Quatro segundos antes de ficar cego, enxergo o mundo através de meus pés sobre a terra úmida de tua cova. Enterrarei meus olhos aqui, penso.
Nunca gostei de ti. Nunca. Confesso, me apaixonei ao ponto de te amar como se tua boca guardasse meus ouvidos. Mas, gostar, gostar de ti, eu, eu, eu não. Tu, logo tu, esta coisa musical, fluídica, perfeita como os encaixes de Lego da infância que não esqueço nem lembro, de ti, gostar sempre foi de uma inutilidade tantálica. Tu e teus frutos, teus córregos, tua detestável fartura de coisas que sempre me alimentaram de entojos.
Não havia algo que eu não gostasse até apertar com masculina firmeza a tua mão de ilha fingindo-se náufraga.
A convicção de teus dedos – evaporando sólidos através de meu cumprimento tão animoso – por pouco não me fez rir. Guardei meus dentes para a mordida, para o relincho, não para a tua inócua, mas afetiva amizade.
Gostei de teu pai, com a garganta cheia de revelação, todo barro. Gostei de tua mãe e de sua paciência imaculada, costela de porcelana. Mas tu, tu, frequentei tua casa porque chovia lá fora, e ainda chove, mas, de dentro pra fora da terra. Meus pés umedecidos, sobre tua sepultura, a mesma sepultura que dentro de quatro segundos devorará meus olhos.
Nunca gostei. Não de ti.
Foi um erro respirar do vento que te trouxe até mim, a fingida brisa invadiu meus pulmões e gargalhou, é teu. Meu. Por que meu? Por que esta minha exacerbada riqueza de tesouros que me empobrecem, que me saqueiam dia e noite, que me despem da ironia, do sarcasmo, de meu maneirismo vesicante em rejeitar gostar? Não falo de gostar de qualquer coisa ou qualquer um, mas de ti. De ti eu não queria. Gostar, não.
Em quatro segundos, a terra que te guarda neste sufocante e irreversível abraço sofrerá a indigesta experiência de engolir-me o semblante cáustico, dois comprimidos ásperos, sem água. A terra há de entalar. E de tremer.
Já tive tantos olhos, e agora somente dois. Um míope, outro hipermétrope. Tão perto e tão longe e tão turvo. Não enxergo a tola possibilidade de, um dia, ter gostado de ti. A terra aguarda faminta que quatro segundos se passem, mas não passam. Por quê? Por quê?
Na avaliação de um conto anterior, eu tinha apontado o cuidado que se deve tomar, a fim de contornar o falso-histórico. Caminhando mais um bocado, eis que me deparo com uma coluna toscana constituída de concreto armado, ah-ah-ah! Vale a pena lançar uma observação que complemente minha última análise: as épocas comportam estilos que precisam invariavelmente ser observados. Em todas as artes. Uma coisa é a “releitura”, outra completamente diferente é a “reprodução” de um estilo remoto.
Neste caso, porém, o que impede que o texto sufoque é a perícia do autor. Sua técnica é bastante refinada, válido destacar. Muito embora me incomode o molde arcaico atentado, as entrelinhas revelam mente e mãos revestidas de habilidade. Isso é ponto positivo, obviamente.
O tom poético escolhido é uma faca afiada que divide o texto em duas metades: aquela bela e metafórica, outra afastada dos predicados de um conto. Lemos uma carta, e somente uma carta.
Uma linda carta que carece de vocativo, preenchida por linhas de romantismo e que no meu entendimento caberia em um concurso com premissas distintas.
Linda narrativa. Enxerguei talvez referências bíblicas: “todo barro” (Adão?), “costela de porcelana” (Eva?).
No entanto, em dúvida sobre como classificar o texto.
Excelente narrativa. Não sei se isso é um conto, é uma carta de despedida ou é um poema. O fato é que me pegou.
A prosa rebuscada e repleta de metáforas pode complicar um pouco a vida do leitor, mas isso também é papel da literatura, nos forçar a reler, pensar e tentar decifrar o que o autor quer dizer.
Muito bom, parabéns!
Gostei das fortes palavras, das fortes sentenças. Textos assim sempre me atraem, pois as palavras ficam martelando mesmo após certo tempo.
Não posso culpar o texto pela minha dificuldade em decifrar algumas de suas imagens, ou captar uma eventual trama linear subjacente. Achei uma prosa linda, a reiteração do narrador sobre a própria ausência de sentimento pela falecida (é como se ele estivesse tentando convencer mais a si mesmo do que a quem seu relato se destina), a metáfora náutica pro aperto de mão, a terra que haverá de entalar quando os olhos lhe forem enfiados goela abaixo, “como comprimidos” etc. Incrivelmente, levando em consideração a minha torcida de nariz para, tipo, 90% de toda poesia que já li, o hermetismo algo subjetivo deste conto me agradou. E me agradou porque não o julguei gratuito: o texto claramente não se destina a mim, mas a outro personagem, que, se não for só uma alusão metafórica, tudo indica já haver morrido.Ele assemelha-se, assim, a um tipo de manuscrito encontrado num cemitério. Espiar suas linhas é como ler apenas a carta que encerra uma longa relação epistolar: não se pode esperar compreender todas as alusões e imagens, porque a maioria delas só é compartilhada pelos dois. Nesse caso, esmiuçar demais as coisas talvez tivesse o efeito de “superficializar” o conto, que, tendo consciência do leitor-espião, ver-se-ia obrigado a situá-lo no contexto maior do que ali vai descrito, e, ao fazê-lo, seria análogo ao ator que olha para a câmera no meio da cena. São poucos os contos cuja opção por ignorar, de certa forma, o leitor lhes confere uma virtude, em vez de uma deficiência (e menos ainda os poemas). Este aqui, para mim, é um deles.
Excelente.
Sou suspeita para comentar o texto, pois aprecio a prosa poética como um todo. Também acho interessante essa mistura de tom, de se perder o rumo do conto na avalanche da poesia.
Hummm. Não gostei, não. Apesar do forte lirismo, achei que faltou uma melhor organização das ideias, não sei. Pode ser também um preconceito meu, por não gostar narrativas com tanta poesia. Mas não me agradou.
Gostei! Prosa poética forte, lirismo intenso…
Minha reação a esse conto não é muito clara. Por um lado, há imagens que ressoam, como os “dois comprimidos ásperos” de um “semblante cáustico”. Por outro, essa linguagem rebuscada e de tom meio retórico às vezes erra a mão, o alvo, parece imprecisa. Mas se pro narrador os quatro segundos não passam, pro leitor (eu) eles passam, e um momento depois da leitura não consigo formar um conjunto do conto, porque fica só uma imagem, a dos dois comprimidos ásperos.
Para a apreciação de um texto, é preciso haver uma sintonia entre o que se quer passar e o que o leitor entende. Nesse ponto, assumo a culpa. Não tenho muito contato com poesia, e talvez por essa minha mentalidade ogra, percebo que perdi muito do que o conto/poema queria passar. É como me deparar com um quarto escuro; sei que deve ter alguma coisa lá dentro, mas, salvo alguns vultos, não enxergo muita coisa.
Não leve a mal; identifico qualidade nas estruturas e umas imagens excelentes. Acredito que aqui o problema é mais do leitor. Mea culpa.
bendita lingua portuguesa assassinada…”nunca gostei”…me poupem. lirico ou não, não me disse nada.
Muito bom! É um conto em forma de prosa poética, oras! A mim me fez muito bem a leitura, funcionou ao fazer com que eu imaginasse aquela situação toda e querer ler até o final, mas sem querer, pois estava bom demais! Parabéns!
Pura poesia. Conversa interior que fotografa a história dos instantes que eternizaram um rompimento na vida de um lírico apaixonado. Fluido, agradável de se ler!
Texto formidável, muito bom de se ler !
Adoro esse tipo de texto. É o que costumo escrever e ler prosas assim me faz pensar: poxa, gostaria de ter escrito isso. Indiferente de ser uma prosa poética ou um conto, valeu a pena ter lido cada palavra. Parabéns!!
Gostei muito! Adoro esse tipo de linguagem poética. Gostei mesmo!
Não sei se qualifico este texto de conto. É prosa, é narrativo, mas não me parece desenvolver um argumento claro. É bonito, porém, apesar da obscuridade desafiadora.
É um texto que precisa ser lido várias vezes. Neste momento eu ainda não sei se votaria nele. Vou ler outras vezes até o final do concurso e me decido.
Gostei de ler e acho que está muito bem escrito.
Li duas vezes e, apesar de achar um texto original em relação ao tema, achei as imagens muito líquidas e distantes do leitor. Não me prenderam.
Apesar da linguagem lírica, poética, é conto. Todavia, o texto é intimista, subjetivo, utiliza-se do fluxio de pensamento para contextualizar-se.
fluxo*
Não vejo como problema a dúvida sobre o fato de ser um conto ou um poema. O que interessa é que está muito bem escrito. É lírico, tem um quê de tristeza e de angústia e, exatamente por isso, transmite emoção. Não se trata de uma história – pelo menos não no sentido tradicional – mas mesmo assim é algo que vale a pena ler.
É, parando para pensar, a questão conto / poema é superficial. Realmente é um texto que vale a pena ler. =)
Muito bonito mesmo, mas concordo com o amigo Sidney: é um conto ou um poema?
Abraços!
Texto bem elaborado de uma poesia singular, mas me pergunto se ele se enquadra na categoria ‘conto’ ou como um ‘pensamento’ nebuloso de um poeta apaixonado.