— Me perdoe, padre, porque vou pecar.
Depois de alguns segundos de silêncio, ele responde:
— Não é assim que funciona a confissão, minha filha, se não pecou ainda, simplesmente não peque e não precisará de perdão.
O confessionário é pequeno e desconfortável. Ela raspa com a unha o verniz da madeira. Olha para a treliça que a separa do padre, procurando enxergá-lo.
— O pecado já foi decidido em minha mente, então precisa ser realizado. Por isso venho pedir perdão adiantado.
O padre muda de posição, ganhando tempo para formular uma resposta.
— Então me diga, o que pretende fazer?
Ela enche o pulmão de ar e vai soltando devagar. Precisa organizar os pensamentos descontrolados.
— Eles tem que morrer. Então eu vou matar eles.
O padre fica cada vez mais desconfortável. Mexe no bolso da calça e retira um celular, que deixa à mão.
— E quem são eles? Por que precisam morrer?
Ela se ajeita no banco duro e se prepara para contar tudo, afinal, é para isso que veio.
— Meus pais são monstros. Não são humanos.
Um peso sai de seus ombros. Nunca havia declarado em voz alta aquele fato antes e percebe que é libertador.
— Como assim? Não entendi.
Agora é a vez do padre olhar pela treliça e tentar se certificar de quem é a moça, quase uma menina, que está do outro lado. O falar arrastado e o tom de voz diferenciado já havia lhe dado quase uma certeza.
— Ele é um vampiro, que vem todas as noites sugar o meu sangue e ela é uma assombração que fica lá o tempo todo só assistindo o meu desespero.
Incrédulo, imagina se está lidando com realidade ou fantasia. É a primeira vez que ouve a confissão de alguém como ela. Não está preparado para isso.
— Certo, me conte mais sobre isso…
Ela solta a respiração que estava presa, aliviada por ele ter acreditado.
— De dia eles são pessoas normais, como todos os outros, mas assim que todos estão na cama eles se transformam. E eu fico com muito medo.
Ele sente a tensão e o desespero na voz da garota. Alguma coisa está realmente errada.
— Me fale mais sobre a sua mãe. O que quer dizer com uma assombração?
— Ela entra no quarto, vestida com uma camisola branca que vai até os pés, descalça, com os cabelos soltos e me prende na cama.
Ele não gosta do rumo que as coisas estão seguindo. Passa a mão pelo rosto e tenta mais uma vez enxergar do outro lado. Vê os olhos oblíquos e as sobrancelhas grossas. Consegue visualizar a moça e os pais todos os domingos no mesmo banco ouvindo os sermões. A menina se destaca pela aparência típica de sua síndrome, enquanto seu jeito inocente confunde aqueles que tentam adivinhar sua idade.
— Continue…
Uma vez que está sendo encorajada, volta a falar sem rodeios.
— Ela diz que eu preciso ser boazinha, ficar quietinha porque o papai precisa de mim. Então o rosto dela fica branco como uma vela e seus cabelos parecem que estão pegando fogo e ela fica em um canto do quarto flutuando e assistindo tudo.
Para de falar e inspira profundamente.
Depois de quase um minuto de silêncio o padre a encoraja novamente.
— E ela fica assistindo o quê exatamente?
Tem medo do que está prestes a ouvir. Ainda não sabe o que pode ser real ou excesso de imaginação.
— Aí ele entra no quarto e mostra seus dentes pontiagudos, deita em cima de mim e começa a sugar meu sangue. Dói muito e eu tento gritar, mas minha garganta está fechada e quase não consigo respirar. Então tudo fica escuro e não sinto mais nada. Só o alívio de flutuar em nuvens branquinhas no céu. Quando acordo já é de manhã e eles voltaram a ser humanos.
Uma lágrima escorre pelo rosto do padre. Ele limpa a garganta e pergunta.
— E como pretende matá-los?
Ela fica calada por alguns segundos de cabeça baixa, encarando as mãos curtas demais.
— Quando eu estava flutuando com as nuvens ontem, pensei que se ele é um vampiro e ela é uma assombração, o melhor seria conseguir uma cruz e água benta. Com certeza eles morreriam se eu rezasse segurando a cruz e jogasse a água benta neles. Não é? Então, o senhor pode me emprestar?
Lágrimas rolam livremente agora. Ele liga o celular e aperta as teclas da chamada de emergência.
— Claro, minha filha! Eu vou te ajudar a matar os monstros. Pode ficar tranquila.
Gostei bastante do conto.
Logo de cara me senti fisgado, porque acho bem interessante a questão do pecado e da religião. Apesar de não ser sobre isso, o suspense foi bem construído para que eu ficasse interessado em saber o que estava acontecendo. Pensei que poderia ser tudo uma confusão pela mente infantil da garota, mas por sorte não foi o caminho do conto. Muito pelo contrário.
Interessante notar que ela sente como se estivesse nas nuvens durante os abusos, algo bem comum nesse tipo de situação. A vítima se disassocia do próprio corpo, imaginando ser apenas um observador, longe e sem relação com o que ocorre. Estou lendo um livro sobre trauma, e me lembrou disso. Ótimo detalhe no conto.
A própria sensibilização do padre espelha a nossa. Difícil seria não fazer nada…
Excelente trabalho.
Achei o conto simples e efeitivo. Talvez direto demais para o meu gosto, mas admito que eh coisa de gosto pessoal!
A mensagem eh muito clara e a situacao muito bem descrita. Gosto de dialogos bem feitos, e este conto inteiro eh praticamente um dialogo bem montado, o que sempre acho legal de ler!
Tenho lido um pouco sobre psicologia e psicanalise, e o conto pega de forma diferente em quem ja tem conhecimento sobre o tipo de fantasia que certas mentes recorrem para negar as brutalidades da realidade. Ainda mais a mente de uma menina com sindrome de down (pelo que entendi, ela tem esta sindrome, correto?), que ja tem a tendencia de se recolher no proprio mundo interno.
O que me pega em contos assim eh a terrivel realidade da coisa toda. Isso aqui nao eh fantasia. Existem pessoas assim, o mal eh real. Como alguns dizem, muitas vezes a realidade eh mais assustadora do que um filme de terror.
Foi uma boa leitura!
Simples e gostoso
Olá, Priscila! Tudo bem??
Estreando meus comentários na área off com seu conto. O conto é escrito de forma simples, com uma condução muito boa. É bem verdade que assim a menina começou a descrever quais seriam os seus pecados e os monstros, eu imaginei do que se tratava. Não é exatamente um demérito. Uma lição de “Ainda estou aqui” é que nem sempre emoção e surpresa andam lado a lado na condução de uma história; às vezes a tortura/ a angústia do leitor/espectador mora justamente em saber exatamente o que vai acontecer e, ainda assim, não ter nada o que fazer.
Um último ponto antes de concluir meu comentário. Depois da leitura, na resposta à Kelly, você afirmou que “Colinas como elegantes brancos” te inspirou de certa forma. Sem querer ser o comentarista de obra pronta, percebi um pouco isso. Talvez, se você estiver disposta a aumentar a história, poderia inserir um narrador-personagem que observa que o relato da garota ao padre; um investigador de polícia, uma vigia da igreja… algo do gênero. Mas enfkm, apenas ventilando ideias aqui enquanto pedalo na academia.
Parabéns e obrigado pela contribuição!
Abraços
Obrigada pela leitura e comentário, Givago! Então, a preguiça me impede de aumentar ou modificar muito contos já terminados 🤭 Mas valeu pela dica! 😉
Caramba, Priscila…
Mais um ótimo conto seu. É bem interessante acompanhar a história pela ótica do padre e imaginar a decisão que ele irá tomar. Felizmente, foi a de pedir ajuda e denunciar.
Deixar no ar se é verdade ou fantasia e manter o relato metafórico, com o filtro do entendimento da moça, alivia um pouco o peso da história. Mas só um pouco.
Muito bom!
Que bom que gostou, Kelly! ❤️
Tentei fazer algo semelhante a Colinas como elefantes brancos, mas não consegui e acabei gostando muito do resultado mesmo assim!
Olá Priscila!
SPOILER ALERT
Numa crescente imersão numa mente conturbada, o texto começa de forma simples e a partir de uma situação de quotidiano, e evolui até um quadro perturbador que nos remete para a seguinte questão:
Loucura esquizofrénica ou negação, através de fantasia, de abusos?
A dúvida fica no ar.
Gostei bastante do texto, principalmente da forma como vai, lentamente, revelando a degradação mental da jovem.
Parabéns!
Obrigada pela leitura e comentário, JP! O que eu queria nesse conto era deixar tudo para o leitor, não explicar nada e ver o que ele deduzia do texto. Gostei muito de escrever esse conto! Feliz que tenha gostado! 😘