A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. — Jesus no Sermão do Monte (Mateus 6; 22–23).
Uma maçã podre fod* com o cesto todo. — Dito popular (paráfrase).
***
A pressão que empurra minhas pernas para cima — é sempre a mesma maldita sensação! —, a sensação do mergulhador que se entrega ao empuxo. Só que no meu caso a força vertical supera o meu peso, fazendo com que eu fique imaginando todo o chão abaixo de mim feito um painel em curto no qual uma xícara de café virou e eu, um dos botões, prestes a explodir para fora dali. Mas acima de tudo, arde, todo o corpo arde. Como se após esticar os dedos, eu pudesse tatear na atmosfera a firmeza do calor do próprio inferno, um calor com o cheiro e a substância de uma plácida podridão. Enquanto cozinho feito comida instantânea, o mundo inteiro rodopia. E enquanto a cabeça gira, ela igualmente penetra a órbita das sombras. Estou delirando, e o delírio é um dado comum a esses rituais. Teria vomitado, se fosse capaz, e forrado todo o chão. Mas o estômago está vazio.
E meu corpo, desabando, desabando sobre os joelhos envoltos em boas calças jeans. Imediatamente após atingir o solo, a dor se introduz pelas rótulas esmagadas feito uma lâmina cromada. Ela sobe, vem ricochetear na raiz de todos os dentes, obrigando-me a silvar de indignada dor e a ouvir uma sineta aguda tilintar.
É sempre a mesma maldita sensação.
O mundo é um furacão de jornais recortados e eu estou prostrado de joelhos no meio dele.
As pessoas em volta não param de gritar, não param de gritar comigo, e mantêm-se a certa distância. Na gruta de minha cabeça, uma missa de sons, suas vozes entrelaçam os dedos às minhas vozes. Sou a própria catedral da loucura, arcos rachando-se e se fragmentando, pedaços de mim mesmo despencando, como Nietzsche disse, para longe do meu centro de gravidade. Enrijeço as mãos espalmadas no piso e me firmo sobre elas. O gesto me arrebata os últimos goles de energia, uma coisa medíocre e ao mesmo tempo difícil de se fazer, como descobre o escalador que subiu 5.000 metros acima do nível do mar ao tentar puxar o ar para dentro. E isso já seria o bastante para me deixar irado, caso as sombras não tivessem tomado conta de mim. As sombras sempre carregam consigo o terror, e o terror é o senhor de todas as emoções.
Ouço passos… dois, três, quatro… na minha direção — já nem sei se ouço mesmo, ou se apenas consigo rastreá-los com as pontas dos dedos no chão. As incertezas talvez sejam apenas os tentáculos lançados pelo meu avançado delírio (mas insano ou não, eu ainda sou capaz de registrar a aproximação inimiga, nitidamente). O quadro que me vem à mente é um animal enfraquecido ouvindo cada etapa do cerco empreendido pelos caçadores, este que se fecha a passos rápidos e em uma fome maligna. O anel humano — lembrando algo parecido ao que se origina em torno de uma briga — contrai-se. Fico imagino que se me tivesse restado [que fosse tão-só] um pouco do vigor que animava esta carcaça… fico remoendo minha frustração enquanto sinto o restante do ar que me era disponível ser racionado… Fico imaginando o que faria se fosse possível endireitar as minhas costas. Repartir na região da cintura com uma mordida o corpo do inimigo que avança, estilhaçar uma sequência inteira de costelas se meus dedos tivessem a felicidade de apenas tocar o primeiro infortunado… Fico só imaginando. Porque as vozes negam, dizem que não, na minha cabeça elas dizem que tudo está acabado. As condições expunham minha própria rendição.
O suor é um licor elétrico que me escorre pelas têmporas e ao mesmo tempo é a bandeira branca.
Um deslumbrante e hediondo farfalhar de asas, agora, em união aos passos. É claro que estive de ouvidos abertos o tempo todo. As asas drapejam como toalhas em um varal acima das minhas costas curvadas, estas que em um último momento de desespero procuram sorver o ar para dentro dos pulmões, os quais, nesta altura, não são maiores que laranjas. Sinto que, além do ar, eles acabam se surpreendendo com a densidade do vapor que preenche o recinto abafado. Certamente as janelas estão suadas, enquanto a chuva cai lá fora.
Um trovão.
Ou seria o teto sendo rasgado?
Eles estão chegando: sim, eles estão. A lucidez, o farol que piscava feito um dedo salvador, envolvido pela minha tempestade de dúvidas, dá lugar ao branco silêncio dos meus pensamentos. Mas deles não posso extrair coisa alguma, então me contento em notar que os joelhos da construção são sacudidos mais uma vez pelo farfalhar das asas.
Finalmente o brado de “vamos! agarrem-no! humilhem-no!”, e asas, e pés, e multidões e espada.
Fuja! fuja! fuja!… minhas inocentes sugestões mentais, são elas uma fileira de dominós que tombam atrás dos meus olhos. Ao mesmo tempo as costas pesam mais sobre os braços.
(“Humilhem-no, humilhem aquele que antes da Criação fora tocado pelo pecado!”)
Quando enfim ao meu lado o chão rasga-se em carne-viva, expulsa seu fedor hediondo e lança as bruxuleantes chamas que me arrastarão para baixo, digo comigo mesmo, Eu fugiria, caso um deles, somente um deles, vacilasse. Fosse apanhado. Caso eu lhe tocasse, transformando seu pecado latente no câncer gordo que o mataria.
Então aquele familiar magnetismo ressurge e, consigo, traz a esperança.
Outro trovão.
“Saia! Saia!”
“Invocamos o nome dAquele que nos revestiu de poder —”
(asas farfalhando)
“Humilhem o que fora tocado pelo Decaído, o filho da Serpente, e preservem o pecador.”
Eu não suporto esta luz!
Mas preciso manter os olhos abertos, pois logo eles alcançam o pastor que comprime sua mão em minha testa.
— Porco! O que lhe diria a assembleia se ouvisse qualquer rumor sobre a garota que naquela tarde de maio, graças a ti, conheceu o Braço Forte do Senhor? Qual foi mesmo a orientação, a inspirada orientação, sua santa orientação? “Faça seu pastor feliz e dobre os joelhos.”
Escarneço. Pude sorrir. Sorrimos para ele. Como na ocasião em que o Nazareno ofereceu uma segunda chance ao nos lançar na manada de porcos, que precipitamos no mar. “Mantenha-se diligente, ministro, e conserve a sinceridade, a fim de que não acabe irresponsavelmente tomando sobre si toda a impureza que carregar a congregação.” ABC Pastoral, capítulo IX, na página 27. Pastor Jonas, aquela baleia de suspensório, teria tirado grande proveito do retiro capacitatório, se não tivesse ao invés disso limpado sua bunda nas apostilas.
Pastor Jonas congela sua mão no mesmo instante… e quase se mija dentro das calças. Sorrio e sinto um vigor novo infiltrar-me pelas narinas e dilatar a garganta; o farol foi reaceso, a candeia, reabastecida de azeite. A rachadura no chão encolhe-se para dentro de si e decepa aquelas línguas de fogo, que logo desaparecem no ar.
Pastor Jonas, um local podre onde me instalar.
Retiro-me deste corpo escasso, surrado pelas orações; sou o último fio de fumaça que sopra esta chaleira. Posso decifrar sensorialmente o momento em que a razão humana retoma seu lugar, substituindo meu domínio, do mesmo modo que as sombras não podem para sempre cobrir a Lua. Então, de repente, não sei mais nada sobre ele. E possuir o outro é ainda mais delicioso, sempre é delicioso. O antigo corpo desaba desacordado diante dos meus novos olhos (míopes e relevantemente tenebrosos), ao passo que o ermitão sente-se satisfeito em seu novo abrigo. A legião de anjos (invisível à congregação, cujo júbilo após o exorcismo bem sucedido se traduz em sonoros hosanas! e glórias!) não mascara o assombro ao tocar suas sandálias celestiais nas lajotas frias.
“Ele fugiu!” — a confusão de espadas, olhos arregalados e plumas efeminadas se espanta, enquanto despertamos no pastor safado uma incontrolável vontade de se punhetar no banheiro da igreja.
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Legião é o meu nome, porque somos muitos. — Marcos 5; 9.
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Este conto foi escrito por Diogo Bernadelli. A publicação neste blog foi devidamente autorizada pelo autor.
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