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Detox Literário.

O Náufrago – Conto (Sandra Datti)

naufrago6“[…] não tinha mais como olhar para o espelho: então virou espanto, meu Deus!” 

I

Ele voltou à tona subitamente.

Chegou a antever o fardo leve da morte que suavemente lhe congelava os sentidos. O coração batia fracamente sem um compasso rítmico, e os pulmões se esforçavam ao máximo para lhe manter a vida fugaz. Num momento ínfimo de desespero, antes que a mente se entregasse ao gozo da morte, o homem resolveu reavaliar suas perspectivas: munido de uma força desconhecida, elevou-se sobre a linha horizontal do líquido esverdeado e viu que tudo era nuvem, alvura e vazio em todos os espaços a um metro de distância de si.

Apenas a tosse e o remexer frenético dos braços e pernas se organizavam para comporem a música tímida da vida. Os olhos ardidos na salmoura foram invadidos pelo branco suave da estrada de névoa. Começou a sentir frio e fraqueza. Involuntariamente, as pernas, os braços e os lábios já arroxeados começaram a trepidar. Não tinha qualquer ideia do que fazer e se arrependeu de ter lutado para prolongar seu sofrimento: a morte fora um presente que havia rejeitado…

Colocou a cabeça para trás e se pôs a boiar, acomodando o corpanzil trepidante na linha horizontal tranquila e gélida. Fechou os olhos e, antes de sumir de si por completo, sentiu um objeto pontiagudo a lhe bater no corpo: era uma caixa grande e fechada, sem qualquer fenda visível, de madeira escura. Retirando o resíduo de forças guardado na alma, ele se colocou penosamente sobre a caixa e adormeceu instantaneamente.

II

Quando despertou, sentiu o corpo dolorido e ardido. A névoa havia sumido e o sol lhe queimava as costas. Ainda de bruços, tentou se aliviar com a água ao seu alcance; mas a dor, uma dor que lhe trazia o frescor de uma infância esquecida, o fez urrar.

E ele se sentiu vivo novamente.

III

O céu era límpido, de um azul intenso. O náufrago sentou-se na direção do sol, a fim de esconder por algum tempo as costas ardidas. Após alguns momentos de ausência, olhou para a velha caixa de madeira com curiosidade.

De repente, uma dor de cabeça muito forte e um calor infernal tomaram conta de si. Ele desceu às águas e sentiu-se melhor, apesar da ardência que parecia lhe chicotear as costas. Como vim parar aqui? – tentou refletir com certa aflição, fechando os olhos para que a luz do sol não os ferisse.  Mas nenhuma memória lhe respondia. Ele verticalizou o corpo meio atordoado e, antes de se reaproximar da caixa, percebeu que bem encostado à linha do horizonte, algumas nuvens mais escuras traziam relâmpagos que riscavam todo o céu. Zeus deve estar enfurecido com os homens. – escapou-lhe, enfim, a afirmativa espontânea.

Subiu na caixa retangular que se elevava  sobre as marolas mais agitadas e escutou, entre o chacoalhar ainda manso das pequenas ondas sob seu corpo de náufrago, um barulho choco que vinha de dentro de si: estava com fome.

Mas não saciá-la ainda não era seu medo maior.

IV

O mar se pôs agitado. O náufrago se segurou nas bordas da caixa de madeira como um surfista a se preparar para as ondas. Volta e meia, dava grandes tragadas de água e logo sentia o estômago revirar. De repente, observou que as ondas lhe traziam algo pequeno e escuro. Tomou cuidado para não se soltar da caixa; todavia, foi tragado por uma onda besta que decidira quebrar sobre sua cabeça. Ele afundou por algum momento, mas alcançou um colete inflável preto que boiava ao seu lado. Colocou a proteção com dificuldade e suspirou. O colete o esquentava. Sentiu um prazer rápido mesclado de ardência e, com um calar momentâneo dos pensamentos, percebeu-se praticamente nu.

Assim como sua mente.

V

Alguns raios rabiscavam de luz o céu longínquo, e o homem começou a fazer uma prece, que aprendera em algum momento esquecido da vida. Como se alguém o escutasse, uma chuva não muito forte começou a cair. Virou então a boca machucada em direção aos céus e bebericou com muito prazer a água doce que o aliviou.

Mas suas forças estavam se esvaindo…

VI

Passada a chuva branda, ele se deitou sobre a caixa. Fixou os olhos na direção do espaço mais acinzentado e começou a observar as nuvens. Um grupo de cúmulus-nimbus em algum ponto alto do céu formava claramente o desenho de uma mulher acinzentada que parecia encará-lo. Poderia jurar que a conhecia, e até sentia sua presença junto de si. Um raio muito forte pareceu ter se rabiscado próximo a ela, então num flash muito rápido, pensou tê-la visto de verdade.  Despertou num sobressalto, quando um pássaro grande e branco pousou próximo a ele, sobre a caixa. O bicho tinha um peixe no bico.

O peixe fora deixado no “chão” do barco improvisado. O pássaro olhou-o nos olhos e, segundos depois, partiu, batendo as longas asas brancas em direção ao poente.

O náufrago comeu o cadáver do peixe com a voracidade de uma fera. Depois, deitou-se desajeitadamente sobre a caixa e apagou os sentidos.

VII

A noite desceu com a luz da lua cheia e o brilho salpicado de algumas estrelas pelo negrume do céu. Ele abriu os olhos pesados a contragosto e pensou que nunca havia visto uma noite tão linda. O mar estava calmo e, volta e meia, uma estrela cadente cruzava a escuridão num imenso rasgo. Fez um monte de pedidos e sentou-se sobre a caixa. Queria abri-la.  Deitou-se de barriga para baixo. Passou a unha enfraquecida pelas laterais para, em vão, encontrar alguma abertura.

Sabia que algo importante estava ali dentro.

A caixa, contudo, estava completamente lacrada.

Exatamente, como ele.

VIII

O náufrago se atirou na água e se pôs a flutuar, sem tirar os olhos da caixa. Um objeto lhe tocou no braço. Pensou duas vezes antes de virar: tudo aquilo não fazia sentido.  Com a luz fraca do dia que se estampava sobre o azul, e das estrelas que começavam a desaparecer, ele se virou e pegou o objeto que estranhamente singrava o mar. Em meio às marolas molengas, elevou seu achado à altura do rosto e viu alguém repartido em milhares de gotículas.

Era um espelho que refletia um estranho. Seu próprio espanto. No espaço penumbroso do outro olhar, não se reconhecia. Um arrepio frio tomou conta de todo o corpo. Arremessou o objeto para longe.

E não percebeu que dilatara a distância entre si e a vida. 

IX

Ao final da tarde, quando o alaranjado do poente terminava de se recolher, muitas nuvens escuras se reuniram e lentamente foram  ganhando todo o espaço do céu e do mar. Do meio delas, um navio arrebentara a cortina cinzenta e parecia vir em direção ao náufrago. O homem então começou a fazer movimentos estabanados que, por vezes, escondiam-se na imensidão das marolas.

Da euforia, ele começou a sentir vazio e medo. Mas precisava chamar a atenção das pessoas do navio. E balançou mais algum tempo os braços cansados.

O navio estava cada vez maior aos olhos do homem…

Sentia-se metamorfosear, sua crisálida estava prestes a romper.

Mas sabia que ainda haveria um hiato entre o agora e o vazio…

X

Silêncio. Uma chuva fina. Uma brisa mais gelada. Marolas adolesciam e faziam carícias nos cascos da embarcação que se aproximava. O náufrago percebeu que pouco a pouco começavam a se espatifar com mais força e frequência. Ele voltou a sinalizar para o desenho escuro que começava a eclipsar o céu e o mar.

O espelho que havia arremessado às águas voltara e começava a formar um som rítmico quando se encostava à caixa.  Despertado por alguma força interior o pegou novamente. Não se viu refletido do outro lado; ao invés disso, viu, como numa tela de cinema, imagens de que não se lembrava. Atordoado, percebeu que tudo o que via lhe era familiar e, ao mesmo tempo, estranho. Era como acordar, após ter passado por uma aventura marcante num mundo onírico: um véu fino e transparente impedia o contato com o vivido, enchendo-o de esquecimento: apenas uma leve sensação, como rastro sobre a areia fina, ao sabor do vento ou como um cheiro delicioso de comida… Na casa de um vizinho.

Por sorte, alguém do navio já o tinha avistado: o ponto branco, amparado pela luz fraca da manhã que já nascia, havia visto o náufrago.

Logo estaria a salvo – suspirou e fechou os olhos.

XI

Desfaleceu, por minutos, agarrado à caixa. Sonhou consigo mesmo em terra firme tentando abri-la com uma grande marreta. Elevou o objeto com toda força e projetou vários golpes sobre a madeira que lhe parecia apodrecida. No décimo nono golpe, a caixa se partiu. Ele inspirou fundo e gritou com todas as forças da alma, quando viu o que lá havia. Depois, engoliu sua angústia secamente.

Seu grito o acordou. Quando abriu os olhos, havia um bote ao seu lado com três pontos esbranquiçados sobre ele. Forçou os olhos doloridos e viu que um deles se levantava com dificuldades de equilíbrio para puxá-lo, enquanto um outro segurava um tecido branco comprido. As águas estavam muito mais agitadas. Dois homens o puxavam  para dentro do bote. Sentiu o corpo fraco, acomodado nas paredes fofas do veículo. Estava com frio. Agarrou-se ao pano trazido pelos marinheiros. Viu três rostos muito próximos.

— A Caixa! — disse num sussurro. — A Caixa.  Preciso da Caixa…

XII

Num impulso, levantou a cabeça, tentando rever seu tesouro. Mas os homens não tinham a intenção de pegá-la. Pareciam ter pressa. Muita pressa! O resgatado viu, não muito longe, a ponta da Caixa preciosa que balançava com muita agitação e o espelho se espatifando contra a madeira.

— A Caixa! A Caixa! — gritou, olhando nos olhos azuis do marinheiro, que era a única luz no cenário cor de chumbo.

O marinheiro olhou na direção em que o homem apontava. Ambos viram a caixa submergir nas profundezas do mar.

O homem se desesperou e tentou novamente se desvencilhar dos anjos que o salvavam. Sabia que não poderia deixar sua Caixa sumir. Ela, porém se foi para o fundo do grande oceano. Apenas restos do espelho estilhaçado ficaram como náufragos à deriva.

Agilmente, os braços fortes dos marinheiros remaram até o navio que estava a poucos metros dali. Quase desfalecido, o sobrevivente percebeu muita agitação no convés. Um céu despido de luz terminava de deglutir o dia. E, bem ao longe, um traçado acinzentado em forma de cone se aproximava: parecia vir com furor, pois rebolava seu vértice como se quisesse sorver todo caldo oceânico numa só tragada. Altas ondas nasciam como semideusas condenadas a causar sofrimentos e angústias na vida dos mortais.

— A bombordo! — gritou um homem não muito distante, enquanto um quarto marinheiro  ajudava o sobrevivente a chegar no convés.

A bombordo… A bombordo! — repetiu dentro de si. — Bomba. Coração. A Caixa…

Estavam ambos cada vez mais distantes…

XIII

Uma ventania varria a parte de cima da embarcação e começou a arremessar os marinheiros pelo o ar, como se fossem pequeninas e frágeis formigas. Logo tomou conta do lugar e parecia aumentar de intensidade a cada segundo. Os três homens que tentavam ajudar o sobrevivente o soltaram assim que uma enorme onda se arrebentou sobre o costado do navio. Dois foram espirrados em direção ao mar, outros jogados contra as paredes da embarcação. Já desmaiado, o sobrevivente foi sugado pelo vértice do cone cor de nuvem carregada, que trazia muitos raios ao redor. As águas faziam o grande navio dançar, despejando os marinheiros noturnos no ventre faminto da morte.

No meio do caminho de sua partida para o vazio dos sentidos, o homem estranhamente sentiu paz. Uma momentânea e intensa paz.

A paz da Morte que traía a Vida, quiçá, para sua última valsa…

XIV

De repente, uma dor descomunal tomou conta de si. Vinha diretamente do peito. O homem revirou os olhos e sentiu como se lhe tivessem aberto o coração. Uma imensidão de luzes e raios continuava ricocheteando o horizonte em desalinho.  Ele sentiu um, dois, três choques violentos. Viu olhos e faces boiando no céu, e foi arremessado ao mar.

Depois, tudo sumiu.

XV

Naquele mesmo momento, numa sala de cirurgia, os médicos tentavam reviver o homem. E a alma que valsava sentiu que não devia partir, ainda.

Depois de tanto tempo em coma profundo, ele voltou.

Quando abriu os olhos, as nuvens esbranquiçadas foram desaparecendo. E a mulher, que antes flutuava no céu, recebeu-o com um imenso sorriso. Ela o abraçou com carinho e murmurou algo que a princípio ele não compreendeu. A figura feminina parecia gostar dele. Sentia o carinho a exalar juntamente com o perfume suave que trazia colado ao corpo.  Reconhecia esse perfume. Queria retribuir aquele sentimento forte, mas não conseguiu.
Não sabia quem era ela.

Pior. Não sabia quem ele era.

XVI

— A Caixa, a Caixa! — gritou num momento de súbito desespero, ao se lembrar de que a deixara para trás.

A mulher chorou e o abraçou. Ele sentiu-se em paz e adormeceu. Quando fechou os olhos, viu, na linha do horizonte, a chuva de raios a iluminar um céu longínquo. E desceu, mergulhando com destreza e rapidez para o fundo do mar. Sabia que a Caixa devia estar ali em algum lugar. Podia senti-la, havia algo que os ligava fortemente. Então somou todas as forças que lhe restavam e desceu cada vez mais fundo… Sem dificuldades, viu o seu tesouro de madeira à espera de seu resgate…

Sentiu o peito formigar, como se houvesse pequenos dedos dentro de si a lhe fazer cócegas. Uma faísca saiu da caixa. Ele calmamente se deixou acalmar e chegou enfim até ela. Abraçou-a antes de os olhos ganharem a opacidade fria da morte.

XVII

Na sala clara, ele via – do teto – seu corpo sobre uma cama. Homens de branco afastaram a mulher que o abraçara. Depois os choques, que fizeram o corpo na cama trepidar, apenas lhes fizeram cócegas dentro do peito: e um apito contínuo preencheu os segundos. A Morte sorria, espreitando-o no canto do quarto. Ele a encarou, sem demonstrar medo e desfaleceu.

Os homens se foram, assim como os marinheiros cuspidos dos barcos. Um deles, de olhos muito azuis, fitou o corpo morto antes de cobri-lo com um lençol branco. Havia uma ruga de perturbação naquela fronte ainda jovem.

E tudo ficou calado até que o riso barulhoso da Morte passou a chacoalhar as marolas espumadas: elas traziam o náufrago e sua Caixa parcialmente rompida para a borda da praia.

XVIII

Soluços. A mulher o abraçou e por muito tempo ficou a chorar, tocando seu peito molhado sobre o corpo sem vida.

Ele sentiu então uma ternura vívida a invadi-lo por inteiro. Sentiu a vida muito mais forte: amava aquela mulher. Então suspirou com uma dor maior do que a que sentira há pouco: e o véu, feito de água salgada, deixara-o sobre a areia fofa: ali estavam o grande amor de sua vida, seus filhos, sua loucura presente…

Contudo, sabia que a Caixa valia mais do que toda sua vida inteira, que a sua felicidade naquele momento…

XIX

Agora estava com ela, a Caixa. Poderia abri-la, de verdade, enfim…

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Este Conto é de autoria de Sandra Datti. A reprodução neste blog foi devidamente autorizada pela autora.

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 17 de agosto de 2013 por em Contos Off-Desafio e marcado .