EntreContos

Detox Literário.

Novos Céus, Nova Terra (José Geraldo Gouvea)

Jesus des­ceu de seu trono na cidade de Jeru­sa­lém, a Nova Jeru­sa­lém, noiva de Deus, cal­çou as suas anti­gas san­dá­lias de pes­ca­dor gali­leu e saiu pelas ruas pavi­men­ta­das de jaspe e ônix, ocul­tando sua gló­ria em um manto de humildade.

Por toda a cidade rei­nava um estra­nho clima de eterna festa, e todos os seus cida­dãos iam ves­ti­dos à mesma maneira, com idên­ti­cos cor­tes de cabelo. Todos leva­vam nos seus ros­tos uni­for­mi­za­dos sor­ri­sos muito lim­pos, de den­tes muito alvos.

Não havia nenhuma imun­dí­cie no chão ou nas pare­des, pois não se comia e nem se excre­tava e todos os ani­mais que cha­fur­da­vam na sujeira haviam sido extin­tos. Pai­rava no ar um aroma sua­ve­mente resi­noso, de cedro verde e oli­vei­ras maduras.

Mas Jesus não se sen­tia bem, enojava-​​se do per­fume leve que embe­bia a tudo e, em meio a toda aquela inó­cua e ino­cen­tada ale­gria, sentia-​​se des­lo­cado. Haviam se pas­sado setenta e sete sema­nas desde o triunfo final con­tra Sata­nás e seus demô­nios, e desde então nada acon­te­cera de impor­tante. Tal­vez tenha sido esse tédio o que levou Jesus a lem­brar com sau­da­des, mui­tos milha­res de anos depois de sua exis­tên­cia car­nal, coi­sas sim­ples e ter­re­nas como uma taça de vinho morno, o pão ainda quente, a brisa arru­lhante do lago à tarde; ou o per­fume dos cabe­los negros de Maria Madalena.

Ela cer­ta­mente resi­dia em Nova Jeru­sa­lém, junto de milha­res de pes­soas indis­tin­guí­veis e feli­zes. Difí­cil era saber onde esta­ria, entre tan­tos ros­tos igua­la­dos, memó­rias ter­ra­ple­na­das, méri­tos igua­la­dos a força de um Juízo. No novo mundo não havia neces­si­dade de casas pois não se dor­mia ou comia ou se fazia amor. Eram todos angé­li­cos e só con­tem­pla­vam o amor a Javé, o Eterno e Todo-​​Poderoso. A pró­pria exis­tên­cia da cidade era uma osten­ta­ção sem sen­tido, pen­sava Jesus, pois nem a carne e nem o san­gue deve­riam ter her­dado o Reino. Puros e inó­cuos, os habi­tan­tes da Noiva de Javé não sabiam o que era cho­rar, e tam­pouco sabiam quem haviam sido.

A cami­nho de onde ten­ta­ria achar Mada­lena, Jesus encon­trou Zaqueu, em meio a um bando de seres que fla­nava a esmo pelas ruas. Aquele que fora um dia um peque­nino judeu, de peque­ni­nas pre­o­cu­pa­ções, ali estava tão mudado e irre­co­nhe­cí­vel que somente aquele que era um com o Pai o pode­ria ter identificado.

— Zaqueu, amigo, há quanto tempo!?

— Quem sois vós? — inda­gou o belo e insí­pido ser.

— Alguém que no mundo conhe­ceste como mes­tre e que te cha­mou de amigo.

Zaqueu olhou inex­pres­si­va­mente para o rosto de Jesus, sem con­se­guir reconhecê-​​lo. Só então Jesus se lem­brou que havia sido apa­gada a memó­ria de todos os res­ga­ta­dos, para que pudes­sem ser lim­pos de todo pranto e de toda lágrima. Se tives­sem lem­bran­ças, cer­ta­mente teriam dúvi­das, teriam moti­vos para sofrer. Somente o esque­ci­mento asse­ve­rava a liber­dade. Sem o esque­ci­mento have­ria a sau­dade de algum amigo, amante ou parente — cer­ta­mente des­ti­na­dos à for­na­lha de fogo, junto com o Dra­gão que era cha­mado de Sata­nás ou Lúcifer.

Nesse momento Jesus se desin­te­res­sou de Mria Mada­lena. De que adi­an­ta­ria encontrá-​​la naquele estado vege­ta­tivo e ambu­lante? Ergueu seus olhos para o céu, vendo a leste um pilar de fumaça que se erguia do Geena. Lá estava o poço imenso de piche e betume, de fogo e de enxo­fre, no qual os cor­pos e as almas dos per­di­dos sofriam a tor­tura eterna da ira de Deus.

Único habi­tante da Nova Jeru­sa­lém que não tivera o seu cora­ção lavado de toda lem­brança, Jesus sen­tiu um cala­frio ao pen­sar na escala ino­mi­ná­vel dos ter­ro­res que acon­te­ciam debaixo daquele cin­zento pilar de fumaça, que bri­lhava à noite na dire­ção de onde nas­cia o sol, tal como um dia bri­lhara à frente dos acam­pa­men­tos dos isra­e­li­tas outro pilar de fumaça e fogo que os levava pelo deserto. Cer­ta­mente alguns dos que lá esta­vam haviam feito por mere­cer, alguns haviam sido pio­res do que Lúci­fer e seus demô­nios. Mas, ah, quan­tos lá não esta­vam por razões peque­nas, capri­chos legais que nin­guém nunca com­pre­en­dera, como aquela his­tó­ria de não cozi­nhar o cabri­ti­nho no leite da cabra ou não poder comer pão com fer­mento em cer­tas épo­cas. Ou pre­fe­rên­cias sexu­ais que nem faziam sen­tido no estado angé­lico. Ou ape­nas por não terem amado a Deus com sufi­ci­ente aban­dono. Por outro lado, Jesus se inco­mo­dava com a pre­sença, em Nova Jeru­sa­lém, de tan­tas pes­soas arre­pen­di­das de última hora, ainda a muito custo ocul­tando nos cor­pos o per­fume da morte ou da depra­va­ção, ape­sar de insis­ten­te­mente lava­dos no san­gue do cordeiro.

O diá­logo com Zaqueu o fizera desis­tir de encon­trar Maria Mada­lena. Teria sido inú­til vê-​​la, pois ela já não se lem­bra­ria dos anti­gos dias às mar­gens do Gene­saré, comendo figos fres­cos com mel e ouvindo as belas fábu­las que um Jesus de barba ainda não tão cer­rada lhe con­tava. Ente­di­ado, retor­nou ao seu Trono de Gló­ria, ten­tando divertir-​​se com o ritual pre­ciso das lou­va­ções dos que­ru­bins e dos vinte e qua­tro anciões. Então, ao con­tem­plar o mar de vidro, sua mente se nublou com a lem­brança do lago de fogo e enxofre.

Aban­do­nando a sala no meio da lou­va­ção dos anjos e dos san­tos, che­gou à janela e obser­vou a negra coluna de fumaça que se erguia a sudeste, no hori­zonte. Uma lágrima de san­gue se for­mou no seu olho direito ao ver aquele pena­cho escuro e feio que macu­lava a lim­peza per­feita do hori­zonte da Nova Terra e do Novo Céu.

— Meu Deus, Meu Deus, por que os aban­do­naste? — ele se per­gun­tou, num cochi­cho que ribom­bou pelas esfe­ras, rom­pendo a har­mo­nia da música celeste.

Então a sala foi inva­dida pela suave fra­grân­cia de rosas, que lembrava-​​lhe sua Mãe. Mas era Gabriel, o per­di­gueiro de Deus, com sua obe­di­ên­cia inar­re­dá­vel e sua per­sis­tên­cia mile­nar. Não era nem neces­sá­rio que algo fosse dito. Se ele ali estava, isso envol­via algo grave, mas Jesus não estava inte­res­sado. Evi­tava falar-​​lhe, não con­fi­ava nele, ape­sar da cega con­fi­ança que mere­cia do Pai. Dei­xou Gabriel com os anciões e pegou para si um par de asas ange­li­cais e saiu a fla­nar pelos ares lim­pos daquele mundo tocado pela Von­tade divina.

Geena, o poço do abismo, o lago de enxo­fre e de fogo… o lugar que assom­brara as ima­gi­na­ções de milha­res de gera­ções. Ali estava, uma bocarra negra escan­ca­rada na face da terra, uma cica­triz dei­xada pela ira divina. Aquele rasgo infer­nal des­gra­çava a uni­for­mi­dade da beleza da nova esfera ter­res­tre, reco­berta de delei­to­sos paraí­sos. Feliz­mente não se podia nela che­gar senão voando, e aos sal­vos não era per­mi­tido voar.

A dis­forme fenda vomi­tava con­ti­nu­a­mente uma fuma­rola densa, com um forte cheiro de carne e de podri­dão. Aquilo pai­rava pesa­da­mente no ar, subindo com difi­cul­dade e se acu­mu­lando na depres­são for­mada em torno da cra­tera cau­sada pela Segunda Queda de Sata­nás. Pare­cia que somente uma força sobre­na­tu­ral con­se­guia arran­car o pus daquele tumor e esguichá-​​lo para o espaço, impe­dindo que gan­gre­nasse todo o resto do mundo.

Pou­sado à borda, reves­tido de seu poder para resis­tir à pes­ti­lên­cia que ema­nava daquela chaga imunda, Jesus engo­liu em seco e criou cora­gem para des­cer. Embora naquele dia tivesse vindo por sub­ver­são, aque­las visi­tas eram parte do Plano, fosse ele qual fosse. Eram um ritual sema­nal de humi­lha­ção dos anjos des­gra­ça­dos e dos que com eles sofriam a eter­ni­dade da culpa por uma efê­mera transgressão.

Des­ceu a pé, des­calço, pelas tri­lhas trai­ço­ei­ras que espi­ra­la­vam pela cra­tera abaixo em dire­ção ao fundo da terra. Per­cor­rendo aque­les luga­res ter­rí­veis e ini­ma­gi­ná­veis, Jesus lem­brou do suave aroma das flo­res de sicô­moro na pri­ma­vera e dei­xou cair outra lágrima, sen­tindo sau­da­des de ser ape­nas a cri­ança Yehoshua’ bar Yos­sêph na Gali­léia de tan­tos milha­res de anos antes. Aquela cri­ança que nada ainda sabia da enor­mi­dade dos peca­dos da terra… e do céu.

No nono e mais pro­fundo dos abis­mos encontrou-​​o. Judas estava nu e cal­ci­nado, san­grando atra­vés da pele estur­ri­cada e coberto dos odi­o­sos inse­tos que haviam sido espe­ci­al­mente cri­a­dos para as pro­fun­das caver­nas do Inferno.

— Judá, és tu?

— Sim, ainda sou. Ape­sar de toda a tor­tura das eras.

Yehuda’ bar Yonathan, o sicá­rio que um dia se tor­nara o melhor amigo do menino Yehoshua’ ali estava, redu­zido às fezes e aos ver­mes. Mas ele ten­tou se recom­por, ao menos endi­rei­tar a espi­nha, segu­rar o pranto inter­mi­ná­vel que o quei­mava sem lágri­mas (pois aos Con­de­na­dos à extrema pena não é per­mi­tido chorar).

— Que lás­tima, Judá.

Jesus teve a sen­si­bi­li­dade de mais nada dizer. Ape­nas aproximou-​​se dele e o abra­çou fra­ter­nal­mente, dizendo-​​lhe:

— Como me arre­pendo de tudo, Judá.

— Eu não tenho do que me arre­pen­der, Jesus. Eu nunca soube o que estava fazendo.

As amar­gas pala­vras retor­na­ram à mente de Jesus: « … pois eles não sabem o que fazem. » Mas ali estava Yehuda’, naquele estado deplorável.

O que res­tava fazer? Enquanto pen­sava, usou de seus pode­res e prer­ro­ga­ti­vas para sus­pen­der tem­po­ra­ri­a­mente as dores e ardo­res do amigo, que apa­re­ceu ali naque­les hor­rí­veis porões do pla­neta, como um homem quase gri­sa­lho, magro e de expres­são vin­cada pelas mágoas do mundo.

— Não, Jesus. Por que o fazes?

— Por­que não suporto ver-​​te assim.

— E achas que eu suporto, quando não estás me vendo?

Jesus dei­xou pen­der a cabeça, der­ro­tado pela lógica crua do amigo, que ainda con­ser­vava a raci­o­na­li­dade, mesmo após lon­gos anos naque­las mas­mor­ras impiedosas.

— Um alí­vio tem­po­rá­rio, uma graça de efeito ape­nas esté­tico. Tu me liber­tas de meus gri­lhões para não me ver­des tão des­truído. Mas quando me aban­do­nas a estas dores, e à sau­dade de dias ale­gres que vive­mos na Terra Antiga, o alí­vio parece cruel por­que ele me res­ti­tuiu a capa­ci­dade de enten­der a enor­mi­dade da tor­tura que me aflige sem me ferir.

Ao con­trá­rio dos sal­vos, os Con­de­na­dos pre­ser­va­vam inte­gral­mente sua memó­ria. Isso lhes cau­sava a dor adi­ci­o­nal da sau­dade, pio­rava a tris­teza de sua sen­tença, mas cer­ta­mente tornava-​​os com­pa­nhias melho­res do que os ale­gres tolos de Nova Jeru­sa­lém, esva­zi­a­dos de si e pre­sos como peças de um reló­gio aos ritu­ais de lou­va­ção repe­ti­tiva das gra­ças de Abba-​​Pai que pare­cia às vezes tão padrasto.

Jesus então afas­tou seu poder. As cha­mas e a lava reto­ma­ram seu lugar na pele de Judas, que chiou e esta­lou à medida em que densa crosta de cin­zas a reco­briu e cres­tou. O pobre diabo solu­çava impo­tente, com uma expres­são de bea­ti­tude mar­te­lada no seu rosto que não con­se­guia expres­sar nem arre­pen­di­mento e nem dor. O inferno é um lugar onde é impos­sí­vel pen­sar ou ter deci­sões. É como estar eter­na­mente preso em um momento iso­lado da vida, o pior de todos, é claro.

Por fim Jesus se can­sou daquilo, ou não mais supor­tou. Saiu de lá e foi se assen­tar sobre o Monte Líbano, de onde, ao longe, con­tem­plava a água azul-​​aço do Medi­ter­râ­neo e os pla­nal­tos da sua sau­dosa Gali­léia, agora desa­bi­tada e sel­va­gem, deserta entre os deser­tos do mundo, domi­nado ao longe pelo cubo dou­rado da Nova Jeru­sa­lém, com suas doze por­tas que não ser­viam nem para entrar e nem para sair. Por fim, em um momento de ines­pe­rada dor, ergueu os punhos ao Céu e gemeu:

— Abba-​​Pai, por que te reve­laste mau?

Um silên­cio agô­nico se fez no mundo, como se tives­sem matado todos os pas­sa­ri­nhos e acor­ren­tado o mar. Jesus ras­gou suas ves­tes bran­cas e que­brou nos joe­lhos a sua espada de dois gumes. Por fim, gol­peou em uma pedra a sua coroa de ouro puro e cri­só­pra­sos, partindo-​​a e à pedra.

— Abba-​​Pai, por que te reve­laste injusto?

O silên­cio se fez nas esfe­ras, o ar parou como se nin­guém no pla­neta res­pi­rasse. Então Jesus, des­calço e de ves­tes ras­ga­das, des­ceu do Líbano em dire­ção a Jeru­sa­lém, para escân­dalo dos pás­sa­ros que o viam pas­sar ferindo os pés divi­nos nas pedras do cami­nho. Os anjos revo­a­ram como abu­tres por todo o deserto, mas não ousa­vam pousar.

Quando che­gou à pla­ní­cie de Megido o escân­dalo já che­gara a todas as potes­ta­des, a todos os tro­nos e que­ru­bins e sera­fins. Gabriel, armado de sua espada fla­me­jante que um dia expul­sara Adão do Éden, lide­rava uma hoste trê­mula diante dos por­tões da cidade, e enviou alguém para par­la­men­tar com o caminhante.

Ao ver o anjo aproximar-​​se, ves­tido para a guerra, como nos tem­pos do Apo­ca­lipse, Jesus adi­vi­nhou tudo que o esperava:

— Diz-​​me se sabes quem o manda!

— Eu venho por ordens de Gabriel!

— Men­tes, ou ignoras?

— Não minto nem ignoro, venho por ordens de Gabriel.

— Vens dizer-​​me o quê?

— Venho inda­gar de seus propósitos?

— E por acaso deve o rei satis­fa­ções na cidade onde tem o seu Trono?

As pala­vras de Jesus foram pro­nun­ci­a­das com tama­nha raiva que o anjo sen­tiu seus joe­lhos cho­ca­lhando e retro­ce­deu empur­rado pela gló­ria de Jesus, dei­xando no chão a marca de seus sapa­tos, como se tivesse sido arras­tado de pé.

— Por favor, mes­tre, por que rom­pes a har­mo­nia do mundo?

— Por­que não há, ino­cente, e nem nunca houve har­mo­nia alguma no mundo. Agora esco­lhe se tua espada luta comigo ou con­tra mim.

O anjo bal­bu­ci­ava as pala­vras com dificuldade:

— Perdoe-​​me, mes­tre, eu não ouso estar con­tra o Cor­deiro, mas não posso enfren­tar as hos­tes do Céu.

— Tu és fraco, e o teu des­tino é a desonra.

A um gesto de Jesus a espada e as asas do anjo desa­pa­re­ce­ram no pó do deserto da Judeia. Inde­feso e ino­fen­sivo, um ser louro ali ficou cho­rando sua desgraça.

— Mes­tre, não me dei­xes. Havia har­mo­nia no mundo. Por acaso eram men­tira os cân­ti­cos de lou­vor que nos aca­len­ta­vam a cada noite?

— Eu os ouvi e odiei desde o pri­meiro dia. Não existe sin­ce­ri­dade onde não há esco­lha. Não existe amor sem liberdade.

— Vós e o Pai sois um. Como pode­ria ter apa­re­cido a desarmonia?

Jesus olhou de volta e teve pena daquela cri­a­tura, ima­gem e seme­lhança de um efebo andró­gino, que cho­rava empo­ei­rada sob o sol brando de um mundo inca­paz de ferir.

— Aguarda-​​me

Então olhou para o céu, como se qui­sesse ver Javé abrir as nuvens, mas Ele não estava lá. Con­ti­nuou cami­nhando e final­mente che­gou a uma das doze idên­ti­cas por­tas, pela pri­meira vez aberta. Lá estava Gabriel, de glá­dio e elmo a postos.

— Gabriel, tu que odeias o erro e amas a ver­dade. Entra comigo para que pos­sa­mos des­truir o engano e suplan­tar a mentira.

— Não, Jesus. Estou aqui em nome do Pai. Eu ajo por sua von­tade e para sua von­tade é que eu existo. A von­tade que me criou foi a de con­ser­var a ordem no mundo, des­truindo e punindo o mal. Sou a espada de Deus e a minha mis­são é servi-​​Lo e pro­ter Sua obra.

— Eu e o Pai somos um. Não podes obedecer-​​lhe sem igual­mente obedecer-​​me.

— Cer­ta­mente que não. Pois somente os que estão de acordo com o Pai podem ser um com ele. Neste momento, eu e o Pai somos um.

— Então, Gabriel, haverá guerra no Céu outra vez, como já houve outras vezes, e esta será pior, será mais longa e des­truirá mais.

Gabriel tomou sua espada à cinta e avan­çou uma perna sobre o cami­nho que Jesus mani­fes­tara a inten­ção de tomar. Em vão, pois Ele o afas­tou com um aceno da mão que fez o anjo recuar sobre a poeira, dizendo:

— Não me con­funda com outro Sata­nás, Gabriel.

— Cer­ta­mente que não — disse-​​lhe o anjo, com um sor­riso torto na boca. Bem sei que és mais pode­roso, mais antigo nos modos do pai e mais deter­mi­nado a agir segundo o que enten­des por certo. Mas igual­mente sei que estás sozi­nho e tens tuas fraquezas.

— E devias saber que não vim a Nova Jeru­sa­lém para entrar, mas para fazer sair dela quem assim deseje.

— E alguém em sã cons­ci­ên­cia dese­ja­ria dei­xar a Cidade dos Eleitos?

Jesus não lhe res­pon­deu. Em vez disso, abriu os bra­ços e impos­tou a voz sobre o por­tão entre­a­berto, fazendo-​​a ecoar pelas ave­ni­das e vie­las da cidade:

— Ó vós que sofreis a mal­di­ção do apa­ga­mento de toda lágrima, eu vos res­ti­tuo a memó­ria para quem sofrais a dor e encon­treis a ver­dade, e na ver­dade, a liberdade.

Por um momento nada acon­te­ceu. Mas no ins­tante a seguir um cla­mor se ouviu den­tro dos her­mé­ti­cos muros da cidade, um ala­rido de vozes revol­ta­das, um mur­mú­rio de gente inde­cisa, um bur­bu­ri­nho de pes­soas deso­ri­en­ta­das. A dor da lem­brança devas­tou tan­tos cora­ções que o pranto deles pre­en­cheu o ar.

— O que fizeste!? — excla­ma­ram os anjos, assustados.

— Jus­tiça, apenas.

— É justo que eles sofram, é justo que vaguem pelo mundo sem des­tino, sem ter o que fazer?

— Qual­quer coisa é mais justa do que a escravidão.

A força da pala­vra foi como uma bofe­tada no rosto de Gabriel, que sentiu-​​se quei­mando por den­tro e por fora:

— Blas­fê­mia!

— É a segunda vez que me acu­sam disso. Como da vez ante­rior, sou inocente.

Bati­das sur­das se ouvi­ram nos por­tões gigan­tes­cos, por todos os lados. Eram os remi­dos que não mais se supor­ta­vam, que odi­a­vam os ritu­ais diur­nos, a inter­mi­ná­vel luz acesa no cen­tro de tudo.

— Esqueça-​​me, Gabriel. Você terá muito tra­ba­lho para man­ter toda esse gente presa, ainda que eles não pos­sam ter asas.

E assim Jesus dei­xou Jeru­sa­lém e seguiu de novo rumo a sudeste, em dire­ção a Geena, o lago de fogo aonde lan­ça­ram o Dragão.

Sua inten­ção era, caso ainda fosse pos­sí­vel, erguer a voz à borda das lín­guas de laba­re­das, e dizer:

— Ó vós que sofreis no ven­tre da terra, nas cha­mas de Hin­non. Sede liber­tos das cadeias que vos pren­dem e da dor que vos petri­fica. Estais per­do­a­dos, mesmo vós que um dia fos­tes cha­ma­dos de « demônios. »

Depois, con­vi­da­ria a todos a ocu­par os imen­sos vazios da Terra e do Céu, com novas e enge­nho­sas aven­tu­ras e des­co­ber­tas, ao menos enquanto o pai per­mi­tisse. E enquanto cami­nhava, Jesus dizia para si mesmo:

— Antes de qual­quer outra coisa, é impe­ri­oso que se separe a luz das tre­vas, o dia da noite, o claro do escuro.

9 comentários em “Novos Céus, Nova Terra (José Geraldo Gouvea)

  1. José Geraldo Gouvêa
    1 de setembro de 2014
    Avatar de José Geraldo Gouvêa

    Poxa, o final remetendo ao Gênesis não foi finalizante o suficiente, Eduardo?

    • Jauch
      1 de setembro de 2014
      Avatar de Jauch

      Non non non, J.G.
      Onde está o sangue? As vísceras? O tilintar ensurdecedor das espadas flamejantes antes de deceparem os membros?????
      Onde está o sexo escaldante????
      E as mulheres nuas?
      Sem isso, não há fim que chegue… 😛
      😉

      Confesso que não tinha percebido a menção ao Gênesis, J.G.
      Deve ser do fato de eu ter me tornado um “não interessado” em termos de religião… rs

      • José Geraldo Gouvêa
        2 de setembro de 2014
        Avatar de José Geraldo Gouvêa

        Só tu mesmo, ó pá!

        Ei, espero que apareças mais vezes: a literatura precisa de tua presença.

        E traga mais gente contigo.

  2. Jauch
    29 de agosto de 2014
    Avatar de Jauch

    Eu adorei. Mas confesso que me parece que está “incompleto”, como se não tivesse um final “satisfatório”… 😛

    Abraços!

    • EntreContos
      29 de agosto de 2014
      Avatar de Gustavo Araujo

      Eduardo Jauch na área! Parem as prensas!

      • Jauch
        30 de agosto de 2014
        Avatar de Jauch

        Ena… Pensei que ia conseguir passar despercebido… xD
        Mas pronto, agora que fui descoberto, já não há mais nada a fazer, a não ser começar a comentar mais… 😛

  3. Ceres Marcon
    27 de agosto de 2014
    Avatar de Ceres Marcon

    Parabéns!
    A rebelião sempre vem, porque cada um interpreta justiça a sua maneira.
    Um texto que faz pensar.
    Gostei dos detalhes, da linguagem e da narrativa.
    Parabéns!

  4. JC Lemos
    27 de agosto de 2014
    Avatar de JC Lemos

    Fantástico! Achei muito bom, e assim como o Rubem, também acho que você seria queimado na fogueira por heresia. Haha
    Mas sério, sempre quis saber como seria, e gostei de como você fez aqui.
    Parabéns!

  5. rubemcabral
    27 de agosto de 2014
    Avatar de rubemcabral

    Gostei muito. Um “contaço”, que certamente te causaria alguma dor de cabeça se divulgado ao público “errado”, rs.

    Muito bacana a pesquisa: os detalhes enriqueceram bastante o texto.

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Publicado às 26 de agosto de 2014 por em Contos Off-Desafio e marcado .