Ele demorou além do normal para acordar, depois de mais uma noite tentando combater sua insônia causada por horas de dedicação em frente ao televisor matando zumbis numa feroz disputa contra a máquina. Pôs-se de pé lentamente, com certa dificuldade para identificar a melhor forma de manter o equilíbrio em meio às tralhas que compunham seu quarto. Este era o momento em que fazia uma engenharia mental para lembrar-se das atividades que teria a realizar no dia corrente, organizando-as preferencialmente a partir do grau de ineficiência em executar cada tarefa; sinônimo de praticidade para ele significava se livrar o mais rápido possível das atividades que considerava as mais repugnantes. A possibilidade de desfrutar seu dia com satisfação compreendia coisas simples, tais como observar o passeio dos patinhos na lagoa do parque na hora do almoço ou vasculhar fatos espalhafatosos nos jornais empoeirados que se acumulavam no depósito de seu trabalho. Porém, a real execução de tais hobbies era posta à prova ao longo do dia à medida que seu cérebro se ocupava de pensamentos vagos e dissonantes sobre o rumo prático que sua vida tomava. Após passar em revista o conjunto de suas preocupações cotidianas, tomou um banho rápido, providenciou seu desjejum matinal composto de alimentação balanceada e dirigiu-se ao seu ofício. Seu jeito de andar era motivo de piada entre os conhecidos, em parte devido em seu apreço pela fluidez e beleza com que as bailarinas se movem ao executar sua arte com maestria. Para ele, mimetizar essa dança sincronizada ao locomover-se era uma forma apropriada de compensar sua anatomia desengonçada, atestada por pernas longas em formato de arco, cintura esbelta e braços finos que pareciam assumir vida própria, tal como um boneco de Carnaval. Após trinta minutos de deslocamento, chegou ao prédio em que se localizava o escritório em que dava expediente. A função para a qual fora contratado era a de redator de peças publicitárias para grandes corporações, uma maneira elegante de forjar um cargo de respeito e estima para o personagem em questão, pois aparentemente ele ocupava a quase totalidade de seu tempo na repartição para criar slogans publicitários (algumas dessas “fontes” de inspiração eram trechos extraídos da consulta aos jornais acima citados) que seriam utilizados por profissionais liberais e pequenas firmas situadas nas redondezas. Por se tratar de um local de constante vaivém de pessoas, concentrar-se na tarefa a ser executada era uma tarefa da qual não constituía valor. Para contornar tal situação, ele trazia consigo em sua bolsa um headphone capaz de estabelecer uma simbiose entre a massa sonora transmitida por este aparelho e seu corpo. Todos os seus órgãos entravam numa espécie de transe incontrolável em que qualquer possibilidade de interferência externa não era suficiente para tirá-lo daquela conexão a qual estava entregue. Imerso nesse estado de prazer voluntário, testemunhou algo que, numa fração de segundos, confrontaria as suas concepções de segurança e bem-estar vigentes naquele momento. Um corpo ordinariamente esculpido, provavelmente à base de exercícios aeróbicos realizados sem a disciplina presente em subcelebridades das quais ele conhecia muito bem, estatura mediana para os padrões de uma mulher que tenta se equilibrar diante de um salto alto estilo plataforma e cabelos encaracolados projetados para causar furor entre os presentes, travava uma conversação banal com um seu colega a respeito de um tema igualmente desimportante. Contudo, algo ali era objeto de maior atenção, a ponto de os demais atributos serem energicamente colocados em segundo plano: um conjunto de tatuagens geometricamente espalhadas ao longo da pele: obras de arte criadas por mestres anônimos incompreendidos, que deixaram seu legado para o mundo a partir de contornos destacadamente visíveis: uma flor de lótus que brotava pela extensão de seu braço, uma borboletinha azul próxima ao ombro direito; na nuca, algumas frases incompreensíveis; nos tornozelos, imagens que faziam evocar a luxúria e o êxtase, além de uma ode aos deuses a ocupar suas costas, da qual os olhos dele só podiam contemplar uma fração do todo, escondida sob o vestido florido que sua agora musa trajava. Consternado com o que observara do outro lado da sala, seus pensamentos eram, antes de qualquer coisa, meras formulações desprovidas de sentido. Num átimo de impulso desmedido, considerou a possibilidade de ir de encontro a ela e descobrir o significado de cada marca em seu corpo. Porém, antes que ele reunisse força suficiente para pôr-se em marcha, ela delicadamente saiu do recinto em direção ao elevador. Tentando restabelecer os sentidos agora abalados, começou a catalogar uma série de questionamentos grandiloquentes num monólogo interior que deixariam os desavisados perplexos diante da desenvoltura do sujeito em dramatizar um conjunto de expressões as mais exageradas. Após voltar a si, fato que ocorreu não sem um esforço apropriado, ele retomou suas atividades habituais, sem conseguir apagar de sua mente as imagens que presenciou e que fariam parte de suas conspirações intimas no decorrer do dia. Ao voltar para casa, as listas que tinha criado para si durante o dia envolviam alguma questão relacionada à mulher. Listas de locais em que poderia encontrá-la; listas de nomes de personalidades interessantes que possuíam tatuagem (pensava ele que essa era uma boa forma de tentar desvendar as qualidades que a fariam se apaixonar por ele, caso o mesmo conseguisse emular essa persona diante dela), listas de significados para ideogramas de línguas e símbolos de doutrinas religiosas oriundos das grandes civilizações, assim como frases de pessoas proeminentes que se encontram entre as mais procuradas na grande rede. Uns cliques e todo um universo de possibilidades se apresentavam para ele. Quanto trabalho pela frente a ser realizado! A noite seguinte seria um período de oportunidade, pois ele teria a disposição necessária para explorar os mistérios do mundo, para encontrar as respostas para os problemas que não poderiam ser encontrados em manuais de banca de jornal; encontrar a cura para todos os males que afligiam a humanidade. A busca frenética pelo domínio do conhecimento humano era acompanhada do desejo de desvendar cada parte do corpo de sua musa, percorrer dos pés à cabeça cada símbolo encontrado, num mergulho perigoso e sem garantia de retorno nas profundezas do Belo que ansiava em fazer parte. Ao amanhecer, não se deu conta de que tinha permanecido acordado durante a noite. Seu rosto, porém, exibia as marcas de um lutador que havia percorrido uma série de obstáculos, numa jornada ferrenha em busca de seu pote de ouro, e tinha saído do labirinto em que tinha se infiltrado de maneira triunfante, dono de si mesmo e senhor do seu destino. Foi ao trabalho sem tomar café da manhã, tão imerso em seus pensamentos, utilizando-se do trajeto para organizar mentalmente os objetivos firmados para o dia, numa sucessão de cenários apoteóticos e catárticos em que sua vida tomaria o sentido digno de merecimento de sua parte. Ao chegar ao escritório, entabulou uma conversa com o colega que tinha recepcionado sua musa, com o intuito de obter informações de cunho prático. A que horas ela apareceria por ali? Qual era o motivo de visita tão ilustre e temas correlatos. Após ser sumariamente ignorado por seu colega devido à petulância em manter tal diálogo, composto por um amontoado de frases desconexas que apenas exacerbam ainda mais a impaciência em manter uma conversação real, voltou para sua mesa e sentou-se decididamente na poltrona, a espera do grande momento. De posse de informações práticas, deixou o tempo passar registrando alguns pensamentos esparsos em seu caderno de anotações (uma delas era o slogan “Marcante como tatuagem”: eis a frase de impacto que almejava cunhar ao final de peça que estava elaborando para uma propaganda de sabonetes), ensaiava rabiscos que assumiam variadas formas, incompreensíveis para si mesmo, e contemplava o relógio afixado na parede, cujos ponteiros pareciam se deslocar tais como soldados em uma marcha fúnebre. Já se aproximava do ponto em que seus nervos entrariam em curto-circuito quando suas ansiedades se converteram em expectativas: ela adentrou a sala de seu chefe para entregar uma papelada qualquer e acertar os últimos detalhes de uma vultosa negociação para a empresa; usava de um longo vestido de brim azul até a altura dos joelhos, calçados de sola baixa da cor vermelha e cabeleira presa em coque. Ela demonstrava naturalidade ao gesticular com os braços, enfatizando a entonação de frases de efeito que tornariam mais palatável a importância do cumprimento dos termos contidos no contrato em pauta. Porém, a conversação foi mais rápida que o esperado, surpreendendo até mesmo ao admirador secreto, contido em seu mundo à espera do menor movimento para tomar a atitude adequada. Ela saiu do escritório e se dirigiu ao elevador situado no fim do corredor. Mais que depressa ele juntou suas coisas, fez um aceno com a cabeça para o colega ao lado informando que estaria ausente e caminhou à passos firmes em direção a ela. Após segundos que pareceram um período insuportável para o seu coração galopante, se aproximou dela e trocou palavras aleatórias, das quais obteve comentários pouco inspiradores, apesar de sua atenção respeitosa. Desejoso de expressar para a sua nova candidata a amante todas as emoções comprimidas naquele espírito desvairado, atropelava as palavras num ritmo que tornava sua voz estridente e de difícil compreensão. Aspirou detidamente o ar que suas narinas poderiam suportar, recompôs-se e tentou aproveitar uma ultima chance de reverter o cenário a seu favor. A cabine do elevador chegou ao andar em que se encontravam e ela se embrenhou em meio ao conjunto de corpos que aguardavam ensandecidos o momento de compartilhar de suas frustrações cotidianas à mesa do almoço. Ele permaneceu imóvel em frente ao elevador, levando alguns momentos para regular suas atividades cerebrais. Pegou um lenço umedecido no bolso da calça, limpou o excesso de suor estampado na testa e foi ao andar térreo pelas escadas, pois assim teria condições de controlar a adrenalina que corria por seu corpo. Lá fora, na grande avenida apinhada de prédios que já exibiam a marca do tempo e do descaso dos seus proprietários, sua visão foi tomada pelo fluxo de pessoas que andavam de forma sincronizada, disputando o espaço da calçada com vendedores ambulantes. Em meio à multidão, tentou encontrar a silhueta da mulher tatuada no conjunto de corpos sem fisionomia definida, missão que abortou logo em seguida, quando começou a sentir tontura e seu corpo lhe dava sinais de exaustão. Voltou-se para si, desviou os pensamentos inoportunos para os recônditos da alma e pôs-se em direção ao restaurante do outro lado da via. Após demorar um tempo para encontrar um local apropriado para sentar, acomodou-se e pediu o cardápio. Durante o almoço fazia uma complexa avaliação dos comportamentos que deviam ser evitados posteriormente, enquanto ingeria sem grande entusiasmo a primeira refeição do dia. Observava ao redor pessoas que se encontravam solitárias em suas respectivas mesas; talvez realizassem longos prognósticos sobre modos de agir que resultavam em desarranjos familiares, casos extraconjugais e batalhas verbais das quais o espólio dos vencedores se constituíam tão somente no acúmulo de experiências amarguradas e impotentes. Voltou às atenções para seu prato pouco bagunçado e notou um vulto se aproximar. Posso sentar aqui? A voz suave que invadiu seus ouvidos foi acompanhada de um movimento brusco de sua cabeça. Quando deu conta de si, ele notou o piercing a compor de forma singular o rosto de sua interlocutora, assim como a presença de alargadores e acessórios em suas orelhas desproporcionais. Ele percebeu que era o momento apropriado para aprender um pouco mais acerca suas obsessões.
A ausência de quebra entre (ou, inclusive, propriamente de) parágrafos levou a uma compreensão estranha da história, como se tudo ocorresse aos olhos do protagonista, sem uma ação real dele. Imaginei um cara sem expressão que presenciava tudo aquilo acontecer. Não me passou verdade, emoção.
Olá, Mozart!
Cara, você escreve bem, alguns trechos do conto mostram isso claramente.
Mas não gostei muito do resultado final. Achei um pouco confuso (provavelmente grande parte desse sentimento foi por causa da [falta de] formatação dos parágrafos).
Também me parece que a história girou muito para cair no mesmo lugar, saca? Ficou meio entolado desnecessariamente, aparentemente tentando (sem muito sucesso na minha opinião) criar uma aura de “mulher misteriosa”.
Alguns detalhes escaparam à revisão, como o “de” que faltou na última frase.
Abraço!