Alto da Ribeira é uma cidade praiana do nordeste com aproximadamente dez mil habitantes. Foi nesta aprazível cidadezinha, onde a vida corre modorrenta, que aconteceu esta história com dona Maria. Já passando dos quarenta, passou também do seu peso ideal. Muito extrovertida, é bastante conhecida na sociedade local. De uma franqueza agressiva, dona Maria é daquelas pessoas que nos leva a pensar se a verdade crua é realmente a melhor opção. Quando for conversar com ela, pense bem no que vai dizer, ou receberá uma resposta atravessada. Sua característica seguinte é o labor. Sempre trabalhando, sempre ocupada. Talvez por isso, talvez por problema endócrino, está constantemente suada. É sua marca registrada, um lencinho com suas iniciais bordadas que carrega entre os seios e que com frequência o tira para enxugar o rosto. A terceira característica marcante de dona Maria é a perspicácia. Quando alguém pensa em perceber parte da história, dona Maria já “pescou” a história completa. Ao contrário, seu marido Almiro, é um senhor pacato, beirando os sessenta. Sem nenhum cuidado com a aparência pessoal, sua única vaidade, talvez para compensar a calvície, é seu pequeno bigode, muito bem cuidado. De temperamento extremamente calmo, beirando a palermice. Ambos cuidam do “negócio” de família. Ela, além de meio expediente matinal na prefeitura, faz doces. Seus acepipes são inigualáveis, em especial, as variedades de cocadas, com banana, com abacaxi, mas com absoluta certeza, a melhor é a tradicional, a cocada branca. Embora não faça para a venda, sua moqueca é simplesmente supimpa. Se entrarmos na análise de seus dotes culinários, não terminaríamos hoje a lista de suas iguarias, uma melhor do que a outra, sobejamente conhecidas pelos afortunados amigos. Seu Almiro fica encarregado da entrega dos produtos e da compra dos ingredientes. Com raras exceções, grande parte do material é adquirido no pequeno supermercado do bairro. Apesar do preço ser levemente mais caro, pela frequência de compras ganham um desconto que acaba compensando a escolha do fornecedor.
Ubirajara, o proprietário do supermercado, assim como dona Maria, não perde um minuto com lazer, tem sua vida voltada para o trabalho. Podemos encontra-lo arrumando as prateleiras, auxiliando na limpeza ou cuidando do caixa. Índio finório, cafuzo de pele morena, herdou a sagacidade do pai, um meliante que de passagem pela aldeia seduziu a índia menina Anahi e fugiu em seguida. Pequeno e irrequieto, foi criado pela comunidade indígena e exibiu tino comercial desde a infância. Abandonou a aldeia antes que o cacique o expulsasse por venda de bebida e canabis. A cidade fez-lhe bem. Veio com a esposa Jandira e abriu um mercadinho. Após quinze anos de trabalho duro, amealhou além de magra poupança, uma casa, o modesto supermercado e uma caminhonete quase destruída pela maresia. A índia Jandira por seu lado, jamais se adaptou à cidade. Sempre sentiu falta da liberdade da mata, da ausência de roupa e tomar banho no riacho. Acabou se sujeitando ao estilo de vida do marido, com a submissão característica das índias pataxós. Mas o servilismo a deixa irritadiça, explode por qualquer coisa, e acaba inconscientemente culpando Ubirajara pela sua insatisfação. Guarda como um tesouro, em uma caixinha junto com as bijuterias que o marido lhe presenteou, um retrato antigo preto e branco, quando era uma indiazinha magricela na aldeia, cobiçada até pelo cacique. Ubirajara não lhe dá atenção, tratando-a como uma empregada e quando lhe dirige a palavra é jocoso, chamando-a de gorda. Raros são seus períodos de felicidade, quando por alguns momentos esquece-se de sua desdita. Uma dessas ocasiões acontece quando atende seu Almiro, tão gentil e cortês que chega a perder horas escutando suas queixas. Para Ubirajara é uma benção essa amizade, pois é um tempo em que ela para de incomodá-lo com reclamações. Nesses momentos, deixa os dois conversando e aproveita para fumar um baseado nos fundos do mercado.
A vida seguia sossegada em Alto da Ribeira até dona Maria ser despedida da prefeitura, “é a crise”, falaram. Passou então a dedicar-se mais aos seus doces. Com mais tempo em casa também começou a perceber certas estranhezas. Almiro tomava banho toda manhã e arrumava-se como nunca fizera antes, inclusive usando o perfume que ganhou no natal. Mesmo para ir ao mercado comprar ingredientes ele segue o ritual de limpeza e arrumação. D. Maria logo percebeu a atitude suspeita do marido e por duas vezes tentou segui-lo sem lograr êxito. Entretanto, como diz o dito popular, a terceira vez é a fatídica. Assim que ele saiu dizendo que ia conversar com os amigos, dona Maria o seguiu disfarçadamente e lembrando dos filmes de detetive, escondia-se a cada parada, cuidado esse desnecessário pois Almiro seguia tranquilo sem ao menos olhar para trás. Se perdesse a pista, seria fácil acha-lo pelo faro, tamanho era o odor de seu perfume. Despreocupado, fez uma ligação pelo celular enquanto caminhava. Dirigiu-se aos limites da cidade até uma pequena capoeira. Com cuidado para não ser vista, dona Maria esperou alguns minutos para entrar na mata, na direção seguida pelo marido. Não foi surpresa quando percebeu o marido enroscado com uma gaja em seu bucólico lupanar. Apesar de todo cuidado, é impossível não fazer barulho numa trilha, deixar de pisar num galho seco, e foi isso que aconteceu. Ouvindo ruídos, o libidinoso casal precipita-se, correndo e vestindo-se, mas não sem serem reconhecidos por dona Maria. Cada um foge por um lado, Almiro assombra pela agilidade em vestir-se e correr pelo mato. O mesmo acontece com a índia Jandira, outrora esguia, devido a mudança de hábito alimentar, hoje obesa, ainda assim extremamente ágil. Conhecedora das matas, foge como uma gazela, saltando por galhos e pedras, contudo sem tempo de pegar sua calçola.
Dona Maria examina cuidadosamente a cena do crime, recolhe as evidências e retira-se. Frustrada pela fuga dos amantes e sem poder executar o flagrante, dirige-se ao mercado. Lá chegando, como sempre, encontra o senhor Ubirajara no caixa, que sorridente a cumprimenta:
– E então dona Maria, o que conta de novo?
– Nada… ah, ia quase esquecendo, – e colocando a calçola sobre o caixa ela conclui, – meu marido anda comendo sua esposa.
E retirou-se com a altivez de uma nobre inglesa.
Este conto tem um cheiro de história maior. Não é incomum esta sensação de terminar um conto e pensar “poxa, mas parece que terminou na metade”. Sei que tem conto que é só isso mesmo, mas geralmente não faz muito o meu agrado.
Ele é muito bem escrito e muito bem ambientado. Os personagens têm carisma e personalidade. Este conto tem muito “contar” e pouco “mostrar” mas aqui essa quebra da regra não pareceu incomodar. Para a forma como o conto foi apresentado, a técnica funcionou bem. O que me frustrou mesmo foi o corte súbito no final. O conto pedia uma conclusão mais interessante.
Me incomodou também a troca do tempo verbal da narrativa, onde 90% do conto é escrito no pretérito mas os últimos 10% estão no presente. Mas aqui eu acho que talvez haja alguma lógica também: como se tudo antes na narrativa fosse o preâmbulo para o momento atual, o presente, que é dona Maria flagrando o marido com a índia. Então até faz algum sentido, apesar de continuar soando estranho.
O melhor do conto é a ambientação. Extremamente competente, nos coloca no olho da história. É como se fôssemos moradores de Alto da Ribeira, como se conhecêssemos Maria, Jandira, Ubirajara e Almiro. Tanto que ficamos curiosos, queremos saber o fim da fofoca, do adultério. Quem sabe experimentar os dotes culinários de Maria… É um conto que merecia mais, na verdade. Digo, mais desenvolvimento, já que tudo se desdobra muito rapidamente. O que houve depois? Conto bom é aquele que deixa um gostinho de quero mais. Foi o caso aqui. Se quiser escrever mais sobre esse universo, Nilo, sou a favor.
obrigado Gustavo pela leitura e comentário. o conto é quase uma crônica, baseada em casos reais. Estou fazendo uma coletânea de casos acontecidos em Alto da Ribeira. Infelizmente, mesmo mudando nome e outros detalhes, é tão absurdamente fácil reconhecer os protagonistas de casa história que só poderá ser publicada depois da minha morte.
Esse conto é interessante por fazer uma grande apresentação dos personagens antes da história em si, que dura quase que apenas um parágrafo.
A apresentação é feita em detalhes, que explicam os acontecimentos posteriores. Só depois voltei lá pra reler e vi como o autor explicou tudinho antes ali.
Se fosse pra fazer o conto mesmo num formato puramente de história, sem a apresentação, ficaria beeem mais comprido.
Mas a história em si é bem rápida e tem até formato de piada, com uma punchline no final. Gostei dessa parte.
Dá pra notar que o autor apenas quis escrever um conto despretensioso, sem muitas preocupações. Parabéns pela participação aqui.
Um ótimo conto. O narrador é bem presente, mas não invade a história. Os personagens são bem desenvolvidos, parecem gente conhecida, próximos. O enredo é simples e bom, sem invencionices desnecessárias para satisfazer a pira da inovação.
Gostei muito!
Olá, Nilo!
O mais interessante do seu conto é como em um conto curto os personagens estão tão bem apresentados e aprofundados. Parece que a história é bem maior do que é, no bom sentido, é claro. Amei isso!
Engraçado que na descrição da dona Maria e seu Almiro, consegui visualizar uma conhecida e seu marido… 🤭 Espero que tenham melhor sorte.
O conto está muito gostoso de ler. Parabéns!
Obrigado Priscila, o engraçado da historia, para mim, é que ela foi contada pela “D. Maria”.
bom dia Givago. obrigado pela leitura e pelo comentário. Foi bastante acertado. Sobre erros, sempre escapa alguma coisa, vou corrigir, não o canabis, nesse caso a intenção era usar a forma mais usual ao invés do termo cientifico. E uma curiosidade, claro que com mudança de nomes e acréscimo de muitos detalhes, a história é real. Você não tinha como saber, mas o final, na realidade, não está em aberto.
Olá, Nilo! Tudo bem?
O conto que você nos apresenta é curto, direto e com pitadas do cotidiano. Em termos de história, por ser um enredo de certa forma batido, não foi o grande ponto positivo. Tampouco foi um grande destaque negativo. Penso que você mostrou exatamente o que queria mostrar; sem mais nem menos. Ao leitor, com o final em aberto logo no ápice, resta a missão de completar em seu imaginário a narrativa.
Quanto à escrita, achei interessante o quanto ela flui entre ser próxima daquela linguagem cotidiana e da literatura mais rebuscada. Por ser curta/direta, é interessante notar o quanto ela harmoniza com o retrato/fragmento do cotidiano. Aqui percebe-se competência e maestria em construir uma história.
Ainda em tempo, apenas para falar de impacto pessoal, senti um pouco de falta de humor na história. Ou drama. Enfim, um temperinho.
Com licença, sobre questões gramaticais, apenas duas: acha-lo (creio que deveria ser achá-lo) e canabis (o gênero científico da maconha é cannabis, em itálico.)
No mais, um bom e competente trabalho.