EntreContos

Detox Literário.

Aconteceu na Lapa (Rubem Cabral)

Lapa

Chovia a cântaros e as ladeiras do bairro de Santa Teresa choravam copiosamente lágrimas sujas, cor de pó compacto, sobre sua vizinha boêmia, a Lapa. As velhas bocas de lobo estavam engasgadas com tantos detritos arrastados pela enxurrada e passaram a vomitar água negra, contribuindo assim em subir o nível d’água ainda mais prontamente. As ruas, já meio desdentadas de seus blocos de paralelepípedos, voltaram então a vestir um manto marrom, assemelhando-as às estradas de terra que um dia elas foram, quando gente com profissões extintas – amoladores, aguadeiros, trapeiros – por ali apregoava seus serviços em altos brados.

Perto, nos arredores da Praça Tiradentes, travestis e prostitutas se esqueceram de suas antigas rusgas por território e refugiaram-se da enchente nos bares, aquecendo-se com cachaça e copos de caldo de mocotó ou feijão-amigo.

Casarões antigos descamavam sua epiderme mal conservada e cheia de bolhas, expondo seus esqueletos de tijolos maciços e armações de madeira infectas de cupins. Suas janelas embaçadas, olhos leitosos de cataratas, pareciam observar passiva e melancolicamente os estragos outra vez trazidos pelo descaso das autoridades e pela inclemência do clima.

Na Avenida Mem de Sá, fieis da Assembleia de Deus dividiam uma marquise com os pecadores do centro espírita linha branca, de forma até respeitosa.

A chuva era por tudo isso democrática; ninguém deixava de se batizar com a água límpida que era aspergida dos céus, ninguém deixava de compartilhar um pouco de imundice também.

***

 Entretido na sacada de seu apartamento, Carlos José sorria cínico e tudo observava, fumando tranquilo seu baseado, distanciado como quem assistisse a um reality show na tevê ou um daqueles documentários sobre o mundo animal. O jovem magro, de cabelos ralos, finos e escuros, tremia um pouco por pensar no que estava por fazer. Fora dica do Loco González; o vizinho chileno de olhos arregalados, que vivia de vender poesia alternativa nos bares e que pintava uns quadros que – sabe Deus como – ele conseguia empurrar por uma nota aos turistas burros em Copacabana.

Cazé, como era conhecido pelos amigos, ia comprar pó, pó de fada, pela primeira vez. Costumava fumar da amiga Maria Joana com alguma frequência, tentara e não gostara de lança-perfume no carnaval do ano anterior, mas pó de fada não. Isso era profissa, ouvira falar, não era para meninos ou principiantes.

Tinha sido até bem fácil, fizera como o Loco ensinara; “Telefona pra este número, después del sinal da secretária, disca siete, siete veces. Quando atenderem não diz alô, porra, fala que a Sininho te contou que eles vendem passagens pra Terra-do-nunca, não esquece”. E então? – perguntara. “Después, huevón, tu agenda data e hora e o valor que tu vai comprar. Mas seja rápido, hermanito; a Igreja do Pó vive trocando de endereço”.

As águas então baixaram; quase tão rapidamente quando transformaram as ruas em rios caudalosos. O céu pareceu limpar num estalo, num rompante meio típico daquelas noitinhas de verão.

Cazé atirou a bituca do cigarro com um peteleco, fazendo a brasa girar vermelha no ar e com sorte talvez acertar a cabeça dalgum passante. Abriu a carteira e recontou dez notas de cinquenta, vestiu jeans rasgados nos joelhos, um casaco surrado e desceu as escadas escuras, cujos degraus de madeira rangiam sob seus coturnos gastos, apesar de seus parcos cinquenta e oito quilos.

Caminhou por algumas esquinas e tocou o interfone dum casarão todo pichado na Ubaldino do Amaral. Muito nervoso, olhou para os lados, mas ninguém parecia suspeito, ninguém sequer prestava atenção.

— Louvado seja o Senhor – disse uma voz metálica através do aparelho.

— Das cinzas às cinzas. Do pó ao pó – gaguejou o rapaz magrelo, achando graça da senha besta que haviam lhe passado ao telefone.

A fechadura eletrônica destravou e a porta entreabriu, revelando um corredor longo, com rodapés de ladrilhos hidráulicos portugueses e paredes pintadas a óleo, num tom verde-abacate que talvez fora moda há cinquenta anos. Água descia desde o forro apodrecido e estufado, em filetes apressados que serpenteavam alegres antes de se transmutarem em lama sob os sapatos de quem passava por ali.

Uma porta, destas estreitas e muito altas, com uma portinhola aberta, era tudo o que havia no fim do corredor.

— O dinheiro. Passa o dízimo através da portinha – resmungou uma voz anasalada, de gênero indefinido. Não era possível se ver um rosto na penumbra espessa lá dentro.

— Tá aqui. Quinhentos, feito o combinado.

Escutou o ruído de contar notas e um grunhido de satisfação.

— Tu já usou o pó antes, bofinho?

— Claro que sim – mentiu Carlos, enquanto nervosamente prendia a franja pendente atrás da orelha.

Maneira, tá ligado? Não cheira tudo duma vez ou tu vai se foder de verde e amarelo. Isso é blueberry pura. É coisa da boa, não é batizada. Um tico, do tamanho de um grão de arroz, já dá pra ver os anjos e pra levar um lero numa boa com Jesus. E magrelo assim, sei não…

Uma mão enluvada – luva de veludo, vermelha, com renda brocada e branca na borda – colocou um vidrinho do tamanho de um dedal sobre a estreita prateleira sob a janelinha.

— E quando isso acabar? Posso voltar aqui?

— Ah, Jeová, que fissura, mal acabou de comprar! Se liga, irmão. A Igreja nunca fica pousada muito tempo no mesmo lugar; é preciso levar a palavra a todos os fieis! Vá-te embora agora, vai! Some daqui…

Cazé olhou o frasco diminuto, com tampa de borracha, cheio de pó roxo com reflexos dourados. “Parece purpurina”, riu sozinho, enfiando no bolso do casaco militar que ele vestia sobre a t-shirt preta.

Antes de abrir o portão e ganhar as ruas, mudou de ideia e despejou uns grãos na unha do mindinho, fechou o vidro com cuidado e aspirou.

Cerrou os olhos, sentindo uma tontura agradável, uma surpreendente moleza morna nas pernas, que pareciam derreter como manteiga. Espirais coloridas embaçaram a visão, esticou o braço e viu sua mão pálida girando a maçaneta cor de ouro – uma elegante maçaneta, que nunca esteve lá – de formato perfeitamente esférico.

Um bonde puxado por unicórnios baios desceu a rua, em direção à Mem de Sá, onde Fords T desfilavam ao lado de carruagens puxadas por zebras e toda espécie exótica de besta de carga. Uma criatura semelhante a um gibão com asas, de braços compridos e sorriso claro, vestindo colete e chapéu, saltou na sua frente e perguntou: — Vai graxa, cavalheiro? São só quinhentos réis!

Desconcertado, Carlos José ignorou a oferta e se espantou ao notar que as feias luzes de mercúrio dos postes haviam sido substituídas por fumacentos candeeiros de óleo de baleia, que com sua luz bruxuleante agora iluminavam elegantes a calçada.

Incrédulo, o jovem olhou para o alto e viu um dirigível enorme, cortando o céu muito estrelado com reclames de pomada para os cabelos e limonada purgativa cintilando em neon em sua ampla barriga. Quase na esquina, um vendedor, de fraque e cartola, anunciava junto de sua loja com as mãos em concha e a plenos pulmões, uma liquidação de polainas, galochas, chapéus e bengalas. Vitrines de boticas exibiam produtos que não eram mais comuns: bálsamos, xaropes de alcatrão, elixires para senhoras, láudano.

Gente vestida como no início do século passado, mas com certo exagero anacrônico e inexplicável, com luzes piscando nos cabelos ou voando em liteiras a vapor com motivos rococós, passava sem reparar em suas roupas estranhas.

Repentinamente, como num filme que se queima durante a projeção, o mundo pareceu escurecer, deformar e encolher, dando então lugar novamente àquela realidade sem graça do centro do Rio dos dias atuais.

— Cacete! – espantou-se o rapaz. — Puta que… Ah, tenho que contar pro Loco. O maluco nunca me disse que ia ser algo assim!

De volta a seu prédio, tomou o velho elevador de porta pantográfica de metal amarelo – não se recordava de elevador algum em seu edifício – subiu e bateu à porta do apartamento do vizinho.

Um homem atarracado e moreno atendeu. Carlos estranhou, embora o achasse um tanto familiar.

— Oi, o Loco está?

O sujeito gargalhou, arregalando os olhos já naturalmente saltados.

— Tá variando, tá abilolado, cabra? Sou eu: o Louco Nonato!

— Ha, ha, deixa disso! Olha, você até parece mesmo um pouco com ele, mas o chileno não tem este sotaque, nem é tão moreno, hã, nem usava bigode hoje cedo. Cadê ele?

— Vixe Maria! Cazé, você levou uma chapoletada no quengo? Onde já se viu; eu, ter sotaque diferente? Logo eu, que taco farinha até em cafezinho! Provou lá a coisa, é veneno do rato, é da gota, né não?

— Eu não tô entendendo – Carlos levou a mão à cabeça. — Tem alguma coisa muito errada, Loco ou sei- lá-quem-é-você! – Sentiu o mundo girar e um punho ácido ameaçar escalar o esôfago, a vista começou a escurecer.

— Eita, vamo lá pro teu apê, Cazé. Avalie só, nego, é alguma bad trip que bateu.

O rapaz abriu a porta do apartamento. De alguma forma a sala ainda era como a sua sala, cheirava igual, era familiar, mas também diferente. As paredes estavam pintadas de um azul desmaiado, antes eram brancas, ele estava seguro disso. O sofá xadrez e manchado virara um caramelo divã de couro. O quadro com Marilyn Monroe mostrava uma morena e não uma loura segurando a saia levantada. A gravura em preto-e-branco de Nova Iorque exibia a Estátua da Liberdade voltada para o lado errado, com uma harpa nas mãos.

Recostou-se no divã e apagou, enquanto observava o Loco ligando para alguém usando seu telefone vintage vermelho – que era preto antes, ele tinha certeza.

 ***

 — Acorda, cabra, acorda – o Louco o sacudia, sem muita delicadeza. Cazé afastou os cabelos do rosto e, amuado, notou que tudo continuava estranho feito quando dormira.

— Chamei uma amiga pra acudir a gente. Cê já falou com ela mais cedo. Te apresento Madame Valquíria Femme Delarue.

Uma mulher morena e muito alta, talvez com mais de um e oitenta e ombros largos, estava de pé junto a um abajur que ele não reconhecia como seu. Tinha feições que lembravam os árabes; nariz adunco, uma juba de cabelos ondulados presa a um arco, olhos verde-escuros. Trajava um vestido colante de tecido azul, com luvas bordadas nas mãos. O pomo-de-adão saltado no pescoço gritava que algo não estava certo ali.

A dona se aproximou com uma lanterninha na mão, segurou o rosto do rapaz com firmeza e espiou de perto as íris dos olhos.

— Não tão dilatados, Nonato. Olha, o guri nem suou, nem tá frio – completou, espalmando a mão grande na testa de Carlos. — Não tem bad porra nenhuma. Vendi emerald legítimo pro bonitinho! Olha aqui, quantos dedos tem aqui? – Perguntou, exibindo quatro dedos com unhas compridas.

— Quatro, é claro! Mas você me disse que o pó era blueberry. Era roxo com uns pontinhos dourados.

— Jamais vi pó de fada roxo. O que eu te vendi era verde; só tem desta cor e do extraforte vermelho, o ruby. Nunca ouvi falar de blueberry. Cadê o vidro?

Cazé procurou nos bolsos do casaco e retirou um frasco cheio de pó cor de esmeralda.

— Não falei? E então, garoto? – arguiu Valquíria.

— Era roxo. Eu fui na Ubaldino do Amaral, paguei quinhentas pilas, você usava luvas vermelhas, iguais as que tá usando agora, porém encarnadas.

— Eu odeio vermelho, acho , completamente vulgar e démodé, coisa de mulher da vida. Não tenho uma peça vermelha sequer, nem calcinha! Outra coisa: o pouso da Igreja fica na Cisplatina do Argental. Nasci e me criei aqui no bairro; não tem rua na Lapa com esse nome esquisito que você falou…

— Será que o cabra tá variando, Valquíria?

Ela ia falar algo, chegou a erguer o indicador e parou; pareceu pensar muito concentrada. Levou a mão ao queixo, cerrou os olhos e agitava a cabeça, como se rejeitasse ideias loucas.

— Não, não. – Esfregava as mãos, nervosíssima. Respirou fundo e falou: — Jeová! Mas será? Nonato, esse magrelo bem pode ser um Profeta do Pó!

Valquíria então detalhou, como a Igreja fora fundada quinze anos antes por certo Irmão Paulo “O Divino Louco”, sobre a mistura de ervas e minerais raros, usados para fazer o pó, que “destampava” as cabeças, que abria a percepção das pessoas às outras realidades.

— O Profeta Paulo dizia que não existia um mundo somente, mas uma porrada deles. A gente não percebe, fora quando sonha ou alucina, quando a gente vê um pedacinho dos outros lugares. Um Profeta do Pó seria alguém abençoado, que, quando viajasse astralmente conectaria realidades, passaria a ter uma visão mais ampla do tudo. Quando a viagem acabasse, ele ainda habitaria fragmentos do outro universo, pois ele moldaria novas realidades sem querer. Nosso fundador foi alguém assim, mas fundiu a cuca legal quando tentou unificar a coisa toda, ter a visão sob o ponto de vista de Deus. Tá internado até hoje no manicômio.

— E por que o sujeito quis fazer isso? – Indagou Cazé, sem acreditar muito nos conceitos extravagantes daquele culto de loucos.

— Sabe, Irmão Paulo dizia que há como se criar um mundo perfeito. Um lugar com o melhor de cada universo diferente, onde ninguém sofra, onde só exista amor e beleza. Um Profeta poderia modelar algo assim, feito um escultor girando o barro pra fazer um vaso. O Profeta é a cola para se juntar tão-somente os melhores cacos, para compor o mosaico mais perfeito!

Valquíria levantou-se e revirou sua bolsa, buscando algo. Virou-se e tinha uns dez frascos com pó verde e vermelho nas mãos.

— Toma, você deve tentar. Pensa com carinho, se não quiser me devolve depois… Pode existir um lugar onde eu seja rica, alguma racha poderosa de verdade, onde o Louco Nonato seja um artista reconhecido e você o rei-da-cocada-preta… Talvez, bofinho, talvez você possa fazer o impossível!

 ***

 Cazé despediu-se dos dois, estava cansado, havia sido um dia cheio demais. Sentou-se no divã e espiou desconfiado o frasco cheio de pó verde brilhante, ainda indeciso. Pensou em sua vida sem graça, no emprego que desprezava, nas muitas noites insones só tendo a companhia dos péssimos programas da tevê… Não amava ninguém de verdade, não odiava tampouco. Amar ou odiar demandava uma energia que ele não possuía. Sentia-se às vezes como Cássia Eller cantou em “Socorro”; Nem medo, nem calor, nem fogo. Não vai dar mais pra chorar, nem pra rir.

Colocou todos os frascos nos bolsos. Não quis pensar duas vezes. Espalhou uma quantidade razoável nas costas da mão e aspirou.

Novamente aquela sensação agradável, desta vez de flutuar, seguida da percepção de que tudo molemente fluía; como se ele escorresse no piso e gotejasse nas escadas. Abriu os olhos e a sala parecia orgânica; o sofá tinha textura e cor de fígado fresco, as paredes vermelhas e esburacadas feito pulmões, o piso, rosado, úmido e brilhante como uma gengiva nua, cheio de nervuras e nós brancos cartilaginosos. Meteu a mão no bolso como quem a enfiasse numa cavidade dum corpo vivo; sentiu calor, viscosidade e o pulsar grave do coração. Sacou a tampa do vidro – que era feito de osso – esvaziou o líquido cor de sangue na palma da mão cheia de ventosas e inspirou.

O céu observado através da janela brilhava feito aço escovado, o sofá era de platina e coberto por uma trama de fios de cobre, o piso estava tomado por rútilas pepitas minerais. Olhou a própria mão; regular, talhada em linhas retas e perfeitas, refletindo o próprio semblante metálico, feito faria uma bolha de mercúrio líquido.

Alcançou um frasco, parecia ser feito de ouro, metal dourado borbulhou em sua mão. Cheirou.

O prédio inteiro movia-se, lenta e solenemente. Espiou pela janela os pés poderosos se erguendo, feito raízes ramificadas, escutou sua voz grave e lamentosa. As janelas eram olhos, as portas, bocas. As ruas serpenteavam negras e brilhantes, a Catedral Metropolitana de São Sebastião, aquela construção medonha, que mais se assemelhava ao traseiro de uma abelha, girava feito um disco voador de cristal multifacetado, refletindo alegremente o Sol com seus muitos vitrais. O prédio sede da Petrobras movia seus segmentos como faria um cubo Rubik, o do BNDES girava sobre o eixo central: um picolé nas mãos de uma criança. Os Arcos da Lapa corcoveavam tal qual cavalo indomado, arrastando os cabos elétricos que executavam o papel de rédeas. Os bondinhos amarelos de Santa Teresa corriam apressados sobre pernas de centopeias e gongolos, escalando paredes e casas, engolindo e regurgitando pessoas, pequenas e escuras como piolhos.

Outro frasco surgiu prontamente em sua mão, sob a forma de uma miniatura de edifício. Derramou cidades inteiras em grãos diminutos e negros, e os levou ao nariz.

Um pouco de tudo; do que foi, do que é, o que será e o que seria. Se os vikings ou os africanos descobrissem o Brasil, centenas de anos antes de Cabral? Visualizou catedrais erguidas a Exu ou a Thor, carros queimando dendê ou aquavita em seus motores. Seríamos os primeiros a pousar na Lua, usando uma nau movida a vapor, enfeitada com a esfinge de um dragão ou de um elefante.

E se Portugal importasse prisioneiros russos no período colonial, que então laboriosamente cultivariam todo nosso território em centenas de milhares de gulags? Testemunhou uma nova revolução do proletariado idealizada por um Marx moreno, conhecido como Severino Tchekhov.

E se fôssemos pioneiros em detonar um artefato nuclear, em plena caatinga, no interior do Piauí? Talvez o resultado fosse aquele ataque de gigantescos teiús mutantes no Recife, dezenas de anos depois.

Nunca descobertos; éramos uma nação inteira falando Tupi e Gê, vivendo de pesca e do cultivo de milho e mandioca. Voando de megataba a outra, em pirogas adornadas com penas de araras e celebrando os tricentésimos Jogos Internacionais Indígenas com muito cauim.

E se todos os planetas do Sistema Solar fossem habitados, se respirássemos sob a água, se comêssemos música? Se, se?…

Cazé esvaziou o último frasco, mas isso não o impediu de imaginar zilhões de outros depois, talvez ainda mais eficientes do que suas contrapartidas reais.

 ***

 A manhã então chegou, em nada diferente de todas as outras manhãs, com o Sol brilhando amarelo, criando faixas luminosas no ar ao passar através das persianas empoeiradas. Carlos José despertou, a cabeça doía um pouco, embora não pior do que faria por alguma resseca fraca de cerveja. Não havia pó de fada em seus bolsos, nunca houve, nunca existiu tal coisa.

Observou que o apartamento estava pintado de branco outra vez, o sofá xadrez precisamente manchado de vinho, nos pontos devidos e exatos. Marilyn continuava loura e a tocha ainda era erguida orgulhosamente pela Senhora Liberdade em Nova Iorque.

Alcançou a sacada e olhou com carinho para as ruas lá embaixo, já cheias de pessoas apressadas e de outras mais relaxadas, comendo pão-na-chapa com café pingado no balcão do bar da esquina, lendo as manchetes dos jornais pinga-sangue pendurados nas bancas e conferindo o resultado do jogo do bicho. Virou-se à direita e os velhos arcos continuavam no mesmo lugar, o bondinho amarelo no alto destes singrava confiante; um barco num dia de mar tranquilo.

Tendo visto tanto, visto tudo, não conseguiu se convencer de que seria melhor de alguma outra forma. Se realmente valeria à pena alterar o mundo.

Animou-se, tomou uma ducha e alegrou-se ao reconhecer o mofo no canto do teto do banheiro e ao perceber o odor de fio queimado, gerado pelo velho chuveiro elétrico que bravamente lutava para quebrar o frio da água.

Vestiu uma roupa confortável, desceu as escadas e riu dumas meninas que saltaram de susto ao se depararem com um rato gordo feito um gato, correndo junto do meio-fio. Respirou fundo o cheiro de defumador que vazava da loja de artigos de umbanda, ficou fascinado ao observar a destreza do velho chaveiro que fazia cópias e carimbos ao lado da banca de jornal. Recostou-se junto do balcão de alumínio meio ensebado do bar, admirou os vidros de conservas; cheios de tremoços, cebolas e azeitonas desde a aurora dos tempos, ou antes. Arriscou pedir uns ovos cozidos de casca colorida de beterraba e um suco ralo de caju num copo que, felizmente, não era tão limpo ou perfeito assim.

Não longe dali, na Avenida Chile, transeuntes sentavam-se alegres nos bancos de um jardim bem cuidado, cheio de pássaros e com um belo chafariz. Nem de longe desconfiariam de sua sorte; que numa outra realidade sem-graça houvesse ali uma catedral moderna e de formato hediondo como a bunda de uma abelha.

15 comentários em “Aconteceu na Lapa (Rubem Cabral)

  1. Neusa Maria Fontolan
    5 de maio de 2015

    Gostei muito

  2. Fabio Baptista
    1 de março de 2015

    Mais um conto com o selo Rubem Cabral de qualidade.

    Aqui, porém, apesar de as imagens serem praticamente esculpidas diante de nossos olhos, achei que o autor pesou um pouco a mão nos adjetivos, principalmente no início. Mas, se todos os textos que pesam a mão nos adjetivos fossem assim… estava ótimo!

    Pensei que a trama iria para um lado meio “Meia-noite em Paris”, mas a solução adotada foi mais criativa. Só acho que o lance do “profeta” ficou um pouco mal explorado.

    Gostei bastante do final, foi um tipo de anticlimax otimista, o que não deixa de ser surpreendente. O caminho “fácil” nessas situações é o de dizer que essa nossa realidade aqui é uma merda e o autor foi justamente na linha oposta.

    No geral, não posso dizer que foi o conto do autor que mais me agradou, mas isso se deve ao fato de eu ter lido outros contos que considerei geniais. Esse aqui é “só” muito bom. kkkkkkkk

    Abraço!

    • rubemcabral
      2 de março de 2015

      Fala, Fabio! Então, no início do texto eu tentei usar o conhecido recurso do “antropomorfismo” ao falar da Lapa: chuva/lágrimas, boca-de-lobo/vomitar, epiderme/bolhas, esqueleto/infecto, olhos/cataratas. Devo ter pesado a mão, isso fora a minha mania de iniciar textos falando do tempo, haha.

      O conto originalmente tinha limitações quanto ao número de caracteres, então eu não explorei muito em maiores explicações sobre o que significaria ser um “Profeta do Pó”. Um usuário “normal” do pó de fada teria visões e depois voltaria ao normal. Ele veria outras realidades paralelas e voltaria à sua realidade original. Um Profeta “moldaria” realidades híbridas sem querer e não voltaria à sua realidade original. Mais do que isso: com sua força de vontade poderia compor outras realidades, “roubando” pedacinhos dos infinitos universos paralelos.

      O final com anticlímax foi bolado realmente para fugir do usual. Eu pensei inicialmente em matar o Cazé após sua viagem, mas achei que ficaria um conto “com moral” (rapaz que mexeu com o que não conhecia se deu mal). Pensei também em criar um mundo ideal no final, mas novamente não queria que o Cazé fosse o “escolhido”. Daí achei que seria mais maduro se ele praticamente não mexesse em nada, se ele descobrisse beleza nas coisas comuns.

      Rapaz, tô devendo muito um conto “genial”, rs. Esta premissa é do Holloway e não minha.

      Obrigado por ler e comentar!

      Abraço.

  3. mariasantino1
    28 de fevereiro de 2015

    Olá!

    Depois de tanto se falar em cores, confesso que comecei a ler o texto e as linhas foram tomando uma coloração diferente, era negra, ficou roxa, verde, azul… Rsrsr. Muito bom esse seu conto psicodélico. Fiquei um tempão pensando nos “SE” (Nossa! Quantas possibilidades! Quantas coisas insólitas!). Adoro diálogos com regionalismos e gírias, e ri bastante dos seus.
    Parabéns!

    • rubemcabral
      2 de março de 2015

      Obrigado por ler e comentar, Maria. Legal você gostar de gírias e regionalismos; eu também gosto muito! Meu problema é o receio de soar artificial, em especial quando exploro “territórios” que não conheço bem, feito os regionalismos do falar nordestino do Louco Nonato.

      Este lance do que poderia ser é algo que dá tontura quando se pensa. Por exemplo, se um rapaz de vinte anos (Gavrilo Princip) não houvesse parado para comer um sanduíche de carne no Moritz Schiller Café em 1914, ele não teria tido a oportunidade de matar o Arqueduque Franz Ferdinand e com isso disparar uma série de eventos que culminaram na 1a Guerra Mundial (que foi em boa parte estopim da 2a também). Se o Gavrilo houvesse ido direto pra casa depois do atentado fracassado de seus colegas, talvez não houvesse o 11 de Setembro em 2001, ou as tensões atuais no Oriente Médio, pois possivelmente Israel não existiria também.

      Enfim, é um assunto que dá pano pra manga, rs.

      Abração!

  4. JC Lemos
    28 de fevereiro de 2015

    Que louco, Rubão!

    O que mais admiro em seus escritos, é a forma como você consegue invocar imagens que ficam gravadas na mente, mesmo depois de tanto tempo que as lemos. Seu poder descritivo nessa história foi incrível, principalmente no momento em que as casas andam e a catedral de abelha faz seu show.

    Como já disse, tua forma abrasileirada denuncia teu estilo. A Lapa em suas mais variadas formas, foi a protagonista da história. Por mais que Cazé tenha emprestado seu ponto de vista, claramente ele atribuiu os sons, cheiros e sentidos à cidade e suas belezas e defeitos.

    Gostei dessa pegada surreal. Já me arrisquei nisso, mas não chegou nem perto. hahaha

    Abraço!

    • rubemcabral
      2 de março de 2015

      Obrigado por ler e comentar, Jefferson. Então, eu aprecio muito estes efeitos sinestésicos, esta coisa de evocar os sentidos, pois acho que ajuda na imersão de quem lê. Em verdade eu tinha intenção de esticar o conto um tanto mais, para mais viagens piradas às realidades paralelas do universo, porém na época que escrevi este texto havia limitações quanto ao número de caracteres.

      ‘Brigadão outra vez por deixar suas impressões e não desista da pegada surreal; é legal viajar de vez em quando!

  5. Sidney Muniz
    27 de fevereiro de 2015

    Putz! de cara adorei o primeiro parágrafo, mas de repente o conto vai e me apresenta viagens incríveis. poxa, me lembrou um pouco os contos de um autor que já leio por aqui, e desde o recanto das letras, que é o RSollberg, de quem gosto demais.

    Seu texto é realmente incrível, consegue nos apresentar um mundo, não, dois mundos, várias percepções e sacadas geniais e um final arrebatador.

    Como é bom saber como fechar um conto hein? Você não dosou nada, na verdade as doses aqui foram todas “extras”,e ao mesmo tempo na medida certa.

    Estou te aplaudindo aqui Rubem, sério. Ler seu conto foi o máximo! Nem pude esperar para ler em casa.

    Parabéns mesmo!

    • rsollberg
      27 de fevereiro de 2015

      Como é bom ter amigos, heim Sidney.
      Encontrar uma semelhança, ainda que mínima, com o estilo do Rubem é um PUTA elogio.

      Quanto ao texto, ele é de uma competência ímpar em criar essa atmosfera peculiar do Bairro. Cria uma espécie de sinestesia imediata, uma imersão total.

      Concordo com o Leo, o ambiente torna-se um personagem central.
      E essa loucura do “E se?”. kkkkkkkk

      Conhecia um pouco do autor da Antologia da Caligo, mas aos poucos vamos conhecendo mais nesses desafios e na temporada off. É como começar a curtir uma banda, que é nova pra você, porém que já tem um grande material.
      Hoje me arrependo de não ter comprado a “linha tênue” no lançamento do Redrum aqui na travessa. Mas isso é algo que vou consertar brevemente.

      Agora, a verdade é que você merece uma medalha por ter transitado pela Lapa naquela época braba!

      • rubemcabral
        28 de fevereiro de 2015

        Rapaz, a barra era pesada à época: devo ter sido assaltado umas duas vezes, fora as tentativas (uma vez saí na mão com dois pivetes).

        Este lance de sinestesia é algo que eu curto muito, descrever cores, cheiros e tudo mais sempre me fascinou.

        Uma pena mesmo você não ter pintado no lançamento do Redrum, foi muito divertido e ainda rolou um chopp com os autores depois do evento.

        Obrigado pelo elogio: esteja avisado, contudo, que erro bem mais que acerto, que de vez em quando você lerá algo e dirá WTF!, rs.

        Abração!

    • rubemcabral
      28 de fevereiro de 2015

      Puxa, muito obrigado, Sidney! O final nasceu sozinho, foi meio como resistir à tentação de matar o Cazé ou enlouquecer de vez com a realidade.

      Abração!

      • rsollberg
        28 de fevereiro de 2015

        Eu fui no lançamento do REDRUM! E ai o meu erro foi maior, pois não comprei o referido livro. Não tem desculpa!

      • rsollberg
        28 de fevereiro de 2015

        E, na minha opinião, não tem nada mais instigante que o WTF!

  6. Leonardo Jardim
    27 de fevereiro de 2015

    Muito legal! A ambientação é perfeita, pelo menos para mim que trabalho na Lapa há muitos anos e conheço cada um de seus tijolos mal encaixados e paredes descascadas. A própria Lapa parece ser a protagonista da história!

    Terminei o conto e olhei na janela para ver se a catedral ainda estava lá… 🙂

    • rubemcabral
      27 de fevereiro de 2015

      Puxa, muito obrigado por ler e comentar, Leo. E morei uns anos em Santa Teresa e trabalhava na Mesbla Passeio, daí transitava bastante pela Lapa, ainda antes de virar moda.

      Abraço!

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Publicado às 27 de fevereiro de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .