EntreContos

Detox Literário.

Aos Olhos do Tempo (Pedro Viana)

richtofen

Quando você olha para um abismo por muito tempo, o abismo
começa a olhar para você.

Friedrich Nietzsche

O homem solitário caminhou para o abismo. Não olhou para trás ou mesmo hesitou. Apenas se aproximou da beirada e abriu os braços. Pensou em fechar os olhos, mas decidiu que se fosse fazer aquilo, queria ver tudo com os próprios olhos.Um grito distante chamou o homem solitário, mas já era tarde demais. Sorrindo, ele se entregou ao precipício, onde esperava encontrar a liberdade…

******

Quando os primeiros jornais noticiaram a morte, na manhã daquela terça-feira, as poucas pessoas que estavam acordadas entraram em estado de choque. A maioria, esperando que estivesse em meio a um sonho trágico, ficou em silêncio. Mas quando todos aceitaram o fato, unidos pela certeza de que um delírio coletivo estava fora de cogitação, o barulho começou. Alberto Fonseca havia morrido.

– Sem causa da morte, aparentemente hemorragia interna. O corpo foi encontrado nesta madrugada sem sinais vitais. Os peritos já visitaram o local e não há indícios de homicídio…

– …no entanto, você quer que eu verifique isso – eu disse, sorrindo. Meu chefe não retribuiu o sorriso e me entregou uma pasta de relatórios com tudo o que eu precisava. – Mais alguma coisa?

– Confio em você. Você sabe quem esse homem é. Você sabe o que ele fez e a importância que as pessoas atribuíam a ele. Caso alguém o tiver matado, seja quem for, quero essa pessoa na cadeia o mais rápido possível. Uma morte assim não passará despercebida da imprensa. Eles irão especular e xeretar e, daqui a pouco, será impossível realizar uma investigação em cima disso. Entendeu?

– Completamente, senhor.

Saí do escritório do meu chefe e fui direto para a minha sala. Quando entrei, um jornal estava sobre a mesa. Li o título da reportagem da primeira página, mesmo sabendo o que iria encontrar.

CRIADOR DA MÁQUINA DO TEMPO É ENCONTRADO MORTO

Recarreguei minha arma, coloquei-a na cintura, peguei o distintivo sobre a prateleira e fechei a porta. Meu aeroveículo esperava na garagem.

******

A notícia da morte de Alberto Fonseca chocara tanto as pessoas não pelo fato dele ser um brilhante cientista (muitos o viam como um velho lunático) ou mesmo uma celebridade ilustre (quase nunca saía em público), mas sim pelo fato que o homem completara, no último mês, 240 anos.

– Parece que o homem que conseguiu enganar o tempo e morte não era tão invulnerável assim – disse a perita que analisara a cena do crime, após minha chegada à mansão do morto, dentro do Conjunto Habitacional Guanabara-27, construído em mar aberto a um quilômetro e meio da praia. Após o Rio de Janeiro crescer tanto que sua única saída foi construir prédios e casas sobre o mar, muitos milionários e figurões adquiriram suas “residências flutuantes” somente para as exibirem como moradias exóticas posteriormente. Infelizmente, a maior consequência veio quando os cartões postais contendo fotos da praia e sua paisagem original foram ocupar os museus. – Os laudos do IML vieram e, com 90% de certeza, a causa da morte foi hemorragia pulmonar causada por eletrocussão.

– Eletrocutado? Ele foi encontrado perto de algum dispositivo?

– Não, mas não duvido de isso ter acontecido. O homem mexia com fios, correntes elétricas e geringonças o dia inteiro.

– Quero ver o corpo, o local da morte e o laboratório.

– Nenhum desses será possível, colega. O corpo, depois que os peritos encontraram a causa da morte, foi incinerado. Ordens de cima, disseram. O local da morte foi alterado por um milhão de enxeridos e bisbilhoteiros. E o laboratório está trancado. Tentamos abrir, só que as portas são feitas de aço titânico e só abrem com a inserção de um código que provavelmente só o morto saberia.

Quando cheguei ao local onde o corpo fora encontrado, deparei-me com um exército de guardas, policiais, peritos, repórteres e curiosos. Pedi que eles que se retirassem e, após descobrir um fotógrafo civil disfarçado de perito, o espantei ameaçando usar minha arma.

Aparentemente, o corpo fora encontrado sobre da cama, onde uma demarcação mostrava claramente as formas de braços e pernas. Esquadrinhei o lugar, procurando por pistas, mas como a perita dissera, ele fora alterado.

No entanto, uma coisa me chamou a atenção. Sob a cama, escondido entre uma camisa surrada, havia um pedaço de papel amassado. Abaixei-me e tentei desamassá-lo, tomando o maior cuidado possível para não danificá-lo, e o que encontrei me fez sorrir. O código “65-92-10-49-47” claramente era o que eu procurava.

******

Consegui despistar as pessoas que ocupava os cômodos da mansão e entrar no laboratório sozinho. Perguntei-me o que a senha fazia debaixo da cama do morto. A única pessoa que poderia colocá-la lá seria o próprio Alberto Fonseca, mas… por que fazer isso? Talvez ele houvesse pressentido o perigo se aproximando e, para garantir que suas invenções fossem preservadas, escrevera a senha num pedaço de papel…

– No entanto, não faz sentido – conjecturei comigo mesmo, quando as portas do laboratório se fecharam atrás de mim.

O lugar era enorme. Maior que meu apartamento no subúrbio ou mesmo todos os escritórios do Departamento de Polícia reunidos. Cada centímetro do teto emitia uma forte luz branca, deixando o cômodo tão claro que após alguns minutos senti meus olhos arderem. Uma infinidade de computadores, máquinas e parafernálias se agrupavam nas paredes. Porém, sem dúvida, o que mais chamava atenção eram os dois grandes círculos de metal cercados de computadores e dispositivos empilhados sobre uma plataforma elevada no centro do laboratório.

Olhei para os lados, certificando-me que ninguém me seguira, e subi as escadas da plataforma. Eu sabia o que aquela Máquina era capaz de fazer. No entanto, me recusava a acreditar que seria possível.

Eu, ou melhor, ninguém, nunca chegara a ver Máquina do Tempo pessoalmente. Somente seu criador era autorizado a usá-la e aqueles que ousassem se aproximar eram severamente expulsos e recebiam tantos xingamentos que até parentes de décimo quinto grau se sentiam ofendidos. Mesmo o governo desistira de tentar após muitos anos frustrantes buscando ter acesso a invenção. O próprio Presidente foi obrigado a chegar em um acordo com Dr. Fonseca, onde este deveria emitir um relatório mensal sobre suas expedições em troca de segurança e privacidade do Estado. Com o passar dos anos, tais relatórios trouxeram muitos avanços para a população. A maioria científicos, como curas de doenças como o Câncer e o Neo-Dengue e invenções como o aeroveículo, salvando o trânsito do caos que se tornara. Outros avanços em outras áreas também foram muito importantes, como o novo modelo político de democracia evolutiva (que, segundo o Dr. Fonseca, iria ser implantado a metade no século XXIX e dizia respeito a uma democracia com base nas teorias evolutivas de Darwin).

Quando terminei os degraus e me aproximei da Máquina, senti vergonha do que estava fazendo. Alberto Fonseca possuía um motivo para manter todos afastados dela e eu estava prestes a descobrir. Se ele ainda vivesse, nunca deixaria eu tocá-la. No entanto, eu estava aproveitando de sua morte para conhecer um segredo que todos procuravam há anos…

De repente as luzes da Máquina se acenderam. Os computadores ligaram e, de alguma forma, o motor – ou seja lá o que fosse que a alimentava – começou a funcionar. Os círculos metálicos, movidos por alguma força que eu não controlava, começaram a girar a minha volta. Meus pés quiseram voltar, mas eu permaneci onde estava. Havia um ruído do interior da máquina. Um leve e constante ruído que chamava minha atenção. O círculo metálico maior passou pelas minhas costas e o ruído se transformou em um barulho de ondas chocando-se contra um rochedo. O círculo menor girou uma vez e, de repente, fui surpreendido pelo som de um trovão ao meu lado. Imagens começaram a se formar a minha volta. Senti o toque molhado de um ou dois pingos de chuva sobre meu rosto, que foram substituídos por um calor enorme e um fedor pútrido logo em seguida. O tinir de espadas e o martelar das engrenagens de um navio a vapor. O rugido de um dinossauro e o som de raios lasers atravessando o ar. Senti uma brisa marítima passar através do meu cabelo e ouvi a gargalhada de piratas num navio. Sem avisos, fui erguido do chão e permaneci flutuando por um senso distorcido de gravidade. Quando eu estava começando a me acostumar com tudo aquilo, os círculos metálicos pararam de girar. Fui lançado ao chão, onde meus joelhos chocarem-se contra a terra.

Ergui os olhos e descobri que caíra em cima de um penhasco enorme, sob um céu tão azul que nem mesmo o mar seria capaz de competir com tal tonalidade. Na ponta do penhasco, de braços abertos, havia um homem.

– Saia daí! – eu gritei para ele, erguendo-me do chão. O homem pareceu não ouvir meu grito, nem sequer prestar atenção em qualquer outro detalhe a sua volta.

Quando percebi o que ele estava prestes a fazer, corri. Corri como nunca corri antes. Mas quando o alcancei, ele se jogou. Meu coração disparou de desespero e me debrucei sobre o abismo, conseguindo, no último instante, segurar a barra de sua camisa. Fazendo muita força o ergui e, gritando para o estranho onde ele estava com a cabeça ao pular do penhasco, olhei em seu rosto. E descobri que aquele homem era eu.

Alguma força me puxou de volta à Máquina do Tempo e, sem eu querer, os anéis metálicos começaram a girar novamente, levando-me para longe de mim mesmo. Pensei em gritar, correr, enlouquecer ou mesmo acordar, só que não havia dúvidas do que eu vira. Mal pude prestar atenção dos detalhes que se modificavam ao meu redor. Uma multidão gritando “Vive la France!” foi a única coisa que escutei. Quando os anéis pararam, pensei que estaria no laboratório novamente. No entanto, me deparei com o Nada.

O Nada, um vazio solitário e silencioso que se estendia do começo ao infinito à minha frente. Observei, quieto, calmo, atento, mas o Nada nada fazia. Então, após horas dias ou anos observando o Nada, descobri que ele me observava de volta. E eu sabia que ele sabia que eu sabia que ele me observava.

O ruído constante da Máquina foi a primeira coisa que escutei antes das luzes do laboratório me cegarem e eu, novamente, descer os degraus da plataforma.

– Quem é você? – disse um senhor baixo e careca, com óculos grandes e um bigode maior ainda. – O que está fazendo no meu laboratório?

– Alberto Fonseca? – perguntei, incrédulo. O senhor assentiu com a cabeça e me perguntou por que eu queria saber. – O senhor estava morto da última vez que pisei aqui.

Ele olhou para a Máquina do Tempo e depois para mim, seus olhos cobertos de uma tristeza que eu só vira uma vez na vida: quando olhara nos meus próprios olhos.

– Você viajou, não foi?

Confirmei, envergonhado, o que havia feito. Ele colocou a mão na cabeça e, por um momento, pensei que iria chorar. Ele sentou numa cadeira próxima e, respirando pausadamente, pediu para que me aproximasse.

– Vamos começar do início. Quem é você e como veio parar aqui?

Expliquei a ele tudo o que eu sabia. Meu nome, quem eu era, como ficara sabendo de sua morte e, principalmente, como acabara na Máquina do Tempo.

– Mas eu juro: não liguei nem apertei nenhum botão. Tudo começou a funcionar sozinho.

– Não se preocupe. A culpa não foi sua. Depois que Ele tomou controle sobre a Máquina, nem mesmo eu sou capaz de desligá-la. Ela funciona quando quer e para quem quer. Agora me responda: o que você viu?

Contei-lhe parte do que havia visto. Omiti meu encontro comigo mesmo, guardando tal loucura apenas para mim, mas revelei a estranha sensação de encarar o Nada e ser encarado por ele.

O Dr. Fonseca fechou os olhos e, durante um bom tempo, não voltou a abri-los. Vi que estava imerso em pensamentos profundos, muitos dos quais eu não poderia sequer compreender.

– Você deve estar se perguntando por que estou vivo, por que tudo isso está acontecendo e o que eu sei sobre o que você viu. Eu gostaria de lhe contar, só que vejo que não adiantará em nada fazer isso agora. Então, aceite meu conselho: vá para casa, ou melhor, para seu trabalho, descanse e pense sobre o que viu e ouviu. Volte aqui amanhã e eu lhe darei as respostas.

– O que o senhor vai fazer até lá?

– Esperar – foi o que me respondeu, dando as costas.

Segui seu conselho e fui embora. Achei meu aeroveículo onde eu o estacionara. Um milhão de dúvidas alagavam minha mente. Eu queria explicações, mas ao mesmo tempo temia encontrá-las. Cheguei ao Departamento de Polícia e, ao invés do elevador, optei pelas escadas.

Queria evitar meu chefe. Ele certamente me faria mil perguntas cujas quais eu não poderia responder “Espere, ele não está morto, eu o vi agora há pouco”. Entrei silenciosamente no departamento e caminhei até meu escritório. Destranquei e vi que ele estava da forma como eu o deixara. Sentei na cadeira e, pegando o jornal, reli o título da reportagem da primeira página.

CASAL DE CLONES TEM SEU PRIMEIRO FILHO BIOLÓGICO

            A porta se abriu e por ela entrou um homem alto e de cabelos grisalhos. Quando olhou para mim, suas sobrancelhas se torceram em uma feição de dúvida e consternação.

– Quem é você e o que está fazendo no meu escritório?

******

– Eu não sei o que aconteceu – confessei ao Dr. Fonseca, no mesmo dia. – De repente eu descobri que não trabalho mais no Departamento de Polícia e, pelo que notei, ninguém de lá me conhece mais. Meu apartamento no subúrbio está ocupado por uma família mexicana e, não importe onde eu procure, ninguém sabe quem eu sou, de onde vim, ou mesmo onde moro. Isso é uma piada?

– Para Ele é sim – respondeu o cientista, recostando-se numa poltrona. – Da primeira vez que viajei Ele me apagou. De repente eu simplesmente não existia. Mas então Ele descobriu que seria muito mais doloroso para mim existir eternamente…

Ele fez uma pausa grande enquanto encarava as paredes com olhos distantes. A todo tempo, suas mãos se torciam de inquietação.

– Muitas pessoas me perguntam por que eu nunca deixo ninguém se aproximar da Máquina do Tempo. Elas pensam que sou ganancioso ou um louco perturbado, só que nenhuma delas um dia sequer se perguntou se eu não estava apenas as protegendo. Você pode dizer que a cura do Câncer ou da Neo-Dengue são grandes feitos, mas nada se compara ao preço que paguei para consegui-las…

– Ainda não estou compreendendo.

– Quantos anos eu tenho?

– Segundo os jornais, o senhor completou 240 anos mês passado.

– Na verdade são 236, mas a imprensa gosta de seus exageros. Alguma vez você se perguntou por que eu vivi durante tanto tempo?

– Eu não, mas minha ex-namorada, Ellen, tinha uma teoria em que sempre quando o senhor pressentia que estava morrendo, entrava na máquina e trazia o seu “eu” jovem do passado para o presente. Assim, quando o senhor morresse, ainda estava vivo de certa forma.

– Se meu senso de humor não tivesse ido embora há anos eu poderia rir do que você acabou de me dizer. Mas não, não é isso. Confesso que quando completei oitenta anos ainda com a vitalidade de um homem de cinquenta fiquei muito satisfeito. Mas foi numa noite depois de completar meus noventa, aqui no laboratório, quando sofri um acidente e morri pela primeira vez, que vi com o que eu estava brincando. Eu morri, eu soube no momento, mas acordei na manhã daquele mesmo dia vivo, como se nada tivesse acontecido. Foi aí que percebi que minha dádiva era uma maldição. Os anos chegavam, iam embora, eu via as pessoas que eu amava partindo, e a única coisa que eu poderia fazer era esperar. Ele nunca me deixará morrer – foi o preço que paguei por mexer com Ele no momento em que inventei essa amaldiçoada Máquina do Tempo. Desde então eu venho tentando me matar, enganá-Lo, mas nunca consigo. A última vez foi ontem à noite, quando eletrocutei minha própria cama. Fiquei com medo d’Ele tentar me fazer esquecer a senha do laboratório, então a anotei num pedaço de papel. Acredito que aí entra você. Para mim, foi como nas outras vezes. No mesmo instante em que apaguei, morto, abri meus olhos e me encontrei vivo novamente, no mesmo mundo e em uma realidade diferente.

– Eu também fui amaldiçoado?

– Receio que sim. Você entrou na Máquina; você viu coisas que não deveria ver. E, claro, você viu Ele. E Ele viu você. Agora você pagará o preço.

– Quem é Ele, afinal? Você fica falando Dele o tempo inteiro mas nunca me diz quem Ele realmente é! Ele é Deus, o Diabo, o Proprietário do Universo?

– Muito pior que todos esses juntos, meu filho. Ele é o Tempo. O senhor supremo de nossas existências, responsável por garantir que a linha pela qual seguimos nunca se arrebente. Mas eu e você fizemos isso. Cortamos a linha. Agora iremos enfrentar Sua fúria até que os anos se tornem infinitos e nada mais exista.

– E você vai ficar parado aí? Não vai tentar fazer nada para impedir que isso aconteça?

– O que você quer que eu faça!? – gritou o doutor, esmurrando o braço da poltrona. – Quer que eu enfrente o Tempo? Quer que eu o destrua? Ou talvez queira que eu peça perdão por tudo, prometendo ser um bom menino daqui para frente e não fazer isso novamente?

Então ele irrompeu em lágrimas e saiu correndo, encolhendo-se num canto do laboratório, iluminado pelas fortes luzes que vinham do teto. Naquele momento eu percebi que, após tantos anos de solidão tentando se ver livre do Tempo, o Dr. Alberto Fonseca enlouquecera.

– Tenho que ir. Não posso ficar aqui esperando. Mesmo que eu tenha que alugar outra apartamento, preciso de um lugar para ficar e pensar nessa bagunça toda. O senhor vai ficar?

O cientista resmungou alguma coisa e começou a chorar novamente. Observei enquanto ele batia a cabeça contra a parede e gritava coisas.

Arrumei meu casaco e saí do laboratório. Antes, porém, eu ouvi o Dr. Fonseca repetir, incessantemente, a palavra “esperar”. Acho que, no fim, era a única coisa que eu e ele poderíamos fazer.

*****

Durante muito tempo, confesso, eu pensei que tudo se tratara de um mal entendido. Que o homem alto de cabelos grisalhos se confundira com o escritório e que, perdido entre tantos prédios, eu errara a localização do meu apartamento. Que o Dr. Alberto Fonseca era um lunático e eu não devia ouvir as coisas que ele falava. Que nada naquela história de Tempo era verdade e, talvez, que tudo não passara de um sonho ou devaneio de uma mente curiosa.

Entretanto, pela maneira mais difícil, eu descobri que tudo era verdade. Tantos anos se passaram desde então… Tantos que nem consigo contar… Eu vi a humanidade crescer, morrer, ressurgir e finalmente desaparecer. Não há mais ninguém na Terra. Procurei por Dr. Fonseca, mas nunca mais o encontrei. Talvez ele estivesse definhando em algum lugar no passado ou no futuro, tal como eu.

Arrependo amargamente do momento em que subi os degraus até a Máquina. Se ao menos eu pudesse voltar no tempo… Mas isso era impossível. Tardiamente eu descobri que não era possível o homem criar máquinas para controlar o Tempo. Era o Tempo quem sempre os controlara.

E o Tempo: onde está? Eu não sei. Ninguém sabe. Gastei tempo demais tentando descobrir. Nunca me passou pela cabeça ser objeto de sua tortura. Mesmo nunca entrando na Máquina novamente, sei que o Tempo está em algum lugar, observando atentamente, rindo da desgraça para qual me condenou.

Esperar… era o que o Dr. Fonseca repetia da última vez que eu o vi. A única coisa que podíamos fazer. Esperar… Esperar… Esperar… Talvez o Tempo cansasse de esperar por mim em algum momento…

Andei até o topo de um penhasco. Observei o azul do céu e a solidão da terra. Não havia mais ninguém. Somente eu. Como poderia isso acontecer? Como poderia isso o tempo permitir?

Caminhei em direção à beira do penhasco. Não olhei para trás ou mesmo hesitei. Apenas me aproximou da beirada e abri os braços. Pensei em fechar os olhos, mas decidi que se fosse fazer aquilo, queria ver tudo com os meus próprios olhos. Um grito distante me chamou, mas era tarde demais. Sorri e deixei-me cair para a liberdade…

…mas fui puxado por alguém. Se não fosse a tristeza que corroía cada pedaço de minha amaldiçoada existência, eu seria capaz de rir daquela ironia. Mesmo com o fim de tudo, Ele não deixaria eu ir embora. Mesmo com o fim de todos, eu apareceria para me salvar do precipício. Minha imagem, da mesma forma estranha pela qual surgiu, desapareceu, deixando-me sozinho novamente. Nada mais falei. Aceitei o silêncio do mundo e nele aguardei. Sentado, observando o abismo, senti que o abismo olhava de volta para mim, esperando, assim como eu.

28 comentários em “Aos Olhos do Tempo (Pedro Viana)

  1. Isabella Beatriz Fernandes Rocha
    29 de outubro de 2013
    Avatar de Isabella Beatriz Fernandes Rocha

    (Estou com uma sensação de dejavu, sinto que já comentei essa história, enfim…)
    Muito bom! O texto foi muito bem escrito e a ideia bem pensada e bem desenvolvida. Podemos nos relacionar com o personagem principal, porque afinal, ele era apenas um homem comum. Qualquer um poderia acabar envolvido nessa trama. E como o tempo que fechou um ciclo, termino o review assim. Muito bom!

  2. Bia Machado
    29 de outubro de 2013
    Avatar de Bia Machado

    Muito bom, gostei demais! Algumas coisas para mexer, mas no geral, fiquei presa à leitura, não desviei a atenção até o final, e adorei esse final! Com um gosto amargo, sofrido… Bem do jeito que gosto, hahaha! Parabéns!

  3. José Geraldo Gouvêa
    28 de outubro de 2013
    Avatar de José Geraldo Gouvêa

    Talvez o primeiro texto realmente niilista do desafio. Há vários com finais infelizes, mas nenhum com final tão fatal e vazio. Também tiraria a citação da epígrafe e a inseriria no texto, no local exato, e a inseriria em um linguajar menos pedestre: “ao contemplarmos o abismo, o abismo também nos contempla”.

    Acho que este foi o texto de que mais gostei até agora, e vai destronar a Raquel de minha lista.

  4. Alexandre Leão.
    28 de outubro de 2013
    Avatar de Alexandre Leão.

    Fiquei com um gosto meio amargo na boca. Senti uma distância muito grande entre autor e personagem, o que fez o conto adquirir um aspecto superficial e o que mais me atingiu foi as muitas explicações. A ideia foi boa, a narrativa fuindo bem…Vê-se que o autor tem talento, que também está familirizado com as letras, mas houve um algo, talvez explicaçoes e comentários sem necessidades me fizeram até pular frases. Vale a pena descobrir o que o deixou cansativo. Abraços.

  5. Juliano Gadêlha
    27 de outubro de 2013
    Avatar de Juliano Gadêlha

    Creio que seja o primeiro conto que leio aqui a realmente apresentar o tempo como o vilão. Talvez não exatamente um vilão, mas algo capaz de reagir contra aqueles que buscam ludibriá-lo. Capaz de vingar-se de seus ofensores. Gostei muito disso. É um aspecto que o diferencia das demais histórias sobre viagem no tempo, inclusive as que temos visto por aqui. O foco é diferente, o ritmo e o estilo também. É um conto agradável de se ler, dinâmico. Vale dar uma revisada, tem uns errinhos de concordância. Mas no geral, muito bom. Parabéns!

  6. Sérgio Ferrari
    25 de outubro de 2013
    Avatar de Sérgio Ferrari

    Citações tem que ser de autores obscuros…pq veja bem….as demais, todos conhecem e já as vemos às dúzias pela aí afora. E o conto, muito boa personificação, meia mussarela, meia calabresa.
    Então ele irrompeu em lágrimas e saiu correndo, encolhendo-se num canto do laboratório,

    hahahaha eu vi demais uma mocinha birrenta nessa parte. Pô, melhor mudar a forma de apresentar essa reação! 😉

    E no começo achei que na garagem o esperava um aerolito (lí rápido) hahaha Anyway…bom conto. Mas esse final tá zoado. Queria ter visto uma manifestação grande do Tempo. Como pessoa. Mas acho q talvez o conto teria q ser outro.

  7. Gina Eugênia Girão
    25 de outubro de 2013
    Avatar de Gina Eugênia Girão

    Lembrou-me ‘O caçador de andróides’… Gostei: enredo, ritmo, estilo. Mas tratar esse senhor antipático que a ninguém perdoa com letras maiúsculas foi exagero: cadê a tal da ‘democracia com base nas teorias evolutivas de Darwin’?

  8. Andrey Coutinho
    25 de outubro de 2013
    Avatar de Daryen

    Genial a personificação do Tempo como vilão da história. A cena retomada no final, já com suas circunstâncias explicadas, gera um impacto muito bom. Também gostei muito do estilo do narrador-personagem. Os elementos futuristas poderiam ser melhor trabalhados, ou até mesmo dispensados, já que a força do conto, na minha opinião, está na própria viagem do protagonista e suas consequências. Uma excelente leitura!

  9. Thata Pereira
    25 de outubro de 2013
    Avatar de Thata Pereira

    Excelente! Fico até sem ter o que comentar, apenas que o conto me agradou. Para mim, um dos melhores até agora. Parabéns.

  10. Felipe Holloway
    25 de outubro de 2013
    Avatar de Felipe Holloway

    É, já dizia o Machadão, matamos o tempo e o tempo nos enterra. Ou mantém eternamente vivos, como neste conto, o que talvez seja a pior forma de morte.

    Como já dito, a ideia central é ótima. Em geral eu torço o nariz para a “ciclicidade” de certos eventos, quando se trata de histórias sobre esse tema, por ser um artifício usado à exaustão. Mas a retomada da cena do precipício, com o personagem a ver-se a si mesmo de perspectivas distintas, teve seus méritos, aqui, que debito na conta da perturbação. Como a que envolve a cena do detetive e do corredor de hotel em Paprika, o clássico japonês, ou o protagonista ao final deste bom curta francês de sci-fi, La Jetée, que também trata de viagens no tempo:

    http://www.youtube.com/watch?v=81IrFtR7L48

    O tom de investigação futurista do início me lembrou demais o primeiro ato de Eu, Robô (tanto que não consegui tirar da cabeça a imagem do protagonista como o Will Smith), mas isso se dissipa depois do acidente com a máquina. Achei muito fracas (e ingênuas) as explicações sobre o porquê de o governo aceitar os termos restritivos do criador da máquina: se hoje em dia se invadem PAÍSES pela mera suspeita de que haja reservas de petróleo sob seu solo, o que não seria feito dos “direitos de proprietário” de um cientista cuja criação traz a tiracolo tantas e tão potencialmente drásticas implicações para a manutenção de, praticamente, uma realidade inteira? Das mil e uma mortes do doutor, pelo menos 998 seriam por motivos de queima de arquivo.

    Os diálogos não soam muito naturais. Alguns parágrafos expositivos estão mal distribuídos, como aquele que sucede a primeira frase (bem dispensável, aliás) da perita que investiga a cena do crime, sobre as novas moradias dos milionários. O doutor não age como se esperaria de alguém com sua “experiência de mundo” — na verdade, fica bastante aquém dela –, e creio que seria desonesto com o leitor creditar essa incoerência comportamental à loucura ou proto-loucura que o dominou, porque mesmo a loucura de um imortal sempre soará mais complexa que a sanidade de um homem comum.

    Enfim, uma ótima ideia, um desenvolvimento razoável e um personagem realmente perturbador: o Tempo. Ou o Nada que olha de volta.

  11. fernandoabreude88
    25 de outubro de 2013
    Avatar de fernandoabreude88

    Gostei do conto. História bem pensada e executada, diálogos críveis e o fina que passa aquela sensação de desespero. Não gostei muito da citação da frase do filósofo, mas isso é birra minha, pois ela capta a essência do conto.

  12. Marcelo Porto
    24 de outubro de 2013
    Avatar de Marcelo Porto

    A concepção do tempo como uma entidade foi fantástica!

    A narrativa também é muito boa. Tiraria a citação de Nietzche e repensaria o epilogo, pois o achei extenso demais. Mas nada disso influenciou no prazer de ler essa história.

    Parabéns.

  13. Frank
    24 de outubro de 2013
    Avatar de Frank

    Excelente conto! Muito original e prende do início ao fim! Uma viajem que faz a gente ficar pensando. Parabéns!

  14. Jefferson Lemos
    23 de outubro de 2013
    Avatar de Jefferson Lemos

    Magnífico! Li sem parar, e sempre esperando o que viria a seguir. Parabéns ao autor, um conto de ótima qualidade!

  15. Gustavo Araujo
    21 de outubro de 2013
    Avatar de Gustavo Araujo

    Gostei da história. O mote me prendeu do início ao fim, por sua criatividade, ar filosófico, jeitão de romance policial, tudo amarrado num loop perfeito. Claro, não é uma narrativa perfeita, eis que os erros de digitação (esses filhos da mãe que insistem em se esconder) aparecem aqui e ali, mas não é nada que comprometa a essência do que se expõe. Como sugestão, eu tiraria a citação de Nietzche no início. É que lá no fim o protagonista se depara com o abismo e daí surge o paradoxo. Com a citação antes do texto perdeu-se a surpresa. De todo modo, a leitura é altamente aprazível. Que o autor continue neste caminho.

  16. Elton Menezes
    21 de outubro de 2013
    Avatar de Elton Menezes

    Sobre a história… Espetacular, talvez uma das melhores e mais criativas ou bem elaboradas. Acredito, e isso e opinião minha, que o prólogo do suicídio, embora muitíssimo bonito, devesse ser cortado. Porque isso gera uma tendência na mente do leitor que o cientista tenha cometido suicídio, e acaba tirando parte do suspense do que houve com ele. É a única coisa que eu tiraria. De resto, tudo está milimetricamente bom.
    Sobre a técnica… Escrita apurada, bem elaborada, com um bom gosto forte. Apesar de longo, não é enfadonho, intercalando bem diálogos corretamente escritos com uma narrativa em terceira pessoa pouco prolixa. A única coisa que não soou bem foi “cujas quais”, que deveriam ser trocadas por “as quais”. De resto, perfeito.
    Sobre o título… Maravilhoso! E eu ainda colocaria “Aos olhos do Tempo”, personificando ainda mais o tempo, o maior personagem da história.

  17. Marcellus
    20 de outubro de 2013
    Avatar de Marcellus

    Bom conto! A ideia de personificar o Tempo num algoz irascível e sádico foi fantástica.

    Precisa de pequenas correções, mas nada que tire o gosto da leitura. Parabéns!

  18. Edson Marcos Gomes Nazário
    20 de outubro de 2013
    Avatar de Edson Marcos Gomes Nazário

    Gostei; a afirmação de que o Tempo é pior do que Deus e o diabo me arrepiou! Quem quer viver pra sempre depois deste conto? Eu não…

  19. Claudia Roberta Angst (C.R.Angst)
    17 de outubro de 2013
    Avatar de Claudia Roberta Angst (C.R.Angst)

    Interessante ideia que prende atenção e tensão. Narrativa dinâmica que não cansa o leitor. Parabéns,

  20. Sandra
    17 de outubro de 2013
    Avatar de Sandra

    Eis o verdadeiro inferno… O humano amaldiçoado pelo sonho alcançado.
    Facim de extrapolar as fronteiras do conto. Ótima leitura!

  21. Gilnei Nepomuceno
    16 de outubro de 2013
    Avatar de Gilnei Nepomuceno

    Muito envolvente. O autor soube prender a atenção do leitor.

  22. fcoglaucobastos
    16 de outubro de 2013
    Avatar de fcoglaucobastos

    O texto tem um quê de conto policial, capaz de prender o leitor até o seu final.

    • Ricardo
      18 de outubro de 2013
      Avatar de Ricardo

      Também senti uma certa aura “noir” na narrativa, Bastos…
      😉

  23. Rodrigues
    16 de outubro de 2013
    Avatar de Rodrigues

    Achei desnecessária a ideia da máquina do tempo e seu inventor. O próprio tempo já é o elemento que transporta os personagens. Na verdade eu queria que o autor enfatizasse o tempo como uma presença constante em todos os lugares, a possibilidade de sua interferência oportuna (ou inoportuna) na vida das pessoas. É uma história bem pensada, bem bolada e tem um dinâmica bacana para quem a acompanha, além do sentido elíptico, que me agrada. Quanto aos diálogos, achei-os muito longos e com muitas informações, que podiam ser distribuídas na história.

  24. TONINHO LIMA
    16 de outubro de 2013
    Avatar de TONINHO LIMA

    Excelente. LI com interesse do início ao fim.

  25. rubemcabral
    16 de outubro de 2013
    Avatar de rubemcabral

    Bom conto! Uma aventura como nos bons filmes de ficção.

  26. selma
    16 de outubro de 2013
    Avatar de selma

    gostei, entretem, desperta curiosidade. parabens!

  27. Ricardo
    16 de outubro de 2013
    Avatar de Ricardo

    Bom texto; boa história; boa ideia.
    Enfim, um bom passa-tempo.
    😉

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Publicado às 15 de outubro de 2013 por em Viagem no Tempo e marcado .