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Detox Literário.

Pecado – Conto (Priscila Pereira)

— Me perdoe, padre, porque vou pecar.

Depois de alguns segundos de silêncio, ele responde:

— Não é assim que funciona a confissão, minha filha, se não pecou ainda, simplesmente não peque e não precisará de perdão.

O confessionário é pequeno e desconfortável. Ela raspa com a unha o verniz da madeira. Olha para a treliça que a separa do padre, procurando enxergá-lo.

— O pecado já foi decidido em minha mente, então  precisa ser realizado. Por isso venho pedir perdão adiantado.

O padre muda de posição, ganhando tempo para formular uma resposta.

— Então me diga, o que pretende fazer?

Ela enche o pulmão de ar e vai soltando devagar. Precisa organizar os pensamentos descontrolados.

— Eles tem que morrer. Então eu vou matar eles.

O padre fica cada vez mais desconfortável. Mexe no bolso da calça e retira um celular, que deixa à mão.

— E quem são eles? Por que precisam morrer?

Ela se ajeita no banco duro e se prepara para contar tudo, afinal, é para isso que veio.

— Meus pais são monstros. Não são humanos.

Um peso sai de seus ombros. Nunca havia declarado em voz alta aquele fato antes e percebe que é libertador.

— Como assim? Não entendi.

Agora é a vez do padre olhar pela treliça e tentar se certificar de quem é a moça, quase uma menina, que está do outro lado. O falar arrastado e o tom de voz diferenciado já havia lhe dado quase uma certeza.

— Ele é um vampiro, que vem todas as noites sugar o meu sangue e ela é uma assombração que fica lá o tempo todo só assistindo o meu desespero.

Incrédulo, imagina se está lidando com realidade ou fantasia. É a primeira vez que ouve  a confissão de alguém como ela. Não está preparado para isso.

— Certo, me conte mais sobre isso…

Ela solta a respiração que estava presa, aliviada por ele ter acreditado.

— De dia eles são pessoas normais, como todos os outros, mas assim que todos estão na cama eles se transformam. E eu fico com muito medo.

Ele sente a tensão e o desespero na voz da garota. Alguma coisa está realmente errada.

— Me fale mais sobre a sua mãe. O que quer dizer com uma assombração?

— Ela entra no quarto, vestida com uma camisola branca que vai até os pés, descalça, com os cabelos soltos e me prende na cama.

Ele não gosta do rumo que as coisas estão seguindo. Passa a mão pelo rosto e tenta mais uma vez enxergar do outro lado. Vê os olhos oblíquos e as sobrancelhas grossas. Consegue visualizar a moça e os pais todos os domingos no mesmo banco ouvindo os sermões. A menina se destaca pela aparência típica de sua síndrome, enquanto seu jeito inocente confunde aqueles que tentam adivinhar sua idade.

— Continue…

Uma vez que está sendo encorajada, volta a falar sem rodeios.

— Ela diz que eu preciso ser boazinha, ficar quietinha porque o papai precisa de mim. Então o rosto dela fica branco como uma vela e seus cabelos parecem que estão pegando fogo e ela fica em um canto do quarto flutuando e assistindo tudo.

Para de falar e inspira profundamente.

Depois de quase um minuto de silêncio o padre a encoraja novamente.

— E ela fica assistindo o quê exatamente?

Tem medo do que está prestes a ouvir. Ainda não sabe o que pode ser real ou excesso de imaginação.

— Aí ele entra no quarto e mostra seus dentes pontiagudos, deita em cima de mim e começa a sugar meu sangue. Dói muito e eu tento gritar, mas minha garganta está fechada e quase não consigo respirar. Então tudo fica escuro e não sinto mais nada. Só o alívio de flutuar em nuvens branquinhas no céu. Quando acordo já é de manhã e eles voltaram a ser humanos.

Uma lágrima escorre pelo rosto do padre. Ele limpa a garganta e pergunta.

— E como pretende matá-los?

Ela fica calada por alguns segundos de cabeça baixa, encarando as mãos curtas demais.

— Quando eu estava flutuando com as nuvens ontem, pensei que se ele é um vampiro e ela é uma assombração, o melhor seria conseguir uma cruz e água benta. Com certeza eles morreriam se eu rezasse segurando a cruz e jogasse a água benta neles. Não é? Então, o senhor pode me emprestar?

Lágrimas rolam livremente agora. Ele liga o celular e aperta as teclas da chamada de emergência.

— Claro, minha filha! Eu vou te ajudar a matar os monstros. Pode ficar tranquila.

9 comentários em “Pecado – Conto (Priscila Pereira)

  1. Thiago Amaral Oliveira
    30 de janeiro de 2025
    Avatar de Thiago Amaral Oliveira

    Gostei bastante do conto.

    Logo de cara me senti fisgado, porque acho bem interessante a questão do pecado e da religião. Apesar de não ser sobre isso, o suspense foi bem construído para que eu ficasse interessado em saber o que estava acontecendo. Pensei que poderia ser tudo uma confusão pela mente infantil da garota, mas por sorte não foi o caminho do conto. Muito pelo contrário.

    Interessante notar que ela sente como se estivesse nas nuvens durante os abusos, algo bem comum nesse tipo de situação. A vítima se disassocia do próprio corpo, imaginando ser apenas um observador, longe e sem relação com o que ocorre. Estou lendo um livro sobre trauma, e me lembrou disso. Ótimo detalhe no conto.

    A própria sensibilização do padre espelha a nossa. Difícil seria não fazer nada…

    Excelente trabalho.

  2. Marco Saraiva
    17 de janeiro de 2025
    Avatar de Marco Saraiva

    Achei o conto simples e efeitivo. Talvez direto demais para o meu gosto, mas admito que eh coisa de gosto pessoal!

    A mensagem eh muito clara e a situacao muito bem descrita. Gosto de dialogos bem feitos, e este conto inteiro eh praticamente um dialogo bem montado, o que sempre acho legal de ler!

    Tenho lido um pouco sobre psicologia e psicanalise, e o conto pega de forma diferente em quem ja tem conhecimento sobre o tipo de fantasia que certas mentes recorrem para negar as brutalidades da realidade. Ainda mais a mente de uma menina com sindrome de down (pelo que entendi, ela tem esta sindrome, correto?), que ja tem a tendencia de se recolher no proprio mundo interno.

    O que me pega em contos assim eh a terrivel realidade da coisa toda. Isso aqui nao eh fantasia. Existem pessoas assim, o mal eh real. Como alguns dizem, muitas vezes a realidade eh mais assustadora do que um filme de terror.

    Foi uma boa leitura!

  3. Julia Mascaro Alvim
    9 de janeiro de 2025
    Avatar de Julia Mascaro Alvim

    Simples e gostoso

  4. Givago Domingues Thimoti
    8 de janeiro de 2025
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Olá, Priscila! Tudo bem??

    Estreando meus comentários na área off com seu conto. O conto é escrito de forma simples, com uma condução muito boa. É bem verdade que assim a menina começou a descrever quais seriam os seus pecados e os monstros, eu imaginei do que se tratava. Não é exatamente um demérito. Uma lição de “Ainda estou aqui” é que nem sempre emoção e surpresa andam lado a lado na condução de uma história; às vezes a tortura/ a angústia do leitor/espectador mora justamente em saber exatamente o que vai acontecer e, ainda assim, não ter nada o que fazer.

    Um último ponto antes de concluir meu comentário. Depois da leitura, na resposta à Kelly, você afirmou que “Colinas como elegantes brancos” te inspirou de certa forma. Sem querer ser o comentarista de obra pronta, percebi um pouco isso. Talvez, se você estiver disposta a aumentar a história, poderia inserir um narrador-personagem que observa que o relato da garota ao padre; um investigador de polícia, uma vigia da igreja… algo do gênero. Mas enfkm, apenas ventilando ideias aqui enquanto pedalo na academia.

    Parabéns e obrigado pela contribuição!

    Abraços

    • Priscila Pereira
      8 de janeiro de 2025
      Avatar de Priscila Pereira

      Obrigada pela leitura e comentário, Givago! Então, a preguiça me impede de aumentar ou modificar muito contos já terminados 🤭 Mas valeu pela dica! 😉

  5. Kelly Hatanaka
    7 de janeiro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Caramba, Priscila…

    Mais um ótimo conto seu. É bem interessante acompanhar a história pela ótica do padre e imaginar a decisão que ele irá tomar. Felizmente, foi a de pedir ajuda e denunciar.

    Deixar no ar se é verdade ou fantasia e manter o relato metafórico, com o filtro do entendimento da moça, alivia um pouco o peso da história. Mas só um pouco.

    Muito bom!

    • Priscila Pereira
      7 de janeiro de 2025
      Avatar de Priscila Pereira

      Que bom que gostou, Kelly! ❤️

      Tentei fazer algo semelhante a Colinas como elefantes brancos, mas não consegui e acabei gostando muito do resultado mesmo assim!

  6. JP Felix da Costa
    6 de janeiro de 2025
    Avatar de JP Felix da Costa

    Olá Priscila!

    SPOILER ALERT

    Numa crescente imersão numa mente conturbada, o texto começa de forma simples e a partir de uma situação de quotidiano, e evolui até um quadro perturbador que nos remete para a seguinte questão:

    Loucura esquizofrénica ou negação, através de fantasia, de abusos?

    A dúvida fica no ar.

    Gostei bastante do texto, principalmente da forma como vai, lentamente, revelando a degradação mental da jovem.

    Parabéns!

    • Priscila Pereira
      6 de janeiro de 2025
      Avatar de Priscila Pereira

      Obrigada pela leitura e comentário, JP! O que eu queria nesse conto era deixar tudo para o leitor, não explicar nada e ver o que ele deduzia do texto. Gostei muito de escrever esse conto! Feliz que tenha gostado! 😘

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Publicado às 6 de janeiro de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .