Num terreno baldio, esquecido até pelo proprietário, concentra-se entre os montes de lixos de toda natureza, uma parcela, apenas mais uma parcela da sociedade. A parcela dos esquecidos, dos mortos-vivos, dos viciados em crack e outras drogas.
Em um ambiente horrível,
Empesteado de sujeira,
“Vivem” vários infelizes
Em meio às varejeiras –
Muito mais mortos que vivos,
Menos carne, mais caveiras.
Ermitão é um deles. Negrão, cabelos rastafári, ensebado pelo limo de vários anos sem ver limpeza; magro, verdadeira caveira ambulante. Não se sabe se em suas veias ainda corre sangue ou se apenas as malditas drogas. Chegou ao terreno à questão de um ano. Além dele, contam-se uns dez infelizes por lá.
Ermitão combina com Bagaceira uma ação:
– Se liga aí Bagaceira:
Vamos sair pra roubar
Pois eu já estou na fissura
De uma pedra fumar,
Eu já tô tremeno Jão!
Tenho medo de apagar…
Bagaceira:
– É nóis na fita Ermitão!
Eu também estou a perigo,
Vamos nessa sangue bom!
E os dois saem para caçada de alguma vítima. Eles sabem que não pode ser qualquer um. Eles não têm força o suficiente para dominar um homem forte, por isso a vítima tem que ser, preferencialmente, uma mulher; uma velha seria o ideal.
Os dois são seguidos de perto por várias criaturas as quais eles não podem ver. Estas criaturas têm como líder alguém que atende pelo apelido de Zeloco. É ele quem sugere ao Ermitão que ataque uma senhora que passa pela calçada. Ermitão diz em pensamento “É essa!”
Ermitão:
– Olha a veia aí cumpadi,
Se liga Bagaceira!
Dá um capote na véia
E vê se não dá bobeira!
Arranca a bolsa da vaca
E pega logo a carteira!
Bagaceira:
– Passa a bolsa logo tia!
E não faça nem um piu,
Senão te mato, sua vadia!
Roubo executado, os dois correm para o terreno baldio. São seguidos de perto por Zeloco e sua turma. Ambos não percebem, evidentemente. Em um canto do terreno, ao lado de uma enorme pedra, “trabalha” Veneno. Veneno já está no posto a mais de um ano. Sujeito alto, forte e muito cruel. Desde quando viu a mãe morrer de overdose de crack, prometera a si próprio que jamais voltaria a usar “essa porra!”, como sempre pensava.
Ermitão:
– E aí, irmão Veneno, firmão?
Conseguimos um celular…
Em troca dele queremos
Uma pedra pra fumar!
Pode ser, ó sangue bom,
Com isso dá pra pagar?
Veneno:
– Não quero essa porra ai!
Aqui só dinheiro, Jão!!!
Mas vou dar um adianto,
E só hoje Vacilão!
Amanhã dá os seus pulos:
E traz dindim na minha mão!
Bagaceira:
– Valeu sangue bom!
É nóis na fita mano!
Amanha nóis paga irmão!
Ermitão sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha, mas a “fissura” de fumar a pedra falou mais alto.
Do seu lado, Zeloco e os demais já estavam com os olhos esbugalhados de ansiedade (mas ninguém ali podia vê-los, embora a influência que eles exerciam naqueles infelizes era visível nos seus olhos tingidos de vermelho devido à “vida” miserável que levavam…).
Pedras na mão… cachimbo de antena de carro e garrafa pet… Ambos viajam para o paraíso… mas, decorridos alguns segundos, eles retornam ao inferno, ou pior, para o terreno baldio. Zeloco e os demais, ainda extasiados pelo efeito alucinógeno da droga, encostam na pedra (isso mesmo: os viciados consumiam a droga, mas não estavam só nesta diabólica prática!).
Zeloco sabe que aqueles dois infelizes não aguentarão por muito mais tempo naquela rotina de consumo cavalar dos entorpecentes. Sendo assim, ele já está concentrando todos os seus esforços em persuadir Veneno, pois ele é novo e cheio de saúde; “Aguenta algum tempo antes de morrer…”, arquitetava em pensamento.
PARTE II
Outro dia, outro assalto. Ermitão e Bagaceira aborda dessa vez um jovem estudante. O menino acabara de sair da escola particular e se dirigia para o carro do pai, um policial da Rota que, naquele dia estava de folga, por isso aproveitou para levar e buscar o filho na escola. Levou um grande susto quando viu aqueles dois sujeitos imundos tentando tomar a bolsa com o notebook do seu filho. Sacou sua Magnum 44 e saiu correndo em direção aos três.
Policial:
– Os dois! deitem no chão!
– Vai para o carro meu filho; toma, pegue meu celular e liga lá pro quartel!
Assim que o menino chegou ao carro, fez o que o pai havia lhe pedido. Logo depois ouviu seis tiros seguidos. Quis voltar, mas foi contido pelo pai que chegou correndo ao carro.
Policial:
– Os desgraçados reagiram…
Parte III
Zeloco
– Vocês morreram e não foram pro céu!
Aqui é o que se chama de beleléu!
E aqui, quem manda, sou eu, Zeloco!
E loucura, pra mim, é pouco Jão!
Sou coisa ruim, emissário do capeta!
E é bom num vacilar, senão é muita treta…
Ermitão e Baguaceira foram “convencidos” a fazer parte do bando do Zeloco.
Parte IV
Todos eles seguiram em direção à pedra onde descansava Veneno. Logo veneno se viu envolvido por pensamentos estranhos. Sentia uma angústia muito grande. De repente era como se sua mãe estivesse ali, ao seu lado, oferecendo-lhe uma pedra. “Não!” Berrou ele, mas agora era verdade, ela estava ali, bem ao seu lado, fumando uma pedra. Ele podia ver as suas veias dilatadas e seus olhos esbugalhados num vermelho sangue a fitá-lo com ódio. Sua cabeça começou a girar e ele foi saindo de si. De repente ele percebe que não está ali somente com a sua mãe, mas sim rodeado por uma multidão de infelizes, dentre os quais, Ermitão e Bagaceira. “Mas vocês não estão mortos, seus infelizes?!”
Saiu gritando, pulou o muro e não percebeu o enorme caminhão que vinha em alta velocidade. Seu corpo foi arremessado contra o muro. Ao lado, caído, estava um cachimbo improvisado com o qual ele havia consumido algumas pedras de crack.
Mais um para o bando do Zeloco.
Caramba, só li agora a crítica construtiva do amigo Fábio. Agradeço muito meu amigo.
Olá, Isaias! Que bom vê-lo na EntreContos!
Cara, que conto pesado, hein. Eu gostei muito de algumas ideias, mas, talvez, você seja iniciante na prosa, assim como sou iniciante na poesia. Digo isso por causa de alguns erros e da forma do conto.
Volta e meia, e no decorrer da narrativa, você mudou o tempo verbal. Numa prosa é primordial que você mantenha uma única linha temporal na narrativa, seja no passado, seja no presente. Você pode viajar no tempo, claro, fazer um ato no presente e outro no passado, mas esse não é o caso desse conto. As mudanças do tempo verbal ocorreram de um parágrafo para outro.
Além disso, o tom da narrativa lembra muito uma poesia. O ritmo das frases, etc. Gostei MUITO dos diálogos em verso, como poemas, mas a narrativa em prosa requer uma fluidez mais simples. O ritmo poético constante pode cansar o leitor.
Vou destacar um trecho e reescrevê-lo no ritmo comum da prosa:
“Roubo executado, os dois correm para o terreno baldio. São seguidos de perto por Zeloco e sua turma. Ambos não percebem, evidentemente. Em um canto do terreno, ao lado de uma enorme pedra, “trabalha” Veneno. Veneno já está no posto a mais de um ano. Sujeito alto, forte e muito cruel. Desde quando viu a mãe morrer de overdose de crack, prometera a si próprio que jamais voltaria a usar “essa porra!”, como sempre pensava.”
“Os dois voltaram correndo para o terreno baldio com a bolsa da velhinha. Ermitão ainda sentia pena das vítimas, apesar de Bagaceira afirmar que o tempo ajudaria nessa questão. E a droga também, claro. Zeloco e sua turma, sempre colados na dupla, acompanharam os passos até o cantinho do Veneno. Esse, por sua vez, sempre olhava para os dois com desprezo. Ouviu falar que sua mãe morreu por causa do crack. Talvez por isso não era usuário dela, apesar de aparecer todo dia para vendê-la.”
Viu a diferença? O foco da narrativa foi no Ermitão, inserindo informações dos outros personagens sem precisar mudar o foco. Isso é importante porque o leitor precisa criar uma empatia maior com o protagonista enquanto se situa com o ambiente, personagens e situação.
Mas reforço: gostei muito da ideia dos diálogos como pequenos poemas. Me deu algumas ideias legais, haha.
Tente participar de algum desafio para praticar a prosa! Terá muitas dicas! A maioria do pessoal que frequente esse ambiente é gentil e consegue criar ótimas críticas!
Escrevi este conto há algum tempo. E ainda fico horrorizado quando vejo uma nova cracolândia nascendo!