No começo eu era um deles! Levantava de manhã e fazia minhas abluções. Um beijo na esposa e um abraço no filho. Horas no transporte público e horas mortas, todos os dias, na cadeira do escritório. Os falsos votos de felicidades e os tapinhas nas costas.
Lilith me conta, em meios aos nossos abraços quentes, que aquilo não era vida. “Olhe para eles”, ela me diz. “Olhe suas caras de tristeza. Eles parecem me receber em seus leitos?”. Claro que não. Lilith não pertence ao mundo deles, mas ao meu.
Eu sinto fome. Ao meu redor, vejo milhares desses humanos infelizes, eles passam por mim e não me veem. Ou fingem não me ver? Sentado aqui no canto, uma lata ao meu lado, só queria que eles abrissem os olhos. Não sabem que eu não tomo banho têm meses? Que não sei o que é dormir sem frio há muito tempo?
Queria que eles me jogassem uma moeda; um real e mais vinte e cinco centavos me valeriam um corote de Panacéia, que não vai me sustentar, mas, pelo menos, me esquentaria, fazendo presente um mundo de fantasias. “Bêbado”, eles gritam. Só assim me enxergam. Mas não é isso, sou apenas um homem atormentado, que já foi um deles, e hoje, não sabe mais o que é. Quando o corote é consumido sem trégua, Lilith vem me visitar, usando suas vestes nuas, me toma pela mão e me faz gozar o prazer de sua presença, fazendo por mim o que nenhum humano, esses que me julgam pela cachaça que me consome, faz. Ela me torna um homem outra vez.
– Eles não nos veem – Digo para Lilith. Ela me sorri formosa.
– Eu te vejo.
E isso me basta. Seus lábios rosados me tocam umidamente a bochecha. Acordo, pois úmida mesmo está minha perna. Abro os olhos para contemplar um bando de garotos mijando em mim. Fecho-os novamente e me finjo de morto. Melhor não arranjar confusão, o que é uma gota de urina a mais no esgoto? Eles se vão, rindo e contentes. Sento-me e Jão me olha de seu canto.
– Tudo bem, mano?
– Porra, não! Esses muleques filhos da puta mijaram ni mim.
– Porra cara.
– Desgraçados.
– Vamo atrais?
– Nem. Dexe pra lá.
– É. Tem uma grana aí?
– Nem pão.
– Tô com fome.
– Nada.
– Nóis semo invisível, mano.
É. Que a filosofia siga seu curso. Nós nos tornamos os seres invisíveis, para a conveniência deles.
Bom conto
Gostei bastante da narrativa, da reflexão, do retrato de uma vida mendiga.
Só o final, achei que carregou demais no tema ‘invisíveis’… já tinha falado bastante sobre isso,num conto tao pequeno.
Acho q o final podia ter outra pegada.
Afinal, nao eram tao invisíveis assim, visto que os garotos o viram pra móde mijar nele.
Mas foi um bonito trabalho o que li aqui. parabens,
abração
Olá, Moça! Obrigada pelo comentário, e toque justo!
Abraços!