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Detox Literário.

Trabalho de Parto – Conto (Sandra Datti)

old-couple-1tuo02gBom dia, meu querido. Acho que o sol está desatento hoje. Não subiu nas costas largas do monte até agora. Veja só… Olhando melhor para sua foto, observo que já se pôs a desbotar aqui no cantinho, ó… Nego, olhando com mais cuidado para você, percebo que o tempo não passou. Não passou, porque esse hiato de saudade que cismou em nascer entre mim e você não é um tempo, mas uma ausência. Uma ausência presente. Entende? Ausência, ausência… Já ouviu falar de uma palavrinha tão paradoxal quanto essa?

Outro dia, acordei com uma sensação estranha, Nego. Era mais ou menos assim: o tempo havia corrido depressa demais só para me dar um susto. Que alívio, quando senti o cheiro de sua loção de barbear invadindo o corredor… Escutei até o crict, crict da lâmina em sua pele fresca.

Sua ausência tomou conta de tudo por aqui. Esta casa hoje é um grande eco de um passado que me sorri todos os dias; mas é tão frágil quanto uma bolha de sabão: quando me aproximo, ao menos, para inspirá-la fico possuída pela escuridão e com a impressão de que perdi contato com a realidade. Como se tivesse fora de mim. Isso é perder o juízo, Nego?

Fiz um chá para você. Aquele forte, com gosto de fruta e sem açúcar. Você sempre detestou coisas doces… Tome antes que esfrie.

Nego, para onde vão as pessoas quando se transformam em ausência? Pergunto isso, porque sua presença é feita de um bocado dela. Quer mais uns biscoitinhos? Ontem fiz daqueles que você tanto gostava. Que sorte ter passado por aqui hoje!

Veja, estou bem. Estou a me preparar para desaparecer também. Às vezes, tenho medo. Outras, sinto uma esperança enorme de que tudo vai dar certo. Outras ainda, penso que é como dormir e não acordar mais. É meio sem graça, eu o sei…

Nego, há vida do outro lado da ausência? Não me leve a mal. É que se estou delirando, não quero comprometer o restante de minha lucidez: preciso ao menos saber o significado dessa palavra vazia que preenche toda minha vida. Como posso morrer em paz com esse tormento na alma?

Sabe, posso ver seu sorriso maroto por detrás desse olhar de papel. Vai, tome seu chá antes que esfrie. As crianças estão bem, meu velho. Têm filhos lindos. Às vezes, vêm me ver, outras, me telefonam.

Se eu me sinto solitária? Não, Nego. Vivo muito bem com minha falta de juízo e nossas lembranças. Elas ficam o dia inteirinho brincando diante de meus olhos. Tudo isso me basta. O que não me basta é o ar que se torna irrespirável quando me preencho de você.

É… também desejo que as crianças sejam felizes… Fizemos um bom trabalho, creio eu. Mas elas começam e eu termino. Sabe, não vejo a hora de isso tudo acabar… Claro que vou sentir a falta delas… mas será mais branda… É natural que prossigam e eu decline…

Lágrimas nos olhos, onde? Na… não, Nego… A casa está cheia de poeira. Desde o início da gestação não tenho vontade de limpar mais nada. Somente as louças, os resíduos da pouca comida que me garantem um tico a mais de sobrevivência. Você sabe que eu detesto moscas.

Você chora? Oh, não! Assim vai molhar todo papel. Daí não terei a quem recorrer quando quiser me livrar de mim. Você me entende? Me entende, Nego?! Pare de chorar, por favor. Quem sabe a vida a vida nos tenha preparado algo grandioso do outro lado dessa ausência?

Quer outro chá? Não pode ficar aqui mais um pouco? Estou me sentindo tão… tão ausente! Será que é um pressentimento?

Nego, acho que o sol não vai se levantar hoje. Não… Acho que ficarei bem. Só não demore. Olhe, Nego, vou para a cadeira de balanço e somente sairei de lá quando os olhos pesarem sobre minha face. Às vezes, quando durmo chorando as pálpebras se grudam na pele macilenta e eu penso já ter partido. Vou dormir um bocadinho. Sabe, uma espécie de treinamento para quando eu me for de vez. Viu? Meu senso de humor ainda está de pé!

Ficarei bem, meu querido. Pode ir; mas não demore. Já estou a sentir parte da alma a descolar da placenta da vida. Não sei quanto tempo demorará esse trabalho de parto. Já sinto fracas e desritmadas contrações.

Chame ajuda e não demore, Nego. Acho que não chego até a cadeira. Olhe, eu o amo. Vou ficar aqui quietinha debruçada sobre a mesa. Assim sinto menos dores. Vai, Nego, encontre alguém que possa dar à luz a minha alma. Vou fechar os olhos e ruminar nossas verdades com a dentadura da minha incerteza, he,he. Viu só, Nego. Meu riso está feliz. Pode chorar através da fotografia. Acho que não vou precisar mais dela…

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Este conto foi escrito por Sandra Datti. A publicação neste blog foi devidamente autorizada pela autora.

8 comentários em “Trabalho de Parto – Conto (Sandra Datti)

  1. Simoni Dário
    3 de março de 2016
    Avatar de Simoni Dário

    Simplesmente encantador! Parabéns.

  2. REGINA CÉLIA BARBOSA COSTA
    19 de abril de 2015
    Avatar de REGINA CÉLIA BARBOSA COSTA

    Talentosa essa prima que a vida me emprestou…amei.È MUITO GOSTOSO LER E SE TRANSPORTAR PRA ESCRITA.#BORAPUBLICAR.

  3. vivian
    10 de julho de 2014
    Avatar de vivian

    “Malditos ninjas cortadores de cebolas” hahaha muito bom!

  4. Adirlene
    8 de maio de 2014
    Avatar de Adirlene

    Parabéns Sandra. Amei o conto.

  5. Tarcila Vaz
    7 de maio de 2014
    Avatar de Tarcila Vaz

    Lindo conto , contado por uma pessoa linda .. Amo muito essa Sandra Datti.. parabéns, tens muito mais para nós… exponha!!

  6. Ana Cláudia Barreto
    4 de maio de 2014
    Avatar de Ana Cláudia Barreto

    Amei! parece que o conto se materializa diante dos nossos olhos…Parabéns talentosíssima Sandra Datti!!!

  7. alanzizou
    20 de setembro de 2013
    Avatar de alanzizou

    Um conto adorável.

  8. selma
    15 de setembro de 2013
    Avatar de selma

    eu gostei muito! tudo que é bem escrito, bem colocado,ganha proporções e prende a atenção, mesmo a historia sendo triste. parabens!

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 7 de setembro de 2013 por em Contos Off-Desafio e marcado .