Começou bebendo para dormir, continuou para existir.
O álcool deixou o copo, escorreu no ar.
Ele respirava tragos como quem respira casa.
As paredes pareciam inclinar-se, cansadas de vê-lo tombar.
O relógio seguia marcando derrotas que não pertenciam a ninguém.
A comida era ferrugem cuspida no canto.
A cama moldou o corpo ausente: mofo.
Só houve deriva.
Um copo a mais, uma promessa a menos.
Até que voltar perdeu sentido, porque já não havia onde.
As fotos encolheram no silêncio.
O sorriso recuou, os rostos das crianças ficaram planos, quase brancos.
A lembrança se dissolveu na mesma névoa pútrida do hálito.
Falava às vezes com o som da garrafa.
E o silêncio respondia, pontual. O nada, paciente, era o único a ficar.
A dor envelheceu.
Deixou de doer, não por cura, mas por esquecimento.
O afeto virou língua estrangeira.
O amor, reflexo gasto de nomes sem voz.
Uma manhã, abriu a janela.
A luz entrou, atravessou o corpo, saiu.
O ar parecia limpo, mas era só o vazio iluminado.
Deitou.
Ouviu risadas.
Tentou rir também, mas o rosto não lembrava o gesto.
O copo caiu — o mesmo som das coisas que desabam.
Ficou olhando o líquido no chão, a mancha crescendo,
lembrando o vinho de um casamento distante,
depois nada.
O fundo não é lugar.
É costume.
E ele já o mora há muito tempo.
Autodestruição é um dos temas que mais me impressiona e, ao mesmo tempo, assombra. Esses versos retratam as diversas facetas da solidão no vício: o hábito suicida, a perda de linguagem e contato, a falta de esperança… excelentes versos, Leila!
Uma linda poesia sobre o vício que vence a vida e o fundo do poço, que não deixa espaço para redenções.
O tema é sombrio, mas suas palavras têm leveza lírica.
Parabéns!
Um poema pungente que bem retrata a realidade inescapável reservada aos derrotados pelo vício no álcool. Em certos momentos, me fez lembrar do clássico filme “Farrapo Humano”, do Billy Wilder, em que o protagonista, interpretado pelo Ray Milland, vai se decompondo à medida que a dependência da bebida avança. Triste e real, como aqui se vê.
Obrigada pela leitura generosa, Gustavo.
A referência a Farrapo Humano diz muito — há mesmo essa decomposição que o vício impõe, mas o que mais me interessava era o que sobra depois, quando até a dor se acomoda e o afeto já não reconhece o rosto.
Fico feliz que esse silêncio também tenha te chegado.
Lindo!