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Detox Literário.

O Fantasma (Carlos Eduardo Simão)

Desde que finalizou a obra da sua vida com a cor mais crua e intangível o artista passou a ser perseguido pelo fantasma. Não era o fantasma da obsessão ou o da soberba. Sua obra estava acima de qualquer pretensão humana. Nem o fantasma da dúvida ou da avareza. Sua arte estava acima da cobiça e do egoísmo humano também.

Desde àquele dia. O dia em que ele, o artista, o gênio da pintura, deu cores finais ao seu quadro. Cores inconcebíveis a meros mortais. O dia da sublime criação. Quando experimentou o êxtase da gloria alcançada. Glória semelhante à glória eterna. O fantasma passou a persegui-lo como uma sombra. A espátula deixada sobre a mesa revelando a fatídica cor. A espátula como uma testemunha de acusação lembrando o seu crime. A cor ainda úmida, brilhante e viva pingando. A cor agonizando lentamente gota após gota. O vermelho escorrendo pelo chão do ateliê como um fio tênue separando a vida e a morte.

Sua modelo, uma jovem encantadora, com quem manteve um relacionamento secreto, passional e conflituoso, mas totalmente alheia e insipiente quanto à plenitude da arte, estava morta. Seu corpo enterrado no fundo do quintal. Seu sangue misturado ao solo reclamava por vingança. O corte profundo na garganta como uma boca escancarada e maldita que gargalhava de desprezo por sua dor.

Depois do sucesso alcançado com sua obra prima o artista nunca mais voltou a pintar outro quadro. Por mais simples ou inexpressivo que fosse. Toda a força do seu talento expirou. Extinguiu-se no mais obscuro descaso tornando-o inútil junto à suas tintas incólumes. Mesmo assim o seu nome continuou a ser solicitado em todas as exposições e eventos ligados à arte. O fantasma da sua musa sempre presente para lembrá-lo da sua culpa. Em todos os eventos sociais ou em reuniões informais com amigos e, sobretudo, nos encontros cada vez mais esporádicos com mulheres. A boca absurda. O riso grotesco de escárnio latejando em sua cabeça.

Uma noite o artista despertou do sono tenso e dopado por remédios repleto de formas abstratas e torturadas pela angustia. Seu corpo todo molhado de suor. O fantasma ao seu lado na pose do último quadro reclamava a cor imortal. Cor que só o artista poderia conceber. Levantou-se trôpego. Cambaleante chegou ao ateliê imerso em trevas. Esperou que os olhos se acostumassem com a escuridão dissipando as sombras.

A espátula assassina com o líquido vermelho, vivo e delator pingando lentamente permaneceram nítidos mesmo antes que ele pudesse ver qualquer outro objeto desenhar-se no seu devido lugar. O fantasma voltou aos tecidos na pose inspiradora atrás do tripé com a tela ainda em branco. O artista foi até a gaveta da mesa atrás de uma pilha de quadros inacabados e pegou o revólver. Aproximou-se da tela em branco. A arma pulsava em suas mãos. Ele apontou o revólver para sua cabeça e finalmente conseguiu encher a tela com as cores imortais da sua obra definitiva.

2 comentários em “O Fantasma (Carlos Eduardo Simão)

  1. agnaldo souza
    5 de setembro de 2015
    Avatar de agnaldo souza

    Narrativa leve de uma estória pesada… Gostei, Amor proibido, crime e obsessão no mesmo conto, curto mas envolvente.

  2. Juliano MARQUES
    22 de junho de 2015
    Avatar de Juliano MARQUES

    Foi muito vacana esse jogo que fizemos, para quem não percebeu esse texto é uma resposta ao conto A cor da Imortalidade que o meu grande amigo Carlos Eduardo fez. Parabéns e sucesso em sua caminhada.

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Informação

Publicado às 20 de junho de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .