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Detox Literário.

O louco no Hades – Crônica (Sonia Zaghetto)

Todo mundo ama Vincent van Gogh. Especialmente agora, que ele está morto e seus ataques de raiva já não envergonham ninguém. Agora, quando já não escreve pedindo dinheiro aos parentes, não assedia as primas nem se casa com prostitutas, perde empregos, diz verdades inconvenientes ou tropeça, bêbado de absinto, pelas ruas.

Van Gogh comove multidões em 2019. Mas, em 1890, era objeto de riso nas ruas e de fuga dos amigos. Apedrejado pelos moleques, tido como louco por familiares, ninguém o desejava por perto. Desagradável, arrogante, insuportável e fonte de desgosto eram expressões recorrentes para identificá-lo.

Enquanto houve vida, igualmente houve enfado, raiva, distanciamento. Theo o amparava – e ele morreu nos braços do irmão amado – mas quem disse que foi fácil esse relacionamento tão idealizado nos dias de hoje? Cartas a Theo – livro publicado por Johanna, cunhada de Vincent – nutriu o mito dos irmãos que se amavam profundamente e foram sepultados lado a lado em Auvers-sur-Oise. Só não nos demos conta que eram textos selecionados. A realidade era um Theo sobrecarregado pelo irmão, escrevendo aos pais e irmãos para apagar os incêndios de Vincent, lutando com seus próprios problemas psiquiátricos e para sustentar a si, à família e ao irmão que não era mais dono de si mesmo.

Ironicamente, o mais incompreendido em vida é o mais amado quando a carne já se desfez, os ossos se tornaram pó e os quadros são avaliados em milhões.  Ah, a morte, que cobre com seu manto de doçuras as mais estranhas criaturas. Ah, o tempo, que apaga a realidade, deixando no lugar apenas a lenda.

Esquizofrenia, Depressão, Transtorno Bipolar. Tudo isso afetou alguns dos maiores artistas que já passaram por este mundo: van Gogh, Lord Byron, Virginia Woolf, Sylvia Plath, Hemingway, Edgar Allan Poe, Tchaikovsky, Schubert, Munch. Quase todos sucumbiram à dor e escolheram o suicídio – alguns fizeram escalas em drogas ou álcool. Uma fuga do inferno de estar aprisionado em si mesmo. Amá-los hoje e à distância é fácil. Vivem apenas em suas obras magistrais. Só restou o melhor de cada um. Difícil deve ter sido para os pais, amantes, filhos e amigos destes cuja mente brilhante também abrigava o transtorno.

Na vida real, lidar com um parente que tem um grave problema psiquiátrico é exasperante. Custa demais separar caráter de doença. A tendência é simplesmente rotular o doente de perverso, descontrolado, ingrato, violento, teimoso ou cruel. E alguns o são – de fato. Mas há aquela cota de sacrifício que ninguém deveria esquecer: perdoar enquanto há vida, caminhar mil passos junto com o paciente, responder com carinho à mensagem desesperada no WhatsApp, atender ao chamado no telefone, ouvir a mesma história muitas vezes, entender que a mente perturbada deturpa os fatos, espalha boatos, acusa injustamente e fere os mais queridos.  Um exercício hercúleo de paciência. Digno de santos. Santos, eu disse? Estamos tão longe disso.

Recentemente, um amigo muito querido escreveu sobre a depressão e a autoestima esmagada: “Olhar no espelho nunca é fácil: é sempre enfrentar uma imagem que eu não quero ver. Qualquer coisa é motivo para me depreciar, até uma inofensiva pinta. Mas não só isso. Eu perdi a confiança em tudo que antes eu fazia bem: escrever, estudar, defender o gol no futebol. Perdi a confiança até no simples ato de falar. Não sei mais como colocar as palavras e muitas vezes acho que ninguém quer ouvir o pouco que tenho pra falar. Já o estudo é o que mais me preocupa, pois certa vez já me vi como um pouco inteligente e não entender mais o que leio é excruciante. Não quero entrar em outras dores como a tristeza profunda, o desânimo, a falta de prazer nas coisas, a vontade de me autoflagelar“.

Imagine o que é vivenciar tudo isso, consumindo-se por dentro, enquanto na aparência nada parece estar errado: lábios corados, ar saudável. Apenas o próprio doente sabe que, lá nas camadas profundas do corpo, a mente morde silenciosamente o coração.

O amigo, que citei acima, ajuda a si próprio. Luta diariamente. Aceita o tratamento, é cuidado por um profissional excelente, tem amigos e familiares que o respeitam e apoiam. Por isso hoje guarda consigo a esperança de atravessar de volta o rio Estige, pegar a barca de Caronte no sentido inverso e pôr o pé novamente no mundo dos vivos.

Mas há os que não aceitam o diagnóstico, acrescentando para si  e os parentes uma cota extra de aflições e de lágrimas. Há poucos meses, um destes, também amigo querido, quase atravessou o rio de escuras águas do Hades.  Foi por um triz. Não fossem os amigos se apressarem, estaria a esta hora pagando o tributo ao barqueiro mitológico. Enquanto escrevia este texto, pensava nele respirando por aparelhos, e ouvia a voz grave de Leonard Cohen. Era um dos cantores favoritos do despedaçado amigo que quase partiu. Na época, escutei ao longe o som das críticas, os murmúrios de preocupação, o eco da raiva que sua carta de despedida provocou e sussurrei entredentes: atire a primeira pedra quem nunca travou uma grande batalha contra o monstro interno, o vício ou a tendência mórbida. Grite mais alto aquele que venceu o boicote da própria mente. Desdenhe dessa tragédia o que nunca perdeu uma batalha para si mesmo.

A compaixão é uma arte difícil. A paciência incondicional é para poucos. Raríssimos, aliás.

……………………..

Texto extraído do blog da autora, com a devida autorização.

7 comentários em “O louco no Hades – Crônica (Sonia Zaghetto)

  1. Luiz Eduardo de Andrade Reis
    18 de março de 2025
    Avatar de Luiz Eduardo de Andrade Reis

    os textos de Sonia Zaghetto são uma delícia para saborear, ler e reler. Eu confesso que nunca me arrependi e deixei de saborear uma boa leitura. O melhor alimento para a alma é uma boa leitura!

  2. Marco Aurélio Saraiva
    13 de junho de 2024
    Avatar de Marco Aurélio Saraiva

    Excelente texto, uma espécie de catarse. Nunca passei por nada tão sério, mas começo a notar melhor muitas coisas em mim e em pessoas queridas, graças às minhas leituras sobre saúde mental. É um assunto necessário, por que muitos, especialmente os mais velhos, não dão muito valor a este tipo de estudo.

    Espero que seu amigo esteja melhor agora. 🤞

  3. Anderson Prado
    11 de junho de 2024
    Avatar de Anderson Prado

    É sempre um prazer encontrar a Sônia por aí, ainda mais no EntreContos!

  4. Kelly Hatanaka
    11 de junho de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Um texto lindo sobre um assunto espinhoso. Uma defesa que não soa como uma defesa, argumentos que não soam como argumentos, um texto que soube criar empatia, mesmo em quem desconhece os meandros desta dor. Parabéns!

  5. Gustavo Castro Araujo
    9 de junho de 2024
    Avatar de Gustavo Castro Araujo

    Tive o privilégio de ler esse texto da Sonia ainda em 2019, quando ela o publicou no perfil que mantinha (e que ainda mantém) no facebook.

    Como fã da arte de Van Gogh, leitor orgulhoso da biografia fantástica escrita por Steven Naifeh e Grogory White-Smith, comecei a leitura animado, reconhecendo aqui e ali os traços da personalidade complicada do mestre holandês. Mas logo percebi que a intenção da Sonia era outra: discutir o abismo de (auto)abandono por que passam vítimas de doenças mentais, em especial aqueles que sofrem de depressão, o mal dos nossos dias, e a importância fundamental dos amigos e parentes para os resgatar.

    A crônica ajuda muito nessa compreensão, já que captura o leitor com o anzol das cores pós-impressionistas. Em seguida, à luz de Dante, oferece a esse mesmo leitor a oportunidade de perceber seu papel em casos dessa natureza.

    Em suma, é um texto que chama a atenção pela capacidade de persuasão, dado seu tom quase confessional. Uma pequena obra prima que encanta por se revelar tão necessária quanto bela.

  6. Pedro Paulo
    9 de junho de 2024
    Avatar de Pedro Paulo

    Texto fascinante. Usa arte como uma porta para refletir sobre saúde mental, escrevendo com uma honestidade quase confessional que provoca quem lê, espelha a mente de grandes artistas atormentados passados em nossos interiores. Recorre até à mitologia, mas nos aproximar – e por pouco não chegar a – da morte.

    Como professor, lembrei-me de um aluno que se interessa muito por Van Gogh e pensei em mandar para ele, mas depois que realmente entendi o propósito do texto, imaginei que poderia tragar mais alunos para a reflexão trazida pela história.

  7. Priscila Pereira
    9 de junho de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Perfeito!! Gostei demais!

    Ninguém critica as doenças do corpo, mas as da mente são incompreendidas e marginalizadas ainda, infelizmente.

    Parabéns para a autora!

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Publicado às 9 de junho de 2024 por em Crônicas e marcado .