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Detox Literário.

O bater daquelas asas (Miguel Bernardi)

A menina avistou o pássaro quando chegou no pico daquela montanha incrivelmente alta. Ela estava cercada de nuvens por todos os lados, grandes e negras, que se mexiam em sua volta, como os ponteiros de um relógio giram ao redor de seu centro.

O pássaro era totalmente branco, seu voo era gracioso, formoso, dando rasantes e levantando novamente. Seu canto era nostálgico, poético, repleto de emoção. Alguns trovões ribombavam, ora perto, ora longe, mas sempre fortíssimos, barulhentos. Olhando para baixo, via apenas mais nuvens: havia chegado tão alto, mas tão alto, que o mundo abaixo parecia apenas um rascunho antigo, abandonado, dentro de uma gaveta qualquer, junto de fotografias esquecidas e contas pagas.

Ventava ali, o que agitava a cabeleira solta da garotinha que fitava tudo com esplendor, contemplando cada detalhe, gravando cada rocha, cada pedacinho de céu na memória. De alguma forma, sabia que isso era algo importante. Usava um vestido branco, na altura dos joelhos e seus pés, descalços, tocavam o chão abaixo repleto de pedras.

Começou a chover.

A ave apareceu novamente em seu campo de visão, e pousou perto dela. Era enorme, e agora pode-se perceber que não era totalmente branca: tinha algumas penas azuladas, outras vermelhas ou violetas. Seu bico era feito de algo que se parecia com vidro, mas que, no entanto, passava a impressão de ser muito mais forte e precioso. Seus olhos eram profundamente negros, com alguns pontinhos brilhantes, multicoloridos, como estrelas. Tinha três grandes penas na cabeça, que se agitavam freneticamente.

O animal a olhou nos olhos, ela retribuiu.

Abrindo o bico, voltou emitiu um som suave e tristonho. Não compreendia nada, é claro, mas poderia jurar por sua vida que havia tristeza ali. Cada detalhe do mundo parecia mais vivo. Cada pedra parecia mais importante, como se estivesse ali desde o começo de toda a criação. As grande nuvens acima ainda orbitavam os dois ali, parados, e as de baixo começavam a subir. Quando um trovão caia, via-se um rosto, ouvia-se uma voz. Enquanto aquele som tão antigo quanto a montanha, ou todo o resto, era emitido, tudo parecia ser mais. Os raios não eram somente uma descarga elétrica, o ar, bem mais que um conjunto de partículas.

Quando se olhou, ao invés de ver a menina que sempre conheceu, viu uma senhora de idade, curvada sobre seu próprio peso, com uma expressão risonha.

Tudo passa tão rápido, não é? Tudo some, muda, se esvai…

Tinha algumas rugas na face, é claro, mas desconfiava que aquelas rugas eram bem vindas. Já não havia pele, ou ossos, ou sangue. O formato de seu corpo não passava de luz, que oscilava. Como um fantasma. A senhora, agora, lembrava-se de tudo, até mesmo o que nunca havia visto.

Dos lagos e rios, e mares e flores.
Da família, amigos e amores.
E jardins, sua casa, escola.
E, se pudesse falar, o que diria?
Talvez que vale a pena. E valia?
Quando a alma não é pequena…

Lembrava-se da vida, mesmo esta já tivesse a abandonado há eras. Ou haviam sido segundos?

O pássaro se aproximou, ainda cantando, e deixou que a senhora o montasse. Seu cabelo, agora branco, ainda balançava pra cá e pra lá junto do vento. O relógio ainda girava, mesmo que o tempo fosse insignificante agora. Com um impulso suave, levantaram voo. Uma densa camada de névoa cobria o monte de pedras que ficava pra trás, e deixava abaixo de si tudo o que um dia fora.

Batendo as asas com magnificência, saíram rapidamente dali. E, poderia dizer, tudo ficou para trás. Mas não. É claro, o mundo ficou. O tempo também ficou: quem é que precisaria dele?

Em seus pensamentos, perguntava-se apenas: e agora?

E em seu coração, ouviu a resposta.

Agora é uma nova página, menina. Ou senhora. Não se atente à isso, não se limite à aparências físicas. No fundo, somos todos crianças. Os velhos e os novos, os vivos, e os mortos. De fato, só o que sobram são as lembranças. E não me interesso se forem poucas ou muitas, ou boas ou ruins. Lembranças são boas, afinal, significam que você tem o que contar, que você fez algo com o que lhe foi dado. Afinal, o que somos, a não ser história? Tenho certeza de que, do mesmo jeito que se apegou aos detalhes, várias pessoas se apegaram à você.

E  a única diferença entre você e, bem, as outras pessoas, é um voo. Apenas um voo.

9 comentários em “O bater daquelas asas (Miguel Bernardi)

  1. rsollberg
    16 de janeiro de 2015
    Avatar de rsollberg

    Boa, Miguel!
    Esse é o arcanjo certo!!!

    Agora sim voltei a sentir aquela pegada que te destaca.
    Aquela poesia do “Sonhos” e do “Legados” (que reli para saber o motivo daquele meu comentário enorme!)

    Mas ainda quero ver uma estória sua que envolva bem a física, especialmente depois daquele comentário no Caçador de Espécies!

    Abraços

    • Sidney Muniz
      16 de janeiro de 2015
      Avatar de Sidney Muniz

      Também curti muito aquele bate papo… risos!

      Lendo e aprendendo cada vez mais!

  2. Fabio Baptista
    16 de janeiro de 2015
    Avatar de Fabio Baptista

    Miguel!

    Esse certamente está bem diferente do famigerado “Gabriel” do último desafio! kkkkkk

    O Sidão já apontou todos os detalhes que destoaram um pouco (o olho dele tá melhor que o meu, pois havia passado batido em alguns :D).

    Cara, contos com essa pegada mais “simbólica”, meio viagem onírica e tal, não costumam fazer muito minha cabeça. Acho que sempre acaba vindo uma inevitável comparação com Sandman… e aí a concorrência fica desleal para qualquer um.

    Mas a sua escrita é suave, bela… e foi me conduzindo tranquilamente até esse último parágrafo. E ali você conseguiu fechar de um jeito realmente primoroso.

    Oceano no fim do caminho… próxima leitura obrigatória! Obrigado! 😀

    Abraço!

  3. Sidney Muniz
    16 de janeiro de 2015
    Avatar de Sidney Muniz

    Miguel,

    Como é bom ver sua evolução, sei bem que você não teve o zelo que costuma ter com seu conto para o ultimo EC, mas conheço seu talento e aqui vejo um conto maravilhoso, lindo, curto e de uma presença sublime, difícil de desagradar.

    Obviamente é muito poético e reflexivo, e mais que isso de uma sagacidade que impressiona. O último parágrafo foi construído com primor.

    A frase final é interessante e contribui muito para o fechamento.

    O único parágrafo que me incomodou um pouco foi esse:

    Abrindo o bico, voltou emitiu um som suave e tristonho. Não compreendia nada, é claro, mas poderia jurar por sua vida que havia tristeza ali. Cada detalhe do mundo parecia mais vivo. Cada pedra parecia mais importante, como se estivesse ali desde o começo de toda a criação. As grande nuvens acima ainda orbitavam os dois ali, parados, e as de baixo começavam a subir. Quando um trovão caia, via-se um rosto, ouvia-se uma voz. Enquanto aquele som tão antigo quanto a montanha, ou todo o resto, era emitido, tudo parecia ser mais. Os raios não eram somente uma descarga elétrica, o ar, bem mais que um conjunto de partículas.

    Nem tanto pelos equívocos quanto a correção que são irrisórios), mas principalmente pela estrutura. Esse “é claro” no início, acredito que nesse momento só é claro para o autor, sendo assim o descartaria. Com uma pincelada nele, tenho certeza que ficará ótimo, E sim, percebi as imagens e as mensagens, É apenas analisando a construção em toda sua dimensão que sinto que esse destoou do restante.

    Aqui algumas observações:

    tocavam o chão abaixo – Tiraria esse abaixo, achei desnecessário

    A ave apareceu novamente em seu campo de visão, e pousou perto dela. Era enorme, e agora pode-se perceber que não era totalmente branca:

    acredito que o agora esteja fora do tempo, trazendo a frase para o presente, o que gerou a mim certo desconforto na leitura. Mas, levando em consideração o desfecho, até que se encaixa.

    voltou emitiu um som suave e tristonho – há algo estranho nesse trecho, ou a falta de uma vírgula ou a falta de um “e” entre “voltou” e “emitiu”

    As grande nuvens – grandes no plural, correto?

    orbitavam os dois ali, Vírgula entre “orbitavam” e “os dois”?

    ficava pra trás – acredito que nesse trecho o correto seria a utilização do “para”

    Miguel, é um ótimo texto, um conto muito lindo e você está de parabéns meu amigo!

    Continuo admirando seu trabalho e torcendo muito por você!

    Um forte abraço!

    • Miguel Bernardi
      16 de janeiro de 2015
      Avatar de Miguel Bernardi

      Olá Sid!

      Obrigado pela leitura e pelo comentário cuidadoso e dedicado. Fico feliz por estar me acompanhando, e também por ter me redimido do péssimo texto que enviei ao EC.
      O agora foi realmente nesse sentido, “agora” = momento de transição entre vida e morte, o voo…
      Realmente, é ficava “para” trás, vi aqui, vou corrigir = )

      Grandes* nuvens, realmente é plural. Passou na revisão… E sim, tinha uma vírgula ali. Sid, obrigado pela atenção, cara. E saiba que você teve um papel importante na minha evolução! Obrigado amigo, grande abraço!

  4. Jefferson Lemos (@JeeffLemos)
    16 de janeiro de 2015
    Avatar de Jefferson Lemos (@JeeffLemos)

    Sensacional! Esse final então…
    Você tem a mesma magia que o Gaiman. Conta mostrando aquela coisa onírica e as possibilidades que essas coisas nos dão. Há beleza na infância e na inocência, em pequenos atos e até mesmo no passar do tempo.
    Seu texto retrata muito bem isso. Gostei do que você fez, e ouso dizer que se tivesse participado do desafio com esse, teria sido completamente diferente.

    Parabéns pelo talento, cara. Quem te viu estreando no DTRL certa vez, não acreditaria que é a mesma pessoa hoje. Não com tão pouco tempo passado.

    Abraços!

    • Miguel Bernardi
      16 de janeiro de 2015
      Avatar de Miguel Bernardi

      Valeu JC!

      Obrigado pela leitura e pelo comentário, pela comparação ao Gaiman (sou um mero mortal haha). Adorei trabalhar o onírico neste texto, mexer com o que não se pode compreender novamente, na curiosidade do que vem depois, e a inocência da infância…

      Obrigado pelo incentivo sempre, amigo, e grande abraço!

  5. Phillip Klem
    16 de janeiro de 2015
    Avatar de Phillip Klem

    Parece uma poesia ( e em alguns trechos o é, de fato).
    Gostei da leveza e simplicidade. Há algo que me lembrou Nárnia, não sei o que. A atmosfera talvez.
    Em alguns trechos houve um excesso de adjetivação, o que tornou o início quase que desinteressante, mas a curiosidade nos puxa e nos guia até um final cálido, cheio de ternura e reflexões sobre o tempo e o que fazemos dele.
    Um ótimo conto.

    • Miguel Bernardi
      16 de janeiro de 2015
      Avatar de Miguel Bernardi

      Phillip, obrigado pela leitura e pelo comentário!

      Fico feliz por isso. Vou revisar o começo tentar melhorá-lo, deixar mais fluido. Talvez seja a atmosfera, ou a narrativa… mas, vou lhe segredar uma coisa, lembrei da Susan enquanto escrevia o texto, talvez seja relevante…
      As reflexões vieram de várias horas pensando na vida, coisa de quem não consegue dormir rápido.

      Agradeço a atenção, grande abraço!

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 15 de janeiro de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .