EntreContos

Detox Literário.

Hamilton – Conto (Roberto Vagner Reis)

Hamilton gostava de ver a luz do sol nascente passar pelas frestas da janela e fazer desenhos sem tela, na poeira suspensa. Acordava sempre bem-disposto, e logo acompanharia os colegas de escola passando por sua rua comentando quase sempre sobre futebol; assunto que não entendia e admirava alguém de sua idade entendesse. Os colegas iam com o pai ou a mãe, mas Hamilton ia sozinho. A escola era próxima à sua casa.

Naquela manhã, um embolado de alunos se formou no pátio da escola, fugindo à rotina das filas. Uma festa tamanha e ninguém explicava o motivo. Hamilton evitou um grupo de meninas conversando um pouco à frente e lançava olhares divertidos para ele. Sabia bem o significado: ainda ontem, durante o recreio, foi surpreendido por risinhos vindos delas até apontarem para sua calça exibindo uma abertura suficiente para deixar à mostra seu pintinho bem filhote. Envergonhado, nem contou o acontecido para a… mãe (não se habituara totalmente ao novo significado da palavra) para não escutar as advertências diárias por se recusar a usar cueca.

O diretor da escola, acompanhado dos professores, apareceu com uma expressão mais séria que o habitual. Após trocarem comentários, ele ergueu a mão e com pedidos insistentes conseguiu atrair a atenção de todos. Foi breve: naquele dia não haveria aula devido a morte de uma antiga professora que marcou a história da escola e a formação de várias gerações. Aos alunos, recomendou uma homenagem àquela senhora e bom comportamento.

Hamilton seguiu para casa feliz e, sem remorso por isso, tinha o dia todo para aproveitar. Era certo um sentimento seu de resistência aos mortos; por causa deles, não comemorava direito seu aniversário. Tinha nascido, veja só, no dia da partida de outros, motivo para falas baixas e visitas a cemitérios com flores. Para completar sua relutância, tinha um medo religioso da morte desde o dia em que presenciou algumas pessoas, juntamente com o pai, confusos e perplexos implorarem pela vida de sua mãe em rezas e em vão.

Em casa, pés no chão, correu logo para o quintal onde tinha seu caminhão vermelho de lata e carroceria coberta por um plástico preto e duro.

Sempre com trabalho a fazer em uma estrada cheia de curvas onde somente um motorista habilidoso como ele poderia guiar. Eram assim os seus dias. Seu pai nunca brincava e, ou estava trabalhando ou estava recolhido no quarto tomado por alguma doença. Algumas vezes, Hamilton abria a porta do quarto do pai cheio de intensa alegria e se deparava com um corpo longo, silencioso e velho.

A manhã estava calma até Tonhão Bigode, o primo quatro anos mais velho, rebelde e criado nas ruas, chegar falando alto. Antônio era maior que os meninos de sua idade e tinhas braços longos e esquisitos; para completar, uma mancha fazia sombra sob o nariz causando a impressão de bigode formado.

“Vai lá ver a morta?” perguntou Tonhão.

“Não sei!” Respondeu com os olhos concentrados na manobra que fazia. Chegou a se deitar todo, deixando o rosto marcado por pedrinhas e pó. Mudou, rispidamente, a marcha do caminhão com um raspado na garganta.

“Eu, não. Nem ligo. Nunca vi e nem é parente. Você não vai, eu sei. Tem medo. Medroso e bobão!” Abriu uma risada indecente.

Hamilton continuou calado aguardando o que o primo faria a seguir. Uma chuva de pingos grossos, como previra, começou pela estrada fazendo letras gregas, lavou o caminhão para, em seguida, acertar sua cabeça. Tonhão Bigode fazia agora o que mais agradava: marcava seu território com um mijo grosso e cheiro forte atingindo quem estivesse próximo. Enquanto isso ria seu riso debochado, mais ainda ao colocar o primo para correr e pedir ajuda ao escuro de debaixo da cama do pai onde ficava até quase dormir. Na sala, o cuco avisava a proximidade do almoço.

Aquela conversa fez voltar aos pensamentos de Hamilton a recomendação do diretor e deu-se conta do sentimento estranho que o incomodava naquela manhã. Imagens vagas causavam uma mistura de dor e medo. Sentia saudades. Esse mal-estar passageiro e impreciso roubava sua paz e o levava a se lembrar da morta; da morta, não, por não a conhecer, mas, do encontro com ela cuja aparência imaginava ser assustadora e, ao mesmo tempo, conhecida. Sentia, no entanto, um desejo cada vez mais forte de enfrentar esse medo. Seu primo chamando-o de bobo, a ausência de seu pai, sempre ocupado para socorrê-lo, os cuidados quase exclusivos da… mãe, com Clara, sua meia-irmã, e o risinho doce e amargo das meninas, cozinhavam uma raiva de intensidade crescente e resultado imprevisível.

Pela hora do almoço, receberam a visita de um tio materno que poucas vezes viam e estava ali por causa da professora. Logo na entrada, colocou uma nota de cinco entre os dedos de Hamilton. Era seu padrinho por algum motivo e se sentia na obrigação desse carinho.

Seguiam todos em direção à cozinha quando Tonhão, que vira tudo pela janela da sala, puxou Hamilton pela camisa e exigiu a entrega do presente. “Vai passando o que tá na mão”, foram as palavras rudes ditas enquanto prensava o corpo miúdo e sujo de terra. Hamilton ficou surpreso ao descobrir a presença do primo e, sem saber o que fazer colocou os braços nas costas dizendo não ter nada nelas.

“Eu vi, seu bobão; acha que me engana ou sou bobo como você?” Tonhão Bigode prensou mais um pouco.

Hamilton estava prestes a desabar em choro, mas, os sentimentos de infelicidade percebidos o encheram de coragem.  Passou a mão fechada sobre os olhos e disse, limpando o suor, para Tonhão agachar, fechar os olhos e abrir bem a boca. “É coisa de comer” falou, seguro. Tonhão, desconfiado, resmungou não precisar daquilo e era só entregar. Mas, não houve recuo.  Hamilton só entregaria nessa condição ou nada feito, disse surpreso com tamanha ousadia. Foi ameaçado de receber muitos tapas se fugisse sem entregar enquanto se acomodava sobre os calcanhares, olhos fechados, boca escancarada, aguardando o sabor desconhecido.

Paralisado pela cena, Hamilton quase perdeu o tempo certo da execução de sua inesperada vingança. Virou-se de costas e aproximou-se o suficiente do rosto do primo soltando uma curta saraivada de peidinhos. Afastou-se sem correr certo de receber o castigo prometido. Tonhão Bigode ficou menor, sem graça, com o rosto muito vermelho mal conseguiu gaguejar qualquer palavra. Saiu apressado olhando para o chão. Recebeu também de Hamilton seu quinhão diário.

O cuco cantou algumas horas sem que Hamilton desse atenção, e todo aquele sentimento de desconforto pela morte da professora reapareceu torcendo seu estômago; mas não durou muito. Com naturalidade, seguiu rumo ao velório. Distraiu-se pelo caminho, chegando a esquecer o motivo de sua caminhada. Virou à esquerda e entrou pela rua que descia em curva, calçamento ruim e casas com recuos diversos.  Do lado de fora havia muitas pessoas e observou, sem entender, que conversavam e riam apesar do motivo de estarem lá.

A casa era pequena com uma porta simples pintada de um azul vencido e ladeada por duas janelas ao rés do chão, exibindo as rugas do tempo. A parede era branca nos locais onde ainda havia reboco. Várias áreas desnudas mostravam tijolos de diferentes amarelos formando um triste mosaico. Hamilton observava tudo e não hesitou em entrar. Desviou-se por entre as pernas até conseguir chegar próximo à sala onde a professora estava.  O interior não era muito diferente da fachada, com paredes cheias mofo em seus cantos e quadros de santas severas. Um homem de sorriso incompreensível, preso entre elas, acenava com dedos em riste. Velas soltavam fumaças escuras e cheiros fortes misturando flores e pessoas. O ambiente triste fora reconhecido.

Perdido em suas observações ouvindo rezas e lamentos sussurrados em vozes distintas, sentiu súbito suas pernas tremerem e pesarem sob medo percorrendo o corpo. Teve vontade de fugir, mas, dominado, acalmou-se ao ver muitas pessoas ao seu lado.

O grito desafinado, como de animal agredido, arregalou-lhe os sentidos. O viúvo surgiu amparado, passos lentos e arrastados, entre silêncio e choro, soltava sua dor, indiferente aos olhares. Passou por Hamilton quase chegando ao corpo da mulher onde gritou arrebatado: “Estou sozinho!” “Tudo acabou!” Hamilton, desconcertado com as calças molhadas, passou rapidamente as mãos pelas suas.

Fora da casa e respirando ar fresco, longe do peso dos lamentos e das rezas, Hamilton ficou satisfeito por ter se comportado bem e já não tinha medo. Era surpreendente a leveza sentida, com céu azul claro e um sol que começava a abrir mão de todo o seu fulgor proporcionando prazer egoísta de estar vivo. A cena vista foi libertadora. Mas, muito melhor, lembrou-se, entre risos, da cara do Tonhão (Anos mais tarde entenderia o primo). Voltou para casa confiante e feliz; semana que vem vai ter festa.

Publicidade

E Então? O que achou?

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Informação

Publicado às 23 de dezembro de 2019 por em Contos Off-Desafio e marcado .
%d blogueiros gostam disto: