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Detox Literário.

Quarenta Segundos – Conto (Vladimir Ferrari)

Não importa quão absurda seja uma mentira, se é a única possibilidade de escapar. Não importa quão óbvia seja a verdade, se é a de que você nunca conseguirá escapar.

Martin Cruz Smith – Parque Górki

Ofegava dentro da enorme chouba de astracã e o restante das roupas grossas. Não importava o peso. A função daquele arsenal de peles e pelos, era protegê-lo do frio. Apesar da brisa — uns cinco nós, apenas — a temperatura marcava quase quarenta abaixo de zero. E parado, fazendo a mira, tudo ficava pior.

Sua presa estava roendo o gelo, logo abaixo do barranco de neve onde se ajoelhara. Cabeças de peixe ou algo do tipo. O pelo castanho escuro brilhando em contraste com a vastidão branca que os cercava. O rifle de caça já lhe rendera uns bons dólares, com as outras trinta e duas peles daquela temporada. Insistiu em ficar um dia a mais. Os outros foram embora naquela manhã. Teria a cabana só para si, logo mais. Era só mais um tiro, uma pele e adeus.

Apoiou a lateral do corpo em um tronco na borda do precipício. Uma encosta de uns dez metros, íngreme, até a borda do lago. Teria de contornar, quando fosse recuperar a zibelina. Um declive mais à frente, levava ao que parecia ser uma praia às margens do lago. Seu olhar estava lá embaixo. Um pequeno monte de neve entre ele e o alvo. Um caroço de uns vinte e poucos centímetros de altura. O animal parecia arrancar pedaços do que estava escondido ali atrás. O tiro tinha de ser preciso, na pequena cabeça. “Nada de estragar peles” — lhe ensinara o pai.

Há segundos especiais antes de apertar o gatilho. Segundos onde a precisão se manifesta e você, como caçador, deve estar atento. Como uma ave fugidia, o tiro certeiro aparece entre o momento de aspirar e o de expirar. A pausa, onde a firmeza do braço e a pontaria não podem lhe trair. O pequeno mustelídeo abaixava a cabeça, escondendo-se atrás do monte de neve e quando arrancava um naco de sua presa, erguia-se e girava os olhos, para lá e para cá, mastigando.

Bang! No alvo! Crack! Hein?

O encaixe da coronha no ombro fora perfeito. A respiração controlada. A presa, devidamente morta. O movimento reflexo do joelho, porém, forçou o chão e a beirada toda ruiu. Gregtschenko perdeu o prumo. A onda branca, com rochas e detritos rolou pela encosta, chocando-se com estrondo no lago gelado. Suas mãos, em desespero, buscaram apoio ao sentir-se n’água. Em vão. Um destino inexorável.

Quando seu corpo afundou, sua mente não soube o que pensar. A última palavra pronunciada foi um xingamento e depois, um vazio. Os sentidos responderam melhor. Sorveu o ar pela boca e a fechou, garantindo o suprimento de oxigênio. Os olhos viram o tronco descendo e subindo na massa de água gelada. Tentou girar o corpo. Sentiu as roupas se encharcando. Agora, seriam sua mortalha. Não pode sequer pensar qual seria a probabilidade de haver uma pedra submersa, para servir-lhe de apoio. Deixar aquela armadilha, era “o” desejo? Não. Sobreviver, se possível.

Foi nesse momento que o tronco o acertou no rosto. Sentiu o rosto arder, a dor e mais desespero enquanto se agarrava. Forçou o corpo para o alto, para a superfície, o ar. O cérebro o instigava a lutar sem esmorecer. As articulações dos dedos congelavam. Estava sem luvas. Eram um peso extra nos bolsos, agora. As pernas moviam-se com o restante das forças. O calor fornecido pela vodka era uma brasa a se apagar. O cantil de cobre perdeu-se. Agora era um inimigo cruel, pois tornava seu sangue mais ralo. Mais fácil de congelar.

No susto de cair, o coração bombeava sangue, álcool e adrenalina. Não pensou absolutamente, nem por um instante, nas coisas que abandonava. As dívidas do rifle, o destino das peles abandonadas na cabana, sem dono. As promessas firmadas com a família o aguardando na cidade. Ficaria sem matar a saudade dos carinhos da esposa e dos filhos. A bebê recém-nascida, alegrando seu lar. Era-lhe impossível dedicar milésimos de segundos a pensar nos seus amores e alegrias. Só pensava sobreviver.

A mais cruel de todas as conjecturas a respeito das numerosas considerações às portas da morte, consistia no fato de ser simplesmente impossível elencar prioridades. O destino o espreitava de algum ponto ali perto. A cabeça fora d’água, um braço agarrado ao tronco, outro remando até a borda. “O barranco não estava na margem?” Muita coisa caiu sobre o gelo, além dele. Sair era sua meta.

Não tinha a menor consciência de que deveria fazer uma imagem do todo complexo e abrangente universo de sua existência. Dedicar todo o carinho a isso. Escolher uma imagem especial e única para marcar o fundo dos olhos. Ter na mente, coisas que Gregtschenko não poderia desperdiçar.

Não havia tempo.

Ao deixar o lago congelado, enfrentaria a brisa que baixava o marcador do termômetro, somando-se aos quarenta negativos. Uma geladeira mortal.

Não havia mesmo tempo.

O desespero não permitiu lembra-lo das histórias sobre cair em um lago congelado. O dilema de ter de escolher como morrer: dentro ou fora d’água. Era preciso escolher a última prece e sua última imagem feliz. Mas ele não se dava conta disso, queria sobreviver. Arrastando-se sobre o que sobrara daquela encosta, seu rosto lívido, suas mãos como pedras, o ar lhe faltava, o calor lhe faltava. Tudo pesava mais.

Seus últimos quarenta segundos no mundo.

Poderia ter retornado sobre os próprios passos, empreendendo uma jornada de duas milhas até o abrigo da cabana. Havia bastante lenha e quando o vento e o frio oferecessem uma trégua, poderia partir com a moto e a preciosa carga de peles, rumo à vila. Havia gasolina suficiente.

Ver o animal despreocupado, alimentando-se, fora um convite. Seus instrumentos marcavam trinta e oito e meio graus negativos. O vento trazia o mercúrio ainda mais para baixo. Tirou as luvas e posicionou-se para o tiro. Seria a última bala da temporada — se não aparecesse nenhum lobo ou urso diante dele, claro. Ao apoiar o joelho esquerdo na neve e deixar o corpo encostar-se à lateral do tronco do pinheiro, desconsiderou a paisagem ao seu redor.

Era um declive perigoso sim. O tronco do pinheiro parecia sólido fincado na beirada, com raízes sob a neve. Nada indicava ser arriscado. Apoiar-se daquele modo, era até natural. Nunca saberia se a vodka atrapalhou seu discernimento, é verdade. O barulho do solo cedendo e o tronco seco tombando o surpreendeu. A zibelina jazia no gelo. O deslizamento levou tudo ao redor dele. Escorregaram rapidamente em direção ao lago. Gregtschenko não pensou em arrepender-se do último tiro.

Não tinha tempo para isso.

“A temperatura da água é mais amena do que na superfície”

Por que pensava nisso agora? Os lagos congelados naquela parte do Irkutsk tinham, no máximo, espelhos de três ou quatro centímetros de espessura. A temperatura havia caído de vez, nas duas últimas semanas. Extraordinariamente, a previsão de encerramento da temporada era dali a outras duas semanas. Atingira os cinquenta abaixo de zero durante a noite passada. O inverno fechava o cerco ao redor. Aquela queda, só facilitou as coisas.

Arrancou a chouba, com esforço enorme. Era cada minuto mais difícil sorver o ar. A dor no rosto deixara de existir. A sensação da água na pele se perdia a cada esforço para encher os pulmões de ar. E o ponteiro de segundos do Ceifador, girou. Não era uma saída. A verdade estava ali e sua mente agarrava-se a última esperança.

Outros segundos e não sentia suas pernas. O rosto já estava dormente, coberto pelo gelo. As células na ponta do nariz, começaram a morrer.

Não atinou, em seu cansaço extremo, que os pés se mantinham dentro do lago. Os tremores vieram e o raciocínio não ajudou em nada. Todo o corpo perdeu a sensibilidade. Os olhos azuis se arregalaram para o céu cinzento. O último suspiro ficou preso antes de passar pelas cordas vocais.

7 comentários em “Quarenta Segundos – Conto (Vladimir Ferrari)

  1. Antonio Stegues Batista
    21 de outubro de 2024
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Olá Vladmir. Conto curto, contando os últimos segundos de um caçador imprudente, que não teve tempo em se deter para pensar na família, queria mesmo, obvio, salvar-se. A ação se passa numa região gelada da Rússia, próximo da Mongólia, longe de Moscou, ambiente que Martim Cruz Smith escolheu para ambientar seu primeiro livro de uma série com o detetive Arkady, Parque Gorki. Eu comprei esse livro num sebo, no final dos anos 80, fiquei impressionado pela capa, pela paisagem branca, com uma mão saindo da neve em pleno parque da área central de Moscou, sendo naquele ano ainda, capital da União Soviética. Claro, estou falando isso por causa daquela citação referente ao livro no início do conto. Ficou legal. Parabéns.

  2. ambrozzinni
    21 de outubro de 2024
    Avatar de ambrozzinni

    Oi Vladimir.

    Gostei do seu estilo da sua escrita. As palavras usadas foram elegantes. Você detalhe bem algo que, se fosse para o audiovisual, duraria, estimo, um minuto, mais ou menos.

    Achei rico a descrição dos pensamentos do personagem, na hora do desespero.

    Identifiquei uma ironia do destino: o caçador acaba sucumbindo pela natureza. A última bala foi também a última caça.

    Fiquei curioso quanto as referências dos pensamentos do personagem no momento em que sabe que está morrendo.

    Alguma ligação especial com a Rússia/Sibéria?

    Parabéns!

  3. Gustavo Araujo
    20 de outubro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    Ótimo conto. Visceral, honesto, real. A descrição dos momentos derradeiros da vida de um caçador, que passa à situação de presa da própria natureza devido ao acaso, ou melhor, devido à confiança exagerada que tinha e si mesmo. Não há espaço para grandes digressões, nostalgia ou apego a qualquer memória. O que o protagonista quer é sobreviver, ainda que tivesse consciência de que seu destino estava selado assim que caiu na água. Nada obstante, creio que uma revisão faria bem ao conto, já que algumas descrições ficaram repetitivas. No mais é um excelente texto.

  4. Priscila Pereira
    14 de outubro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Vlad! Tudo bem?

    Nossa, é um conto forte. O retrato muito bem feito dos últimos minutos de alguém. A incredulidade, a luta pela sobrevivência, a negação… Não sei como é, mas parece que sempre iremos nos recusar a encarar a morte, faremos o que for possível para afasta-la. E você conseguiu retratar isso perfeitamente. O protagonista se negava a aceitar que aqueles eram seus últimos segundos.

    Muito bem escrito e descritivo na medida certa. Um ótimo conto! Parabéns!

    Até mais!

  5. Marco Saraiva
    14 de outubro de 2024
    Avatar de Marco Saraiva

    O conto narra os últimos momentos de Gregtschenko na terra. É um daqueles contos interessantes de ler, por ser na verdade uma espécie de exercício descritivo. Aqui não há trama ou desenvolvimento de personagem. Ao invés disso, mergulhamos na mente de Gregtschenko e o acompanhamos nos seus momentos finais. É uma espécie de estudo de movimento. E quando é bem escrito assim, vira também um estudo de estilo. Muito bom.

    Para mim a proposta do conto (o que fez ele brilhar) é a sugestão de que a hora da morte é algo muito mais instintivo do que controlado. Gostamos de achar que passaremos os nossos últimos segundos pensando nas pessoas que amamos e nos nossos momentos felizes, mas em horas assim o instinto de sobrevivência bate forte, e provavelmente passaremos os nossos últimos suspiros mergulhados em esperanças tolas e esforços inúteis.

    É um conto fúnebre e nem um pouco feliz, mas uma boa leitura!

  6. Kelly Hatanaka
    14 de outubro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Oi Vladimir.

    Suas ambientações são incríveis, muito detalhadas e bem feitas. Você tem o dom de colocar o leitor na cena.

    Este foi um conto focado em narrar os pensamentos de um homem em seus útlimos segundos de vida, naquele momento em que já se sabe que vai morrer mas, ainda assim, se luta por uma chance de sobreviver. Foi um texto curto, bastante descritivo e muito bom de ler.

    Parabéns.

    Kelly.

  7. Givago Domingues Thimoti
    13 de outubro de 2024
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Bom domingo, seu Vladimir! Tudo bem?

    Acho que a área off deu uma pausa enquanto todo mundo escreve para o desafio. Enfim, vou deixar aqui meu comentário-contribuição 

    Pelo que me lembro dos seus contos, esse tem algumas semelhanças com o seu trabalho, de uma forma geral. É um conto com bastante descrição e, por isso, detalhado. Imagino que por conta disso, você dedica um tempo considerável para pesquisar o cenário e permitir a inserção do leitor no ambiente do personagem. Acho isso muito louvável e inspirador.

    Para além dos elogios, eu senti um pouco de falta de profundidade do protagonista justamente no clímax. Você se deteve mais no dilema do personagem em se salvar ou não de uma situação sem salvação do que na famosa cena “revisão da vida toda” do personagem (embora isso tenha sido citado, creio eu). Em decorrência disso, não consegui me conectar com o caçador e fiquei mais com a sensação de “menos um caçador no mundo” do que algum pingo de empatia.

    Além disso, também senti que algumas construções não foram tão bem feitas: repetições de termos (tem algum trecho que duas frases iniciam com “o rosto”), vírgulas separando sujeito da oração…

    Enfim, obrigado pela contribuição!

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Informação

Publicado às 12 de outubro de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .