
Seu Egydio sempre gostou de histórias de mistério. Desde menino, devorava tudo que era livro de Agatha Christie, Alan Poe, Conan Doyle, Simenon e companhia.
Chegou a fazer curso pra detetive, mas quando viu que era muito arriscado e pouco lucrativo, desistiu da carreira. Acabou fazendo concurso público e virou funcionário conformado do Departamento de Procedimentos Disciplinares e Desenvolvimento de Pessoas do Ministério da Agropecuária.
Mesmo assim, nunca deixou seu hobby de lado. Investigava a vida dos colegas, dos chefes, até do pessoal da limpeza. Xeretava gavetas, correspondências, lixeiras, a fim de encontrar algo que fosse suspeito. Um dia, encarou uma das faxineiras, que acabou confessando, aos gritos:
– Matei meu marido sim! Aquele filho da puta me batia e me traía, envenenei ele com chumbinho e não me arrependo, viu seu Egydio! Mas o senhor não pode fazer nada, foi a mais de 30 anos e já “mescreveu”[1]!
Era verdade, mas a mulher teve uma crise nervosa e acabou afastada do trabalho por motivos de saúde. Os colegas ficaram chocados e, claro, muito desconfiados com Seu Egydio. Ninguém dava mais papo pra ele no escritório. E assim, por causa dessa obsessão pelo mistério, Seu Egydio foi arrumando vários inimigos ao longo da vida profissional.
Quando se aposentou, todos no DPDDP[2] fizeram uma festa pra comemorar, com direito a bolo e espumante nacional (na verdade era Cidra, mas o pessoal não sabia a diferença).
A história da festinha vazou e acabou chegando aos ouvidos de Seu Egydio. Era pra ele ter ficado chateado, qualquer um ficaria, mas ele estava muito ocupado comemorando também, pois agora poderia se dedicar exclusivamente ao que mais gostava: mistééério…
Daí começou a futucar a vida dos parentes, da mulher, dos filhos, dos cônjuges dos filhos, dos netos, enfim, nem a empregada da família escapou. Descobriu que ela traía o namorado com o porteiro do prédio e foi o maior auê, deu polícia e tudo. Em pouco tempo, o velho virou persona non grata no condomínio e a família evitava convidá-lo para os eventos festivos.
Quando descobriu o Facebook (o neto ensinou Seu Egydio a criar um perfil, em troca de não ser denunciado à mãe por ter colado na prova de inglês), ficou logo viciado. Aquilo era um prato cheio! Dedicava-se a desmascarar as mentiras que as pessoas contavam ali, e olha que eram muitas… Investigava, procurava, encontrava e jogava na cara! Aos poucos, foi perdendo os amigos virtuais, um a um.
A família chegou à conclusão de que era melhor interná-lo numa casa de repouso, pois estava ficando maluco. É claro que ele ouviu a conversa por trás da porta, hábito costumeiro do Seu Egydio. Ficou furioso e começou ameaçar os membros da família, dizendo que ia jogar caca no ventilador caso o internassem.
Mas nessa hora, a Dona Amélia, que há mais de quarenta anos se dedicava àquele velho metido a Sherlock, ficou com pena. À noite, teve uma conversa muito séria com o marido no quarto.
Ninguém da família jamais soube o que eles conversaram. Alguns dizem que D. Amélia o ameaçou com algum segredo obscuro. Mas o fato é que Seu Egydio não foi internado, nem continuou a bisbilhotar a vida de ninguém. E por algum motivo, passou a se dedicar à lavagem da louça da cozinha. Durante os 6 anos seguintes, fazia questão de lavá-la todas as noites, antes de deitar.
Seu Egydio morreu dormindo, aos 85 anos (em condições bastante suspeitas, aliás). A família superou. Mas às vezes ainda se tem a nítida impressão de que há alguém ouvindo atrás da porta.
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[1] “Prescreveu”, em linguagem popular.
[2] Departamento de Procedimentos Disciplinares e Desenvolvimento de Pessoas
Já publicou? Vale a pena. Os leitores agradecem.
O que mais se destaca nesse conto é o gostinho de causo, de algo que realmente aconteceu. Eugydio é um personagem daqueles que parecerem que realmente existiram, tão bem que foi construído.
Confesso que o final aberto me incomodou um pouco. Torci pra ter alguma dica no texto sobre o segredo do nosso bisbilhoteiro que apenas D. Amélia (que podia ser só um pouquinho mais desenvolvida) sabia. Mas depois acabei aceitando a brincadeira e gostei desse final.
Um bom conto.
Valeu, Leo! Q bom q vc achou um tempinho.
Divertida e intrigante a narrativa; os personagens estão muito bem construídos. Fiquei curiosa com a ameaça da mulher ao marido. Abraços.
Não conhecia esse teu lado fantástico. Adorei
Muito Bom!! Parabéns ju
Hurrru! Crônica do cotidiano carioca na veia! Muito bom! Estava com saudade dessa escrita despojada.
Pois é, investigar a vida alheia com tanta profundidade e sair espalhando as particularidades de todo mundo dá nisto: antipatia e inimizade geral. A deliciosa e divertida fluidez do texto mostra a destreza e a intimidade da contista no fino trato com as palavras. Morrer dormindo mesmo aos 85 anos também pode despertar suspeitas sim, especialmente no caso do seu Egydio, mestre na investigação e na proliferação da discórdia (mais até nesta última, conforme a narrativa). Parabéns, Juliana.
Muito bom Ju! D. Amélia deve ter sido uma boa detetive!
Juliana, adorei seu Egydio. Muito bem construído, parecia até que estava vendo o velhinho fuxiqueiro.
Obrigada, Nicole! Vindo de vc. é ótimo!
Juliana, seu Egydio foi MUITO bem construído. Parecia até que estava vendo o velhote fuxiqueiro. 😉
Fiquei curiosa: o que conversaram???
Muito bom. O final em aberto dá liberdade para o leitor usar de sua imaginação para, quem sabe, um dia descobrir o que de fato ocorreu com Egydio.
Gostei do conto, Juliana. O personagem é marcante, tem personalidade. Egydio era mais bisbilhoteiro, abelhudo do que detetive e foi muita sorte não ter entrado em enrascada. O que será que a esposa ameaçou revelar? Algo bem feio, com certeza.
Obrigada, Antonio! É exatamente isso. Eu tb fico curiosa sobre o segredo q a D. Amélia sabia… rsrs