Não foram preciso muitos dias para adentrar no hermetismo que assola as terras a oeste. Com menos de uma semana de viagem, já não contava com a segurança nata da familiaridade. Decerto, já havia abandonado os limites de São Paulo em outros tempos, mas aquela era minha primeira estada em Mato Grosso. Todas as incursões anteriores conduzidas por desbravadores pelo território serviram para desanuviar parte dos mistérios daqueles campos, mas mesmo com mapas em mãos, sabia que me orlava o desconhecido. Além, vales com rios turbulentos permaneciam intocados, ocultos por brumas densas e intragáveis. Suas paisagens tomadas pela vegetação retorcida, como se o peso de tempos ancestrais agisse sobre as galhadas, causaram-me uma impressão assombrosa. Ali o mundo era mais antigo, e o sopro do vento ressentia a poeira e isolamento. O calor castigava tanto aos homens quanto aos cavalos; uma sensação árida que nos emplastrava com suor as roupas. Minha comitiva seguia pela estrada de terra batida, atravessando esporadicamente vilarejos esquecidos pela humanidade. Em geral, as cidadelas resumiam-se a paupérrimos aglomerados de casas pau a pique em uma caótica disposição urbana. De qualquer modo, quando as encontrávamos garantíamos a noite sob um teto. Quando não, nos recolhíamos sob as estrelas, com seu brilho lúgubre a me tomar o sono.
Por vezes, a distância entre os povoados parecia aumentar, o que apenas contribuía para o sentimento de desolação. Destes momentos, onde os instintos aguçavam-se devido ao receio, vieram os relatos de meus companheiros das rápidas aparições nas matas que flanqueavam nossa via. Eu mesmo presenciei duas ocasiões, onde um farfalhar brusco nas folhagens baixas dos arbustos vacilou ao esconder a pele morena em fuga. Antes de empreendermos viagem, fomos informados sobre possíveis interações com indígenas. Os caioás, contudo, eram um povo pacífico e tímido, de modo que não nos ofereceram problemas. De qualquer modo, esse conhecimento não bastou para inibir meus homens de engatilharem suas armas e retesarem as costas quando explodia um inesperado agito mata adentro. Também não forneceu segurança o bastante para me impedir de, pela primeira vez na vida, pedir por uma arma e um coldre.
Não sou um homem de natureza rústica. Graduei-me engenheiro na Escola Politécnica de São Paulo, e desde então fui empregado na Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. A necessidade da construção de uma ferrovia integrando o oeste do país tornara-se evidente após a demora no envio de tropas e mantimentos durante a Guerra do Paraguai. Assim seguia meu ofício: liderando a equipe de peões, cabia a mim realizar um estudo sobre os melhores terrenos para atravessar a linha férrea. Para tanto, era necessário uma visão não apenas geográfica, mas também econômica, direcionando-a para locais onde a matéria prima pudesse ser mais facilmente recebida ou retirada.
Assim, fica evidente que grande parte de meu serviço dependia de um conhecimento prévio do terreno que galgávamos. Para tanto, era justamente nas cidadelas que travava prosa com os habitantes para conseguir algum direcionamento. Com os apontamentos conseguidos projetava sobre os mapas as possíveis rotas. Após, conferia as áreas apontadas e conduzia as análises pertinentes no local. E por uma dessas ocasiões, que pela primeira vez ouso abordar, que se deve esse relato.
Há muito tínhamos deixado a vila de Miranda ao leste. Ali tudo que víamos eram feridas abertas deixadas pela Guerra do Paraguai. Algo feito chagas de alvenaria e madeira rompendo o solo doentio onde, sabíamos, muito sangue maculara. De forma semelhante se encontrava a fatídica vila de Alta Jericó.
O lugar era um remanso de viúvas, e poucos foram os homens que vi pelas ruas. No entanto, a calmaria em nada trazia sossego. Parecia o silêncio instaurado a fim de não se quebrar uma atmosfera sacral. Um voto de silêncio para preservar um véu sobre coisas além de nosso entendimento. Assim que lá chegamos, uma inquietação ainda maior abocanhou a mim e meus homens. Em um primeiro momento, atribuí a sensação aos olhares esquivos dos residentes. Pouca informação extraí das mulheres que abordei. Em algumas delas permeava uma noção de ameaça falar sobre as terras ao noroeste da vila, como se a simples alusão ao fato amaldiçoasse seu locutor. De uma veio o sussurro proibitivo que desencadeou minha sina. “Ninguém anda nas terras do Rei”, disse. Mais por curiosidade do que por comprometimento ao ofício, decidi por conhecer tais campos.
Pouco mais de três quilômetros a noroeste de Alta Jericó, o terreno declinava e abria-se em um grande platô. Ao longe, um casarão cedia sua imponência à depredação do tempo. Devido ao abandono, a mata reconquistara o que era seu. Das janelas quebradas, trepadeiras serpenteavam tateando pelo sol. Pouco a frente, um curral denunciava a provável ocupação da propriedade em tempos passados. Possivelmente pelo efeito da guerra, seu antigo proprietário não conseguiu manter os lucros com a pecuária. Pelo luxo que outrora encorpava a carcaça daquele casarão, também não seria de se espantar que se dirigissem ao sujeito como rei. De qualquer modo, a configuração geográfica cumpria perfeitamente com os requisitos que buscava.
Retornando para Alta Jericó, interroguei novamente algumas mulheres que varriam as varandas, mas todas me deram as costas. Já pelo fim do dia, cansado com meu insucesso, uma criança flagrou minha última abordagem. Chegou manso limpando as mãos encardidas na bermuda surrada. Estendeu a palma em um pedido por dinheiro e, assim que depositei uma moeda, disse apressado: “Vai atrás do velho Dentada, lá no bar do Pitú.” Olhou para os lados e correu.
O bar em questão se tratava de uma edificação humilde de alvenaria com uma pintura branca descascada. As ranhuras faziam com que parecesse que o prédio pudesse rachar a qualquer momento. De dentro saía o som choroso de uma sanfona acompanhado pelo dedilhado da viola. Quando entrei, o ambiente se fez mudo. Um cheiro forte de suor emanava do lugar, resultado de um dia de trabalho com o gado. Os homens que bebiam ou se ocupavam com o carteado me dardejaram com o olhar. As mulheres abortaram o riso e endireitaram-se sobre os colos em que se sentavam. Fiz uma breve reverência com a cabeça e segui em passos lentos para o balcão. Aos poucos, as atenções dadas a mim rarearam. Logo, a casa enchia-se novamente com música. Apanhei de meu bolso algum dinheiro e o espalmei contra o balcão gorduroso.
—Uma dose, por favor.
O proprietário olhou-me com desdém, provavelmente por eu ser uma cria da civilização, mas não negou meu dinheiro. Bateu um copo imundo a minha frente e despejou a cachaça. Retesei as costas e estalei o pescoço antes de apanhar o copo e virá-lo garganta adentro. Decerto a atitude não era o esperado pelo proprietário, que devia ver em meus modos algum sinal de fraqueza. Assim, consegui um breve riso e uma brecha para aproximar-me.
—Disseram-me que aqui encontraria o velho Dentada.
Recebi um olhar inquisidor.
—Que quer? – retorquiu ríspido.
—Apenas uma prosa que valha. – insisti, arrastando algum dinheiro em sua direção.
Sem emitir um ruído, o proprietário apanhou as cédulas e me indicou com a cabeça um canto escuro aos fundos do bar. A pouca luz das chamas mostravam a silhueta de um velho atrás de uma garrafa de pinga. Mesmo estando guarnecido, comprei mais duas doses e me aproximei do recluso.
—Dirijo-me ao senhor Dentada? – perguntei-lhe enquanto oferecia um dos copos.
—Senhor nunca fui, mas Dentada venho sendo.- respondeu o outro enquanto apanhava o copo e me olhava com desconfiança. Após certo tempo, me indicou com a cabeça para sentar-me.- Que se trata?
O velho deveria ser um sexagenário, porém sua aparência rogava muitas décadas a mais. O queixo projetado entregava o possível motivo de sua alcunha. Os cabelos já eram ralos e enevoados, mas via-se que em outras épocas vestiam-se de negro. A pele trazia a miscigenação, tendendo para o negro. Era notável o total abandono com a higiene, e um cheiro forte o acompanhava feito uma aura amaldiçoada.
—Chamo-me Francisco Rosário. Sou um engenheiro vindo de São Paulo a mando da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Traremos uma ferrovia para estas terras de modo que a vida de todos melhore. Para isso, precisam de mim para saber onde devem meter os pés. Neste ponto – disse enquanto rodava meu copo entre os dedos – devo dizer que as terras a noroeste são excelentes para os calçados.
A simples menção fez o homem empalidecer-se e trincar os dentes que ainda tinha. Depois, olhou-me colérico como se houvesse citado o próprio Satã.
—Essa metidez ainda vai te pendurar pelo pescoço. Ninguém pisa na terra do Rei.
—Novamente falando nisso de rei? Olhei o lugar. Sim, havia luxo ali, mas agora é um abandono. Acho que esse sujeito terá interesse no que irei lhe propor.
—O Rei não é gente pra se interessar pelo que o homem quer. Você é um forasteiro, por isso não sabe. Todos aqui se cagam quando ouvem seu nome, por isso não ousam falar nele. E, diabos, eu é que não deveria mexer com isso! Eu o vi, e isso ainda me rouba o sono! – ficou quieto por um instante e fechou os olhos para controlar a respiração. Vencido, apanhou a garrafa e serviu-nos outra dose. – Está certo. Vou te falar do porquê desse trem passar por aquelas bandas ser uma burrice. Me pesaria o peito a culpa de mais alguém ver aquilo.
“Tudo praquelas bandas, pra baixo da ribanceira onde acaba Alta Jericó até perder as vistas, era coisa do coronel Teixeira Duarte. Não sei se era militar de batente, mas não tinha alma com coragem pra chamar ele por outro nome. Eu era moleque quando vim de Goiás com meu pai. Mal sabia montar, mas já servia ao coronel. Ele gostava de meu pai, sabe. Por isso tratou logo de deixar pra ele a tarefa de cuidar dos outros peões. O serviço era duro e rendeu algumas desavenças, mas todos respeitavam meu pai. Quando morreu, o coronel viu em mim um pouco da sombra do velho. Já era rapaz formado e entendia do manejo do gado. Ele deixou que eu continuasse morando na casinha perto do casarão e, pouco a pouco, me colocou no lugar que era de meu pai. Era um bom homem, o coronel. O problema é que tinha na mesa um banquete, mas sempre gritava por mais.”
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“Era casado com uma senhora da capital. Talvez por isso a dona sempre olhava para esse mundo como se já houvesse provado algo melhor. Diferente da filha, que nasceu por essas bandas. Uma formosura só, a menina. Sabia que não era pro meu bico, mas era uma lindeza aquela pele de leite e os cabelo cor de palha. Batizaram de Clara, em honra ao dia da santa. Também tinha cabeças de gado a perder a conta e toda Alta Jericó embaixo do punho, mas ele queria mais.”
“Um dia deu de aumentar as fronteiras da sua propriedade. Entenda, aqui sua ordem era lei. Mais pra oeste, a guerra com o Paraguai queimava, e até a gente saiu chamuscado. Era uma terra de ninguém isso tudo. E ele era sujeito sabido. Foi devorando o campo até quase dobrar suas terras, enquanto todo mundo se preocupava com a matança.”
“Sabia que iria dar merda. Não com a gente daqui. Todo mundo sentava no rabo quando o coronel passava. Mas os índios tem seu orgulho, sabe? Ainda mais a corte do Rei Branco. Ah, se soubesse dos terrores que escondiam!”
“Que até os guaicurus e os paiaguás tinham medo dessa gente. Já dominaram do Rio da Prata até mais pro norte, no Pacífico. Se chamam de obatinga, os caras branca. Costumam cortar parte do lábio para deixar os dentes a mostra. Depois, pintam com pó e seiva o rosto de branco. Dançam a noite ao redor de fogueiras gritando feitiçarias em uma língua profana. Sua magia é má e feita na base do sangue. Dizem que devoram gente, esse tipo. Eu não duvido.”
“Não gostam da luz do dia, e quando são vistos sob o sol, normalmente usam pele de lobo guará ou anta para cobrir a pele. Parecem se importar menos com o calor do que com o sol. Sobre a cabeça têm pouco do cabelo, deixando que cresçam apenas nas laterais, até atingirem a cintura.”
“Com o tempo, alguns animais do patrão começaram a desaparecer. Poucos no início, mas logo eram dezenas. As carcaças apareciam jogadas contra as cercas. Nem gosto de lembrar como estavam os animais. Pareciam devorados de dentro para fora, com as tripas reviradas e roídas, os restos de carne apodrecida escorrendo pelo gramado. Mas isso não inibiu o coronel. Ele ordenou que eu e meus homens déssemos cabo da indiarada.”
“Por algumas noites ficamos de tocaia no pasto. A madrugada era uma cegueira, e nossa coragem uma burrice sem tamanho. Vimos os obatingas chegando, rodeando o gado. Se moviam feito bicho peçonhento. Alguns deles fumavam um cachimbo longo, com um fumo de cheiro forte, e davam baforadas em direção das vacas. Meu estômago embrulhou com o cheiro doce, e me assustei por perceber que minhas pernas formigavam. Estava ajoelhado, então mudei de posição para esticar elas. Acho que foi isso que me denunciou. O barulho fez com que os índios parassem e nos olhassem. Aquelas caras pintadas que de noite pareciam crânios. Vendo que fugiriam, sacamos as armas e atiramos nos malditos. Matamos nove. Sempre fui bom de mira, e desses quatro foram por minha conta. Não fizemos isso com gosto, mas como mandado pelo coronel, passamos a faca pelo bucho dos defuntos, abrindo eles feito peixe para destripar, e jogamos do outro lado da cerca. ‘Olho por olho’, tinha dito o patrão.”
“Por um tempo achamos que até os obatingas tinham se dobrado pro coronel. Nas contagens, já não tinha animal sumido. Pelas noites, era um sossego danado. Mas toda essa calmaria só foi para nos pegar de calça arriada. Um mês depois da emboscada, quem sumiu foi dona Clara, a filha do coronel.”
“O homem espumava feito cão louco. Mandou que eu fosse com outros cinco pôr fim na indiarada. Que era bom trazer a filha de volta, ou eu morria junto. Sem pensar duas vezes, pois dona Clara não merecia uma maldade daquelas, selei meu cavalo, passei minha espingarda nas costas, apanhei dois revólveres e, com o chapéu na cabeça, galopei pra dentro da mataiada.”
“Os dias eram improdutivos, e muitas vezes demos de cara com paredões. Por duas noites precisamos montar acampamento. Acendíamos uma fogueira grande, porque aquela era a terra deles e sabiam onde a gente estava. Se fossemos pegos, que ao menos a luta fosse justa e nós também pudéssemos ver alguma coisa. Mesmo assim, era como uma estrela sozinha no céu. A escuridão nos engolia e mastigava. Dormíamos em turnos, mas ninguém descansava de verdade. E em nada ajudaram as história que Julian, um peão filho de pai paraguaio, nos contou durante a vigília.”
“O homem que nos disse sobre as lendas do Rei Branco, que alcançavam até as terras de seu pai. Pouco falam da aparência do homem, apenas que é o monarca de uma cidade de ouro e prata. Algo como um deus, imortal. Foi ele que fez um punhado de europeu subir pelo Rio da Prata na época que o Brasil não era o que é. Buscavam seu tesouro, mas todos morreram no caminho. Aquelas eram as terras do Rei Branco, insistia Julian, e não devíamos estar ali.”
“Já chegávamos ao fim do terceiro dia quando chegamos ao limite de uma grande clareira. Mais a frente, uma gruta se abria em uma fenda e de lá vinha o odor doce que eu já conhecia. Por enjoo, amarrei um lenço para me cobrir o nariz. O crepúsculo avermelhava o céu, e os pássaros terminavam a cantoria. ‘Certo’, disse ‘é agora’. Entramos juntos em uma correria desorganizada, as armas engatilhadas.”
“O interior da gruta era maior do que pensávamos. De uma abertura no teto, os últimos raios de sol chegavam sem força a uma árvore de tamanho colossal bem no meio de nosso caminho. Era de tronco branco e possuía as folhas pálidas. De seus galhos pendiam grandes frutos vermelhos. Vi um deles ser apanhado e atirado ao fogo por um obatinga, e o cheiro adocicado intensificou-se. A vertigem embaralhou minhas vistas, mas vi Clara desacordada sobre as raízes daquela árvore. Ao seu redor, os obatingas dançavam e cantavam em sua língua imunda. Eu e meus homens atiramos. Matei quatro até chegar em Clara. A fumaça deixava meus movimentos lentos, e tropecei quando tentei carregá-la. Ao olhar para os lados, vi alguns de meus amigos caídos, recebendo dentadas dos índios. Atirei até ficar sem balas nos revólveres. Então vi o horror estampado no rosto de Julian. Escorado contra a parede de pedra, ele apontava para além da árvore.”
“Seguindo seu dedo, vi a criatura. E que horror conseguiria descrever aquilo? Lutei para me mover enquanto a via aproximar-se aos tropeços. Em nada se assemelhava a um animal, muito menos a um homem. Caminhava sobre quatro patas, mas elas quebravam-se em ângulos impossíveis. Sua pelagem branca abria-se em alguns pontos para uma espécie de escama. Atirei um pau em chamas em sua direção, mas ele não se importou com o fogo. Por causa do fogo, pude ver o chão e as paredes douradas que estavam além. Rodei a espingarda que tinha nas costas e disparei, correndo sem olhar para trás. Dos meus amigos, nenhum me seguiu. Todos rendidos àquela fumaça maldita. Por sorte, o lenço sobre meu nariz ajudou. Atirei Clara sobre o cavalo e corri como nunca fiz antes.”
“A garota voltou sem falar. Passava o dia na janela, olhando para o nada. Alguns meses depois ficou claro que estava de barriga. O coronel bateu nela e maldisse os índios, dizendo que eles tinham emprenhado a moça. Alguma coisa me dizia que não. Tentaram tirar a criança, mas ela não caiu. Pensei em fugir da cidade, longe do rei, mas tinha medo de seguir sozinho. Fiquei na fazenda até o dia do nascimento.”
“Aquele foi o dia mais negro de minha vida. O coronel mandou todos seus funcionários embora para não verem o que considerava uma vergonha. Apenas eu fiquei em minha casa, para o caso de uma urgência. De lá, via a agitação, com as parteiras correndo com bacias de água e panos ensanguentados, até o fim do dia. De súbito, um grito rasgou tanto a noite como minha alma. A voz era de Clara, que eu não ouvia a tanto tempo, mas a ela seguiu-se um coro de outras. Apanhei minha espingarda e corri para o casarão. Quando cheguei no andar superior, vi aquela monstruosidade. O sangue escorria pelas paredes e migalhas de carne forravam o chão. Sobre a cama, Clara estava morta com a barriga aberta, como se devorada de dentro para fora. A sua mãe e duas parteiras estava caídas ao lado, os corpos destruídos por completo. Já próximo à janela, o corpo do coronel terminava seus espasmos enquanto aquela coisa terrível fechava a mandíbula contra seu pescoço. Antes que pudesse fazer alguma coisa, atirei em sua direção. Assim que soube que estava morta, apanhei em minha casa o que pude levar no cavalo e nunca mais voltei. Durante a noite Alta Jericó ainda oferece segurança. Nunca mais me arrisquei a estar em outro lugar quando o sol apaga.”
Terminei minha bebida e continuei olhando para o velho. Era fácil atribuir à senilidade todo aquele relato. O que me espantava era a supertição do povo para também aderir àquela fantasia. Sendo evidente meu semblante de descrença, Dentada me encarou antes de levantar e sumir pela noite, dizendo:
—No corredor do segundo andar, no terceiro quarto. Se fosse você, daria uma olhada antes de decidir passar com seu trem por aqui.
A experiência daquela noite me trouxe uma madrugada sem sono. Não que acreditasse no que me foi dito, mas a curiosidade de conhecer o interior do casarão me corroia. Por isso, já no dia seguinte, peguei meu cavalo e segui para noroeste. O silêncio preenchia cada brecha daquela fazenda abandonada. Não sem cerimônia, abri a porta e subi os degraus do casarão. Segui pelo corredor. Contei: uma. Duas. Três. Respirei fundo, apoiei as mãos sobre a porta apodrecida e empurrei. Trepadeiras abraçavam as paredes, escondendo parte do que tivesse ocorrido por lá. Na cama, uma ossada com as costelas rompidas me encarava. Ao seu lado, outras três mantinham-se em vigília. Próximo a janela, uma quinta deitava-se de bruços. Com pavor, aproximei-me do último amontoado de ossos. Céus! Como um bebê poderia ser concebido com tal anatomia? Já recuava lentamente quando senti um cheiro adocicado. Aos poucos, me veio um formigamento nos dedos. Em frenesi, corri até meu cavalo e, com ele, retornei para a Alta Jericó. No mesmo dia, comecei minha volta para São Paulo. Com custo, convenci os altos cargos da Companhia que uma rota mais para sudoeste, longe de Alta Jericó, traria mais economia durante a construção da linha férrea. Uma linha que, aliás, nunca usarei. Espero nunca me aproximar daquelas terras condenadas.
Nossa, que escrita bonita! O conto soa leve, mesmo tendo algumas palavras mais complexas. Aprecio muito isso. O final pareceu um pouco corrido, não sei se o conto chegou a alcançar o limite. Gostei da ambientação no Brasil.
Boa Sorte!!
Valeu, Thata! Que bom que gostou.
Realmente, ficou bem aquém do que queria esse final, mas fechei nas 3.498 palavras. Um dia perco essa mania de me esticar tanto, hahaha.
Você é um escritor ótimo. Eu que sou leitor chato que torci o nariz pra muleta do titulo e a alusão ao Chambers; disfarça e derruba a muleta, pô. No mais, bom conto. Por implicância já captei outros pra um lugar mais alto pelo voo mais livre na história.
Valeu, Sérgio! Realmente, a referência ao Rei de Amarelo foi MUITO direta, hahahaha. Mas juro que não foi tão forçado. Enquanto pesquisava para escrever o conto (que sabia que passaria no Brasil, no nordeste ou MT/MS usando alguma lenda indígena), dei de cara com o Rei Branco. A figura seria uma mitificação de uma antigo líder inca e instigou os europeus a procurar por seu império, El Dourado. No fim, caiu como uma luva e fui no vácuo de Chambers sem pudor! 😀
hahaha tá valendo 😀
HAHA, não esperava por um plot desses. Muito bem trabalhado e bem escrito. Parabéns. Gostei bastante.
Bom enredo. Me lembrou na hora o Montanhas da Loucura. A trama interessa e por isso prende. Gosto de tramas misteriosas, com horror e suspense. A escrita me agradou também. Só não vou poder considerar como faroeste, porque isso não me pareceu..
Gostei, principalmente, da ambientação e das “cousas macabras” que o autor inseriu. Foi uma leitura carregada, sem se tornar enfadonha. Quanto aos erros apontados pelos demais, já disseram tudo^^ Boa sorte.
Gostei bastante. Acho que fechou bem demais o desafio.
Existe dupla ousadia aqui. Por um lado, o autor tenta abrasileirar o western. Por outro, investe no terror para oferecer algo novo ao gênero. Tentativas bem sucedidas, em minha opinião.
“Não sem cerimônia, abri a porta e subi os degraus do casarão. Segui pelo corredor. Contei: uma. Duas. Três. Respirei fundo, apoiei as mãos sobre a porta apodrecida e empurrei. ”
Achei essa passagem sensacional.
Vi que os colegas apontaram alguns erros de revisão. Admito que não percebi nenhum deles, tal foi meu envolvimento com a história. História, aliás, claramente influenciada por Lovecraft.
Só achei a narrativa de Dentada um pouco corrida. Mas entendo que tenha sido pelos limites do desafio. Aliás, acho que o autor fez a opção certa: investiu no começo. Uma vez com o leitor preso, abriu mão de parte da narrativa do meio/final para contar sua história.
Ah, acredito, também, que a criatura poderia ter sido um pouco mais caracterizada. Entendo a opção de deixar para o leitor essa construção, uma vez que ninguém mais do que ele pode construir sua própria concepção máxima do horror, mas como o texto vinha sendo bem descritivo/analítico ficou um pouco estranha a ausência de um pouco mais de detalhes (nem precisavam ser muitos). Ao menos foi o que senti.
Parabéns pelo trabalho.
Valeu mesmo pela crítica, Leandro! Sempre trás análises super bem elaboradas.
Esse mês errou o tiro! Não escrevi sobre nenhum samurai, hahaha.
Abraço
Obrigado, Vitor!
Errei todos os tiros. Seria um péssimo detetive rs
Abs!
É um conto bonito, e bem realizado. Os pequenos deslizes podem facilmente ser superados, inclusive com o auxílio dos comentários.
Claro que há pequenos deslizes que, com a ajuda dos cometários, mais revisão, podem facilmente ser contornados. Tirando isso e o ter fugido um pouco do tema (na verdade, fugiu mesmo foi dos clichês) esse foi para mim um dos contos mais bem realizados. Sem contar que se trata de um conto belo. Por isso, gostei muito. Parabéns ao autor.
Enredo muito bom com uma bela narrativa. O conto é ambientado por nossas terras e como disseram os colegas me lembra autores como Lovecraft, Poe, e em hipótese nenhuma desmerece o texto, ao contrário. Partes como: “Os cabelos já eram ralos e enevoados, mas via-se que em outras épocas vestiam-se de negro.” mostram claramente a qualidade literária do colega.
Em minha opinião, passa muito longe de um faroeste. Minha opinião.
Mas é um conto muito, muito bom.
Meus parabéns! Boa sorte
gostei do relato da narrativa, de utilizar uma lenda brasileira. o que de fato, saiu fora do tema do desafio. não gostei do final, foi uma decisão rápida do personagem em desistir mesmo tendo visto o esqueleto da monstruosidade, deveria acontecer mais alguma coisa mais a frente.
Abraço!
O inicio me lembra Nas Montanhas da Loucura. Como já dito, tem um quê de Lovecraft, muito bom!
Eu gosto bastante da história, mas tive a impressão que a tensão não se manteve até o fim. Até o Dentada entra na caverna vai bem, mas depois decai bruscamente até a coisa meio Alien. Talvez isso seja devido ao velho fantasma do limite de palavras…
Não acho que tenha fugido ao tema, só inovou trazendo o western para o Brasil.
Parabéns e boa sorte.
Os amigos já apontaram alguns deslizes na correção. Me incomodei também com a repetição de
“pai” no começo da narração do Dentada.
Um bom conto, bem narrado, principalmente a parte contada pelo Dentada.
Mas me parece que faltou algo, talvez um final com mais impacto, alguma surpresa maior escondendo-se atrás daquela porta, uma traição do Dentada, um confronto com a criatura. Ficou muito insosso, tirando o peso da narrativa de terror.
Bom, é isso… desculpe o comentário resumido, mas realmente não tenho muito a acrescentar.
Ah… a imagem escolhida foi a mais bela desse desafio, na minha opinião.
Abraço!
Gostei do texto, pois a história é imaginativa e rica. Há um tanto de Lovecraft e Chambers mesclado ao cenário nacional e tal mistura funcionou bem.
Contudo, achei à adesão ao tema do desafio meio tangencial e – muito estranho, pois o autor certamente domina um ótimo vocabulário e tem bom conhecimentode gramática – notei vários erros de concordância, alguns de acentuação, etc.
O conto já abre com um erro, o que causa uma má impressão: “Não foram preciso muitos dias…”
Felicito o autor(a) por sublimar a questão do faroeste, nacionalizando o texto pela via de uma das grandes vocações da ficção brasileira: a narrativa de horror. Pouco me importa se foi planejado ou se é uma vocação natural do autor. Muito respeitosamente sugiro mais prática, mais rigor — e a mesma liberdade.
O(a) outor(a) tentou, assim me parece, traçar alguns paralelos com o oeste americano neste conto ambientado no interior do Mato Grosso, como a presença da estrada de ferro, tecnologia que aos poucos foi aposentando as diligências do interior estadunidense. Além desse elemento, que me parece muito relevante para estabelecer a ligação entre o espaço “genuíno” do western e o espaço ao sul do equador, temos o caubói local (claro, sem os parâmetros de lá), o saloon disfarçado de “bar do Pitu”, os indefectíveis tiroteios, os índios.
Outro fato que traz relevo ao conto é a utilização de recursos do gênero narrativo terror, outro que sempre é revisitado e, como o western, resistente a muitas inovações. O terror usado aqui se distancia dos ícones do gênero e se aproxima bastante do fantástico, com a cena da árvore branca no meio da caverna e dos esqueletos do final.
Acredito que a mescla tenha funcionado bem.
No entanto, vejo alguns problemas na narração, principalmente porque é mais um conto que não se aceita nessa condição: ele quer mesmo é ser romance, com seu ritmo compassado, seus múltiplos núcleos de ação.
São dois narradores em primeira pessoa, o engenheiro e Dentada. Para não confundir o leitor, seria interessante marcar muito bem uma distinção no discurso deles. O engenheiro teria um discurso mais sofisticado que o Dentada, por exemplo, ou um deles exibir regionalismo. Mas isso não ocorre, e pode causar a sensação de que existe apenas um narrador. Aliás, a narração do engenheiro é irregular. Nalguns pontos ela é mais travada, principalmente no início (“sabia que me orlava o desconhecido”); noutros ela é mais fluida, mais próxima da oralidade (“O bar em questão se tratava de uma edificação humilde de alvenaria com uma pintura branca descascada”).
Há um aspecto formal que me parece equivocado: por que a narração do Dentada se dá entre aspas? Para marcar a presença dele enquanto segundo narrador? Não é suficiente, pois, como disse acima, a diferença tem de estar no discurso. Usar as aspas pode causar a ideia de citação, como se ele tivesse dizendo palavras de outrem. A ideia teria sido dizer que não se trata de ato narrativo deliberado e sim da fala de Dentada? Nesse caso deveria usar o travessão.
Muito obrigado pelos apontamentos, Eduardo! De fato, tentei comprimir algo maior no espaço de um conto, e deixei o coitado meio amputado. A revisão também deixou a desejar, fruto da minha recorrente mania de procrastinar até quando o prazo de inscrição está na minha cara.
Quanto ao uso das aspas, realmente não tenho conhecimento acadêmico sobre sua melhor utilização. Utilizei dessa maneira no meu conto copiando algo que vi n’O Senhor dos Anéis, onde Tolken usava as aspas para indicar que o mesmo personagem continuava falando no parágrafo seguinte, fugindo da confusão que seria sempre abrir com um travessão.
Obrigado mesmo pela análise super aprofundada!
Gostei do texto.Precisa de alguma revisão, um acerto nas falas das personagens, mas nada que uma releitura por parte do autor não resolva.
A ideia de deslocar o tema para os sertões do oeste brasileiro é boa e louvável, mas é como comentei antes: para mim, o tema foi muito claro e específico. Isso, claro, não tira o brilho do texto que é muito bom, me lembrando “O Chamado de Cthulhu” em determinado momento.
Parabéns ao autor e boa sorte!
Tinha tudo pra ser bom, ambientado no Brasil… bem legal.
Mas acho q o autor se empolgou e esqueceu do faroeste… o final foi fraco, talvez por precisar terminar pelo tempo ou numero de palavras… mas não convenceu, apenas pela visao dos esqueletos, o almofadinha desistir da estrada de ferro, acho q faltou um pistoleiro destemido.. hihiii
Boa sorte ae
Abração
As percepções do personagem dão uma roupagem de diário ao conto. No inicio me lembrei do filme “a sombra e a escuridão”. O texto é muito bem conduzido e ambientado. Percebe-se um forte trabalho de pesquisa. O final é interessante mesmo não sendo arrebatador.
Como gosto pessoal, senti um pouquinho de falta do humor.
De qualquer modo é um conto muito bom.
Parabéns e boa sorte no desafio
Bem interessante. As percepções do personagem na primeira parte do conto dão uma roupagem incrível de um diário. O inicio fez me lembrar do filme “a sombra e a escuridão”, já os ares de folclore me remeteram ao Coronel e o Lobisomem. Senti a falta de uma pitadinha de humor. Mas não resta dúvida de que a estória é muito bem conduzida e ambientada.
Parabéns e boa sorte no desafio.
Inusitado. E mais um dos poucos que foram ambientados “por essas bandas”. Gostei do mistério que permeou quase todo o texto até o final. E ferrovias! Quase esquecidas entre tiroteios e portas que abanam.
Terror não me atrai muito, mas fui em frente. Senti um pouco de cansaço ao ler os primeiros parágrafos, descrições longas e detalhadas, sem diálogos.
Quando Dentada começa a contar a história toda, a narrativa ganha vida e fluidez.
Faltou uma revisão mais atenta. Desconfio que tenha sido a pressão do prazo terminando.
Boa sorte!
Muito bom o conto. O fato de ser de terror me atraiu mais ainda. O que ressalto foram as descrições longas dos cenários, mas isso varia. O começo ficou um pouco dificil a leitura, mas depois prossegui sem medo. Quando dentada começou a contar a historia é que o bicho pegou… ehhehehe
Parabens.
Arrepiante! Lembrei-me de O Chamado de Cthulhu enquanto lia. haha
O conto está muito bem escrito e muito bem ambientado. Consegui imaginar todos os cenários com nitidez, sem me perder em nenhum momento durante o texto. Porém, não sei se aderiu ao tema. Achei que o western foi um pano de fundo, pois não fez muita diferença para a história.
E a forma como o Engenheiro dá importância para a construção da ferrovia e tudo mais, não condiz com o final que terminou tão abruptamente.
No geral, gostei bastante! Lembrou-me um conto que li há alguns meses, mas este aqui certamente está muito melhor.
Parabéns e boa sorte!
Um conto de terror! Muito bacana. A melhor parte é o relato do Dentada. O ódio pela indiarada e a caracterização desta, me deu um frio na espinha (e isso é bom). A criatura me deixou cheia de dúvidas, por querer saber mais, entretanto, essas lacunas são boas, o mistério é bom. Gostei da ambientação em nossa terra. Enfim… Parabéns e boa sorte 🙂
Começando pelo último, vamos lá. Gostei muito do enredo, que me lembrou bastante certas narrativas de Blackwood e Lovecraft. É tenebroso, dá uma sensação de incômodo e medo crescente. Tem alguns elementos de faroeste (cidade no meio do nada, provinciana, embate entre brancos e índios, o forasteiro que chega, a coisa do progresso que quer se instalar ali, em um lugar bem agrícola e pastoril) e pra mim é um ponto a mais que eu tenha visto tudo isso em uma história que se passa no Brasil, no século retrasado! Gostei muito, muito mesmo.
O que me incomodou um pouco e talvez ajude a só melhorar o que já está muito bom:
1) a correria ao final, mas supõe-se que o motivo seja pela limitação da quantidade de palavras, essa narrativa precisava de um espaço bem maior.
2) Alguns erros gramaticais, que certamente foram causados pela pressa, pois em algumas partes faz o uso correto, em outras não, como o uso de “tem” e “têm” e a palavra “supertição”, por exemplo, faltando um S, e outras coisas poucas;
3) A fala do Dentada: em algumas partes oscilou quanto a mostrar muito e pouco conhecimento. Ele diz em uma parte que já era formado. Naquela época, meio difícil ser (a primeira escola de Campo Grande, por exemplo, só começou a funcionar décadas depois desse período, com Vespasiano Martins). Poucos eram os que, fora da Capital da Província, iam além das primeiras letras, de assinar o nome. Em algumas partes, ele fala de forma mais humilde, em outras, usa palavras e expressões mais elaboradas, como “os dias eram improdutivos”, “crepúsculo”, além dos verbos conjugados de forma tão certinha, como em “Se fôssemos pegos”, “se nós também pudéssemos”… Eu fui lendo e imaginei alguém falando de forma mais na variação do local, tipo “sé nós pudesse também”, sei lá, algo assim.
4) Fiquei um pouco perdida na questão temporal. O engenheiro fala que veio a mando da Companhia da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, mas esta só foi criada em 1904. Antes, quem tinha autorização para fazer esses estudos de viabilidade era o Banco União de São Paulo, mas isso quando o Brasil já era República. A história cita o fim da Guerra do Paraguai, e diz que por perto da Vila Miranda a coisa estava muito desolada, mas que época era, então? Se é para depois de 1904, é um tempo muito significativo, mais de 30 anos após o fim da Guerra, e nessa época, o cenário já tinha mudado muito, inclusive porque a destruição de Miranda e vizinhanças foi em 1865. Se a destruição ainda era sentida, não poderia se passar esta história depois de 1900. Mas e como, se a Companhia já existia? =) (Avisando que pode ser que eu esteja enganada quanto a algum desses fatos, estou me baseando no que dizem os livros de História do Mato Grosso do Sul com o qual trabalho em sala de aula).
E parabéns!