EntreContos

Detox Literário.

Vermelho (Eduardo Matias)

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Hanna sentou-se junto à mesa de metal, as migalhas de pão velho se misturavam às lasquinhas de tinta descascada. A menina já se acostumara à constante ausência do pai, às roupas rasgadas, aos ratos, ao cheiro de esgoto e ao frio horrível que fazia em sua casa, mas à fome, certamente ela jamais se acostumaria.

A neve caia na rua, uma fresta da janela tapada com madeira lhe permitia apreciá-la. Fria, suave e delicada, como uma imagem inanimada da menina de cabelos brancos. Apenas a saraiva lhe dava esperança, talvez ela fizesse seu pai se atrasar e ela não fosse obrigada a suportar a sua tortura diária. Mas ele chegou.

Um homem alto, com uma casaca surrada e coberta de neve entrou rapidamente, largando grandes sacos com quinquilharias pelo chão. Hanna estremeceu, seu martírio se repetiria também esta noite.

─ Vamos Hertzen, ─ Disse, tomando a menina pelo braço e saindo porta afora. ─ Não devemos nos atrasar.

As ruas sujas do gueto de Berlim passavam rapidamente aos dois caminhantes. O belo contraste entre o cinza enegrecido das construções e o branco cálido do inverno acalmava Hanna, ainda que o frio a estivesse matando. Von Furcht não dera tempo para a menina pegar um casaco. O que seria uma inutilidade. Hanna não possuía agasalhos.

Tudo estava como sempre, embora o natal estivesse a caminho. Os compatriotas de Hanna ignoravam este tipo de festa religiosa.

O frio passou, dando lugar a um abominável calor humano. Eles entraram em uma taberna barulhenta. O cheiro azedo de gim, tabaco e sujeira já não provocavam mais tonturas na menina.  Por muitas noites ela entrara ali, o cabaré da Rua Hölle já era quase sua casa.

─ Furcht, seu cão imundo ─ gritou o velho dono da taberna, rindo expansivamente ─ o senhor Geldssbell já está esperando lá em cima, no quarto de sempre. Ande com essa menina!

Hanna subiu as escadas de madeira rosa, ao fim do último lance, estava a porta. A porta que ela via todas as noites há três anos, a porta do quarto 10. Seu corpo doía, os dedos finos e brancos, com as falanges vermelhas pelo esforço contínuo. Seu pai bateu com os nós dos dedos na porta do quarto e deu as costas, voltando ao bar. Iria embriagar-se, o que sempre fazia enquanto duravam as seções de sua filha.

─ Entre ─ gritou uma voz grave e lasciva.

A menina o fez. Um cheiro de jasmim inundava o quarto, as cortinas de seda geravam uma leve penumbra vermelha. Um piano de madeira clara jazia encostado na parede oposta à da porta, com belas camélias em um arranjo sobre o tampo. Sentado nos lenços de linho púrpura, estava um senhor de meia idade.

─ Passaste bem, minha pequena? ─ Disse o homem, mas Hanna não respondeu. ─ Não adianta ficar esmorecida, menina. Sabe que esta é a única chance de você mudar de vida. Quer ser uma morta de fome para sempre?

─ Venha, sente-se aqui ─ disse o homem alisando os lençóis com as mãos enrugadas. ─ Hanna foi. O senhor levantou-se, tomou o arranjo de flores de cima do piano e colocou-o no chão. Ergueu o tampo, revelando reluzentes teclas de ébano e marfim.

─ Seu pai me disse, que em sua próxima apresentação, você irá apenas cantar. Um desperdício, em minha opinião, mas pelo menos poderá descansar os dedos. Então preste atenção. Esta música é fácil, mas tem de executá-la com perfeição. O velho Furcht precisa do prêmio, seja ele qual for.

Jan Geldssbell sentou-se no piano. Seus dedos ágeis arpejando as notas claras de um Sol maior. Um Ré com sétima e um Mi menor sucederam à tônica. E, novamente com um Sol, a voz doce da menina ecoou pelo quarto. A alcoviteira que passava pelo corredor admirou-se, mas não se incomodou. Alguns de seus clientes também só funcionavam com música.

As horas se iam depressa e, fora com o último acorde Sol, que o astro homônimo erguera-se imponente por entre as nuvens densas do céu alemão.

Stephann von Furcht era um homem lunático, e uma vida desregrada não amenizara em nada a sua doença. Sua esposa havia morrido poucas horas depois de Hanna nascer. Ele jamais amara a pequena assassina de sua dame sublime. Mas, apesar da indiferença com que ele a criou, há pouco mais de dois anos, decidiu que já era hora de sua filha dar alguma contribuição ao sustento da família. Por isso, levou-a ao cabaré sobre a taberna que frequentava.

O destino, independente do caráter daquele que o controla ou o escreve, tem maneiras estranhas de se desenrolar. Ao invés do quarto indicado pelo dono da taberna, Hanna entrou acidentalmente no quarto 10. Seus dedos curiosos martelaram as teclas do piano. Seu coração quase lhe saltou pela boca quando o senhor Geldssbell saiu do banheiro e a viu ali.

Ele não a tocou. Não pela sua moral ou pena; mas, algo chamou sua atenção naquela menina esguia com cabelos cor de neve. Seus olhos terracota brilhavam ao contemplar as teclas do instrumento. Geldssbell a ensinaria. A ele não sairia barato: pagaria pelas noites, como deveria acontecer normalmente, e o pai de Hanna lhe faria alguns serviços. O que, por hora, quitaria a dívida. Stephann não morreu de amores pela ideia, mas a aceitou.

Em pouco tempo, a garotinha não apenas tocava muito bem, mas cantava de maneira esplêndida, seu soprano claríssimo se mostrava no palco do cabaré nas noites de terça feira. Entretanto, na terça seguinte, não seria ali que cantaria. Seu pai havia planejado outra apresentação. “Grandiosa”, como ele dizia.

Poucos dias depois, lá estava ela nos bastidores do grande Deutsches Theater a esperar o momento de sua entrada. Era véspera de natal, mas não era este o motivo do espetáculo, e sim, a vitória do homem mais elevado por sobre o peso da religião falida.

─ Está tudo bem, Hertzen? ─ Hanna odiava aquela palavra, sempre vinha seguida de alguma atrocidade, apesar de ser a maneira carinhosa de Stephann se referir a ela. Hertzen significava coração.

─ Sim, papai. ─ Disse a menina, apertando um coala de pelúcia entre os braços. Único brinquedo que ela já tivera. Seu pai insistiu que isso poderia acalmá-la. De fato, nenhum sentimento de ódio tomava seu pequeno coração quando ela fitava a lembrança de sua mãe, que se fora.

As cortinas carmim dançavam suavemente, como se o som das centenas de vozes do outro lado tivesse a força de embalar as pregas de veludo. Sete crianças aguardavam atrás do palco e sete pais ansiosos as acompanhavam. Um velho de ventre farto chacoalhava um garotinho que não parava de chorar. O pai de Hanna a olhava etereamente, como se tudo aquilo não passasse de um sonho ruim.

Hanna tremia de frio e medo. Segundo o seu pai, o senhor daquela nação estaria ali para assisti-la, junto com metade da Alemanha.

─ E se ele não gostar? ─ sussurrou a menina. ─ E se ninguém gostar?

─ Acalme-se. Você é magnífica, todos vão gostar de você.

─ E seu eu errar alguma coisa?

─ Você não vai errar! ─ Respondeu o pai em um brado rouco. Seus olhos faiscaram em uma momentânea violência, mas ele se conteve. ─ Desculpe-me, Hanna. Só estou nervoso.

“Hanna von Furcht”, anunciou uma voz grave, sinalizando o momento em que a garotinha teria de cruzar as cortinas.

Ela largou o coala surrado e se foi. Aplausos encheram a vasta câmara, doendo em seus ouvidos. Centenas de pessoas com roupas pretas e tarjetas vermelhas nos braços sorriam alegremente para Hanna. O teatro não estava decorado. Um senhor de meia idade, de bigodes quadrados e olhar risonho acenou para ela. O Führer.

Hanna se aproximou do microfone em forma de disco.

─ Boa noite, Führer. Boa noite, senhoras e senhores. ─ Disse ela, de forma mecânica, recebendo uma profusão de “Boa Noites” em resposta. ─ Hoje cantarei uma música para vosso entretenimento.

Sua voz tenra, mas cristalina, riscou as notas claras de Stile Natch. Todos fitaram olhos raivosos para menina ao ouvirem as doces palavras consoantes ao nascimento do menino Jesus. Se os contos do Nazareno já eram proibidos, o que dizer de suas baladas?…

Uma profusão de vaias assustou Hanna, que saiu correndo, chorando, por entre as cortinas pesadas.

─ Chamem-na! ─ Bradou o Führer.

Seu pai esperava ansioso nos bastidores. Ele tomou sua mão e os dois correram para a noite fria.

─ Por que eles fizeram aquilo, papai? ─ Perguntou a menina em lágrimas e sem fôlego pela corrida.

─ Não sei, Hertzen. Talvez não gostem de Jesus. Pensando bem, talvez não gostem de nenhum judeu, como nós. Os olhos de Stephann destilavam sua loucura, uma pequena risada escapou de seus lábios, mas o som fora abafado pelos estampidos de tiros. A SS não tardara.

O sangue escarlate tingiu a neve branca e não houve despedidas. Stephann ficou na calçada, inerte, mas Hanna fora levada e naquele momento não houve nada mais vermelho, do que os olhos castanhos da menina.

3 comentários em “Vermelho (Eduardo Matias)

  1. Phillip Klem
    16 de janeiro de 2015
    Avatar de Phillip Klem

    Ótima escrita.
    Porém devo concordar com o meu colega Fábio Baptista.
    Quando Hitler chegou ao governo, e consequentemente o partido nazista, o anti-semitismo já era bem disseminado na Europa. Principalmente na Alemanha. Muito provavelmente não permitiriam que uma menina judia se apresentasse ao Führer.
    E não, Judeus não cantariam sobre Jesus.
    Mas, apresas destes e outros pequenos pormenores históricos, o conto foi muito bom. A ideia foi bem original. Particularmente por ser ambientada neste período histórico que tanto me instiga.
    A narrativa foi rápida, mas rica. A reviravolta quando descobrimos que é, na verdade, uma aula de musica foi um dos pontos de destaque.
    Meus parabéns. Continue evoluindo 😀

  2. Fabio Baptista
    15 de janeiro de 2015
    Avatar de Fabio Baptista

    Muito bem escrito, parabéns!

    Porém, achei o desenvolvimento meio corrido e o final, apesar de bem narrado, um tanto forçado.

    Hitler seguiu o cristianismo por influência dos pais. Não se tornou o cristão mais fervoroso, mas acho que não mataria alguém por cantar um música sobre Jesus.

    Aliás… acho que os judeus não cantariam uma música sobre Jesus (mas aqui é só achismo mesmo :D)

    Enfim… exceção feita a esses detalhes, um ótimo conto.

    Abraço!

  3. Andre Luiz
    15 de janeiro de 2015
    Avatar de Andre Luiz

    Lindo o texto, com passagens muito bonitas e um desfecho eletrizante. Parabéns pela criação!

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 14 de janeiro de 2015 por em Contos Off-Desafio e marcado .