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Detox Literário.

A Guerra dos Cinquenta Anos (André Albuquerque)

Anjinha no tanque de roupa, a esbravejar. No varal colorido, o ódio multicor em desacato ao vento. No fogão, o assado queima em repulsa e raiva. Brasas temperam em fogo bem vivo o tição da fúria impotente. Na parede úmida, fotos do mundo lá fora e de filhos que nunca teve. Sua desdita não renderá herança.

Tomé conserta sapatos na bancada polida pelo tempo. A madeira enrugada, na pobreza artesã de pai para filho. Tachas no canto da boca, no riso metálico.  Malha em surdina, um solado no pé de ferro.

— Bem poderia ser a cabeça da desgraçada- martela- lhe no cérebro a ira cotidiana – As mãos odiadas trazem o projeto em couro até a realidade.

Um polimento em graxa preta. Obra concluída, na guerra de cinqüenta anos de ódios e silêncios.

Anjinha vive de luto. Por quê? Ninguém sabe. Ela nunca disse.

Tomé coloca os cadarços no sapato preto, agora devolvido á bancada. Alinha-o entre os outros, em caprichosa ordem.

Ergue a gola do casaco. Protege-se do inverno da indiferença e do ódio conjugal. . Ferro deformado, na malhação dos anos.

Nem discutem mais. Cada um grita do seu canto, O grito paira no ar e sai pela janela ganhando o campo de futebol em frente. Sensações grisalhas arremetem contra a grama e as andorinhas.

O balde de cólera a receber a fúria contida. A comoção virou cebola velha, dependurada sobre o fogão de pedra.  Hoje, a gota d’água:

— Não tem feijão para o almoço – resmunga Anjinha, meio fúria, meio riso maroto. Ruindade antiga e bem curtida.

Tomé levantou da bancada, tomou da mala de madeira, com desenho em xis na tampa retangular e pegador enferrujado. Acomodou mudas de roupa, sapatos e meias da infelicidade maltrapilha e sem remendos.

Olhou distraído o fundo ensebado do seu chapéu. O suor e o nome do fabricante em arabesco amarelo. Coloca-o inclinado sobre a fronte. Abre a porta, caminhando em direção a lugar nenhum. Cruza o campo de futebol, interrompe a pelada em sua marcha. A rapaziada contempla o velho em muda indignação. Desempenado, em passo acelerado e inédito sorriso. A alma leve, flanando no ocaso da tarde de domingo.

E Então? O que achou?

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Publicado às 1 de março de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .