eu não duvido da hipótese de o senhor ter sido incluído por engano em nossa rota. Aliás, seu Paulo, eu acredito no senhor. Como a história do novato que precisava levar um lote de camisas de rúgbi para o Rio e acabou no Espírito Santo. O que diabos alguém faria com 15 camisas dos Besouros Cariocas no Espírito Santo?
— Eu não tenho nada a ver com o problema de logística da sua empresa — cortou Paulo. — Meu nome está escrito aí por motivos que desconheço, mas nem por isso um sujeito usando macacão e bota com biqueira de ferro tem o direito de deixar uma agulha que seja na minha porta. — Baixou os olhos para o logo bordado sobre o peito do macacão do sujeito, o mesmo logo pintado em vermelho na porta do caminhãozinho. VIA RÁPIDA, com estrias de velocidade escapando da letra V.
O gordão movimentou-se sobre suas pernas tortas e recuou prudentemente os ombros, como se com isso pretendesse colocar o logotipo do seu macacão ainda mais em evidência.
— Nosso centro de distribuição mais próximo fica a 450 quilômetros e as normas dizem que é para lá que as mercadorias devolvidas devem seguir. Mas está fora da nossa rota. Existem os encarregados da entrega, seu Paulo, e aqueles encarregados do recolhimento. São pontas diferentes daquilo que o senhor felizmente chamou de “logística”.
O homem virou a página seguinte da guia sobre a prancheta e encontrou uma folha amarelo-canário, então pescou uma caneta do bolso debruado do macacão.
— Isso lembra que não terminei minha história dos Besouros Cariocas. — Sorriu um sorriso de mil dentes. — Após perceber a cagada que tinha feito, o novato procurou seguir um negócio dos vídeos institucionais de reciclagem, que passam pra gente a cada seis meses, chamado “Resolução de Desistência Imediata”. Ele mostrou para o “cliente” uma folha amarela, na qual consta um breve texto informando que o “cliente” desistiu da “compra” no ato da entrega e que receberá no próximo dia útil os representantes da EMPRESA VENDEDORA para retirada do produto a domicílio, sem custo nenhum. Na mesma folha amarela da RDI existe um campo vazio a ser assinado, caso o “cliente” concorde com os termos. O senhor entende que a Via Rápida não representa a EMPRESA VENDEDORA e que o senhor, seu Paulo, me coloca em maus lençóis pedindo que eu aja assim? Então vamos fazer de conta que o senhor é o “cliente”, eu e o Eduardo continuamos agindo como funcionários da Via Rápida e amanhã o senhor receberá uma visita que lhe agradará muito.
E foi após ouvir o clique da caneta do gordão que Paulo em uma manhã de quinta-feira viu dois sujeitos conduzirem um elefante de mármore de 300 quilos até seu quintal dos fundos, sobre um carrinho-plataforma Weber.
“Amanhã o senhor receberá uma visita que lhe agradará muito, seu Paulo.”
Tudo estava conectado (as pontas, seu Paulo, as pontas da nossa Feliz Logística) ao telefonema.
Mas ele tinha achado que fosse um trote, não tinha? Um simples trote de merda e, meu Deus, ainda que coisas tão estranhas costumassem acontecer às pessoas vítimas de trotes, ele acreditava agora que as recorrências eram tão raras, que o esforço para enquadrá-las em outras estatísticas deveria ser mínimo. E se havia realmente um Quarto Poder responsável por juntar todas as possíveis pontas das possíveis situações através de possíveis protocolos e impedir que a máquina deixasse de funcionar, Paulo Mendes agora sabia que a coisa vinha sendo feita ao longo dos anos da maneira mais eficiente possível.
— Alô! — Ele recolhera o fone do gancho dois dias antes.
— Boa-noite, senhor Mendes. O senhor tem um minutinho?
— Para falar a verdade, não. Mas também não tenho um agente para resolver isso. — Procurara soar inteligente e bem-disposto.
— Ótimo, senhor Mendes, porque nós não costumamos tratar dos nossos assuntos com os agentes — respondera a voz masculina do outro lado da linha.
— Só um instante… quem fala e do que estamos tratando?
— Estamos tratando das suas histórias.
— Em nome de…
— Tenho aqui uma cópia de “A Safra” e outras duas. Em comparação à primeira, as demais são coisas miúdas, embora possuam seu valor. É com isso que estamos lidando.
— E o que você quer realmente, senhor…?
— O que a Secretaria do Quarto Poder quer, senhor Mendes — corrigira a voz —, é que o senhor continue fazendo sua arte e que a sua arte trabalhe a favor das Nações. As Nações querem que a roda continue girando. Existem, senhor Mendes, pessoas poderosas que não pretendem deixar seu posto e estas mesmas pessoas contam com sujeitos como o senhor, artistas, pensadores… os detentores do verdadeiro poder, o poder intelectual, para ser a força-motriz do que chamamos “metodologias de manobra”.
— Um minuto — Paulo mordera as bochechas para não rir. Não era o primeiro trote desde que ganhara alguma projeção, mas aquele sujeito era uma figura! — Não pude entender precisamente seu trabalho, amigo, mas você diz que recruta “artistas” para… plantarem mensagens subliminares do governo em sua “arte”? E você acredita que um autor, que teve sua história impressa pela Editora UFPR, pode participar dessa macaquice de semiótica?
— Se prefere adotar sua visão simplista, asseguro que ela ilustra parcialmente o contexto. Mas…
— Calma, não terminei — interrompera Paulo, rindo. — Isso tudo é muito século 19… Quem encomendou o telefonema? Foi Ramon? Ramon é mesmo um maldito esquerdista tapado, se pensa que…
— Senhor Mendes, o senhor está dificultando…
— E se eu dissesse não?
Pausa.
— Encararíamos este telefonema como algo que jamais aconteceu. Mas devo adverti-lo…
— Eu devo adverti-lo, camarada, que esta foi a coisa mais engraçada que já me aconteceu. Vamos terminá-la por aqui, pra que ela continue assim.
— Senhor Mendes…
— Diga ao Ramon que resposta é não! — berrou Paulo.
Após um silêncio do outro lado da linha, a voz masculina retornara em tom de nota de rodapé:
— As Nações compreendem sua decisão e agradecem pelo tempo.
E desligou. Mas Paulo não teve tempo de ouvir o clique, porque baixara o fone ao mesmo tempo, rindo como louco.
Quando começaram os pesadelos com um sujeito de chapéu, que se debruçava sobre sua cama com o indicador contra os lábios, sussurrando para o seu rosto suado “Não abra o bico, senhor Mendes”, ele já esquecera toda a graça daquele telefonema.
— Disseram que o seu caso foi particularmente indecoroso, senhor Mendes.
Paulo era arrastado por um pé, observando o teto deslizar acima do seu rosto inchado e tendo consciência de que apanhara dois tapetezinhos com o traseiro.
— O senhor zombou do nosso telefonista, pelo que ouvi. Ele só estava fazendo seu trabalho, sabe? — O sujeito estacou. Paulo sentiu o vento entrar pela porta arrombada (que dava acesso ao quintal, o quintal de muros altos, o quintal onde o sujeito passara um tempo preparando uma coisinha com a pá, desapercebidamente!).
— E, por sua culpa, fui mandado para terminar o meu trabalho.
O rosto ocupou seu campo visual, como o fizera nos pesadelos da noite anterior — mais assustador do que nessas ocasiões pela calma que emanava.
Uma mão desceu na gola de sua camisa e o puxou para cima, a força inumana o colocou sobre as os joelhos bambos como os de um boneco. O ruído de costuras se desprendendo metralhou o ar. Mas Paulo não pôde emitir qualquer pensamento a respeito disso, porque fora arremessado pela porta e agora pousava de barriga no alpendre. Expulsou o ar dos pulmões com um doloroso Oooouf! e não se surpreendeu ao perceber que não podia mais respirar normalmente. Bateu o queixo com força e mordeu a língua. Aquilo também não importava.
A fonte estava a poucos metros… e foi a ela que sua atenção se reduziu. Nesta noite, estava vermelha por conta do sangue vertido do seu olho direito.
— Veja se não ficou uma beleza — disse o homem com felicidade legítima na voz.
Ele se referia a um buraco retangular meticulosamente cavado ao lado do elefante. A escavação era um pouco maior que a própria base da fonte, coisa que fez Paulo concluir duas coisas. A primeira é que nele a fonte seria assentada, porque ninguém jamais viria recolhê-la; a segunda era idiota, mas não menos pertinente: o quintal jamais receberia a infraestrutura hidráulica para que aquilo viesse a funcionar.
— O senhor não vai caber nessa cova, então terei que desmembrá-lo, sabe? — O sujeito parou ao seu lado, a biqueira das botas apontando a direção da fonte. — Por sinal, aquela última frase do seu conto é de fazer a gente ouvir um clique. “A surra prova quão amado fora o livro — e em nossa vida a coisa se dá por vias iguais.” Aquele coveiro era um cara esperto, se me permite dizer. Pedimos para talhar uma plaquinha com essas palavras. Ela será pregada na base da fonte. Eu queria dar a oportunidade de me dizer suas últimas palavras, mas não estou certo se o senhor possui condições de fazê-lo, senhor Mendes. Eu sinto muito.
Quando o ruído da pá rasgando o ar agitou suas orelhas e o choque atingiu-o em cheio na nuca, o mundo de Paulo Mendes perdeu finalmente a coloração vermelha e ele penetrou o negro.
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Este conto foi escrito por Diogo Bernadelli para o Desafio Literário de Setembro de 2013.
Que texto! Acho que sei quem é o pai da criança.
Sensacional. O autor conduziu com profissionalismo o texto. Destaque especial para os diálogos, que enriqueceram e muito o texto. E longa vida à violência e aos palavrões!
A visceralidade desse conto me pegou num momento bem oportuno: eu tinha acabado de assistir ao assombroso Fly, para mim, até o momento, o melhor episódio da não menos assombrosa Breaking Bad. O que significa que já iniciei a leitura no espírito, captando a referência à dinâmica da série antes mesmo da menção ao grande Heisenberg. Se a grandiloquência do assassino destoa em termos de realismo, não se pode dizer que condescende com o chavão das grandiloquências vilanescas (literárias ou cinematográficas), cujo único objetivo é dar tempo ao herói de bolar um jeito de reverter a situação: não houve, aqui, saída para o herói, e esta virtude conseguiu anular facilmente aquele vício. A estrutura dos flashbacks foi, creio, bem empregada, ao mesmo tempo não soando demasiadamente didática nem muito elíptica. E a menção ao cemitério, embora pequena em termos de ocupação dentro do conto, é de uma força simbólica assombrosa. Sou um grande fã do tema do escritor que sem querer esbarra em assuntos cuja abrangência foge a seu escopo pequeno-intelectual. De memória, me vêm à mente o conto Tema do Traidor e do Herói, do Borges, o romance O Pêndulo de Foucault, do Eco, e o romance do Verissimo (sempre ele) Borges e os Orangotangos Eternos, um thriller engraçadíssimo que traz o próprio Borges como investigador de um crime ocorrido durante um simpósio sobre o Poe. Enfim, gostei do conto, gostei da escrita, gostei do narrador algo volúvel. De crítica, só poderia dizer que há uma profusão meio desnecessária de metáforas para descrever coisas simples, que de tais alusões prescindem. Vários desses símiles são excelentes, mas o excesso acaba dando a ideia de muletas visuais.
É inegável que estamos diante de um autor claramente maduro, profissional.
PORRA!!! Desculpe a moderação, mas tive que começar esse comentário com um palavrão. Lembro que tinha lido uns dias atrás e fiquei PUTO com o pessoal que não curtiu as palavras de baixo calão. Do texto não gostei, mas achei legal ter levantado essa temática para discussão. Algumas passagens do conto me deixaram nervoso de tanta informação acumulada. A ideia é original, no entanto.
Conto bem forte. Gostei em algumas partes, em outras a leitura foi um tanto tediosa, parecia que havia uma “falta de pique” ali. Não me incomodo com palavrões, ouço mais deles na vida real que em narrativas ficcionais…
Só um prelúdio antes de comentar o texto: é sério que ainda existe resistência ao valor (ou empregabilidade) literário do palavrão? Depois de Rubem Fonseca? Depois de Bukowski? O_O
Felipe. Lembre-se que há muita gente que não leu nem Rubem Fonseca nem Bukowski. Muita gente que só lê infanto-juvenil (digo isso porque até num Stephen King você vê palavrões). O palavrão incomoda a certo público, isso é fato.
Mas o autor que se preocupar em agradar a todos públicos ficará correndo atrás do vento e nunca chegará a lugar algum. Acredito que todos nós temos de ficar conformados com esta impossibilidade e até mesmo abraçá-la: talvez até valha a pena deliberadamente escrever coisas que ofendam aos públicos que nós não queremos que nos leiam. Tanto quanto vale a pena escrever o que agrada ao público que cobiçamos.
Bem pontuado, JG. Essa onda purista me incomoda justamente por ignorar dois fatos, o de que a nossa língua, como tantas outras, deriva de dialetos que não eram o “de prestígio” (o que já seria suficiente para enquadrar todo o seu catatau léxico como “vulgar”, “chulo” etc.) e o de que a função da literatura não é ser uma variante de beletrismo. Que sempre tenhamos autores dispostos a se insurgir contra tais delimitações estéticas. \o/
A qualidade da narrativa e o estilo do escritor dispensam comentários. Mas desgarrei a atenção da história diversas vezes. Talvez, porque não curta esse estouro violento… Enfim… Certamente, farei uma releitura.
Gostei muitíssimo do texto, mesmo tendo a impressão que há um monte de coisas não ditas no conto. O clima meio maluco lembra um pouco Kafka ou Philip K. Dick, haha. No entanto, achei que o texto só resvalou de leve no tema proposto.
(E se este conto não foi escrito por certo autor que eu conheço muito bem, perdi por completo o meu faro de leitor e passarei a escrever chick-lits eróticas sob um pseudônimo horroroso).
Estou em cima do muro (rs’). Não sei se gostei ou não. Algumas passagens ficaram confusas para mim e vez ou outra me perdia. Não ligo para os palavrões, na verdade, nem são tantos. Dependendo do texto, eles são necessários para que consiga transmitir a emoção necessária.
Achei o início da narrativa interessante, mas confesso que depois me desliguei, talvez pela prosa um tanto confusa, descritiva demais em alguns trechos. Não me incomodo com palavrões desde que façam parte do contexto, mas o excesso não é legal. Não acho que houve excessos neste texto. O problema é que houve fuga do tema…
Achei as frases longas demais e há uma necessidade enorme de descrever toda a situação em detalhes. Como sou adepto da Teoria do Iceberg, não me agradam as minúcias. Não vejo problemas em palavrões ou na violência.
Um conto excelente. Um dos melhores contos que li. Escrita de primeira. Descrições brilhantes que resultam em uma leitura constante e imersiva. Gostei da história, gostei da forma como ela foi exposta; enfim, gostei de quase tudo.
Quase tudo, por que eu mantenho minha posição de que recorrer aos xingamentos é algo baixo. Não sou a favor de palavrões em textos literários, por que considero nossos textos como um santuário da língua. Palavras chulas sujam a língua portuguesa, e ela já está suja demais com a quantidade de pessoas que não sabem utilizá-la corretamente por aí. Um texto literário deve servir como referência á boa escrita, e não considero o uso de palavrões como “boa escrita”.
Também não vi o tema do desafio no conto. Existe uma referência MUITO VAGA de cemitério no conto que o personagem escreveu…. mas só. Tirando o detalhe do tema e os xingamentos, este conto é EXCELENTE!
Gostei. e os palavrões estão bem empregados, o contexto pede os palavrões, eles não estão aí sem um motivo plausível. Incomodar pela brutalidade e violência é, obviamente, o que você pretendia com esse texto. E conseguiu. Você causou fortes reações em quem o leu…
Não gostei, talvez pelo excesso de violência (pois não aprecio o gênero). Também acho que não se enquadra no tema e que o texto é muito confuso (se bem que esse não é um grave defeito, já que a confusão proposital faz parte do ferramental de vários autores excelentes, como até o Philip K. Dick).
Também achei que os personagens são teatrais demais e que a descrição do assassinato é muito barroca e sem sentido. Um assassino de aluguel não age assim, ele simplesmente chega e dá um tiro nos cornos do infeliz.
Por isso é que muitas vezes a estética violenta falha, por teatralizar a violência. Por usá-la de forma sensual, quase pornográfica. Há algo de pornográfico nessa violência gráfica demais.
Forte, pesado, tom violento de acordo com o enredo desenvolvido. Um pouco longo demais, arrasta-se um pouco, mas bem elaborado.
Gosto desse tipo de narrativa – que vai se revelando aos poucos, por meio de flashbacks. O conto é violento, em alguns trechos difícil, e por isso pode não agradar a todos. De fato, como disse o Marcelo Porto, há alguns diálogos que soaram meio forçados – talvez uma revisão desse jeito nisso. Ou não, já que esse pode ser nada mais do que o estilo do autor. De todo modo, apreciei a história. Li num fôlego só, sem desviar a atenção, o que por si demonstra a qualidade da mesma.
Bem escrito e violento…como disseram acima: indigesto.
Indigesto e por isso mesmo muito bom. Não é um conto fácil, preciso reler pra ver se entendi direito.
Gostei da narrativa e achei a prosa excelente, poderia ser um pouco mais curto. Alguns diálogos me pareceram longos demais, e por isso mesmo um tanto forçados. Mas nada que diminua o impacto.
Bom conto!
entediante, violento, muitos palavrões desnecessarios, não li tudo. parece que esse pessoal quer dar um veracidade aos textos às custas de palavrões, chavões, citações de outros autores, que eles eruditamente leram (leram?) então cansei.