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Dedico este conto ao ator Wagner Moura
Sua mão estremeceu. Os tremores não eram novidade e tinham mais de um significado. Vinham a consumindo de pouquinho em pouquinho, esses sacodes e as névoas de confusão que os acompanhavam. Mas também a avisavam que, quisesse mesmo o que tinha atravessado meio mundo para alcançar, seu tempo estava acabando. Ali, sentada em um banquinho bambo num boteco sujo a que o plenilúnio esclarecia mais do que as fracas luminárias do recinto, ela estava defronte àquele que vinha perseguindo. Seu acompanhante estava sentado ao seu lado, mas deitado sobre a mesa, um braço estirado de um canto a outro da superfície enquanto o outro pendia ao lado do corpo.
Teodora deixou de mirar o grupo zuadento no outro lado da sala. Inclinou-se até alinhar seu rosto com o do seu parceiro de mesa. Os olhos dele estavam abertos. Mais do que isso: contra o que indicava a palidez iluminada pelo suor frio, ele estava acordado. Precisou se aproximar de seus lábios acinzentados para escutar o que ele dizia.
— A cura… você me prometeu a cura…
Correu os dedos entre seus cabelos, num afago que também o punha firme em suas mãos. Com uma torção suave o virou para si. Meio erguida, seu rosto se tingia da prata lunar. Teodora encenou o seu sorriso mais cálido.
— E não passa de hoje, meu amor — apontou com o queixo — está com ele.
Em sua exaustão, o moribundo só virou os olhos, agitados de confusão ao divisar quem ela indicava. Eram pelo menos dez homens embaralhados em cadeiras ao redor de duas mesas juntas. Naquela noite o boteco, chinfrim, mas amplo em seu espaço, estava praticamente vazio. Eram aqueles dez, Teodora com seu doente e mais alguns transeuntes passageiros. Até entravam casais que, constatando o agrupamento, ensaiavam uma saída estratégica. Não era por menos. Para além de encorparem o coletivo mais volumoso, os patifes faziam a sua noite aos brados que ora pareciam gargalhadas, ora insinuavam o princípio de um arrasta faca. Um olhar atento — e ninguém prestava mais atenção do que Teodora — reconhecia as cartucheiras, as muitas lâminas meio escondidas, as costuras coloridas e estreladas, os lenços todos do mesmo vermelho sangue… um bando. Zé Pernambucano à ponta da mesa, bebericando e rindo, esmurrando a mesa e insultando, assediando a moça que levava as bebidas e ameaçando. Sequer havia notado Teodora e o homem quase desfalecido na mesa do outro lado. Para o bandido, o boteco era dele.
De fato, um infeliz trio pé-de-serra calhara de tocar no dia de sua visita e agora tocava às ordens do que Zé Pernambucano mandava interpretarem. O sanfoneiro, coitado, tocava com dois dedos de um dos pés a menos, tirados a papoco de um dos revólveres do bando. Um deles havia sugerido que o sanfona tocasse dançando. Sapateou devagar demais. A promessa de uma segunda bala na cabeça o manteve tocando, dançando, seguido por seus parceiros zabumba e triângulo. Mas um ouvido aguçado reconhecia o medo na música. Quem havia sobrado ali dentro temia sair. Ninguém nem levantava. Um dos homens do bando intimou a moça que levava os copos de cerveja a dançar. Falou como convite, mas era ordem. Os parceiros atiçaram com profanidades gritadas e gargalhadas. Declaravam aposta sobre aposta do que podiam fazer e do que fariam melhor com ela.
Sua mão estremeceu. Teodora respirou fundo. Encostou a mão no cabo do seu punhal, sentiu o estriado do couro. Livre do espasmo, um movimento rápido de seu dedo desalojou a lâmina da bainha. Afastando-se um pouco da mesa, viu correr pelo aço o lume daquela noite de lua cheia. Assentiu com a cabeça. Para si mesma? Para Glorinha. O rosto da filha estava consigo ao se levantar. Estivera consigo na noite que havia abandonado a casinha conservada por décadas para começar sua caçada. O rosto de Glorinha — ainda menina, pura, tudo pela frente — estivera consigo quando desceu o seu corpo dependurado, violentado pelo bando de Zé Pernambucano. Meses separavam o ataque dessa morte arranjada pelas próprias mãos. Mas o ataque ao corpo se perpetuara na mente da mocinha. Glorinha, sua filha amada, sua filha morta.
De pé, Teodora mantinha uma mão em seu punhal. Com a outra, apertou a mão do seu acompanhante, ele todo moleza por cima da mesa. Os olhos embaçados do homem combalido suplicaram, os lábios secos até chisparam um “não”, mas Teodora já havia dado as costas. Apanhou uma caneca meio cheia na mesa ao lado, fingiu um passo bêbado e sorriu abobalhada, balançando a cabeça para cima e para baixo como quem aprova qualquer coisa. Ia na direção do par trágico, um dos homens do bando se apertando contra a servente. A dança era ele avançando e ela recuando. Predador e presa. Os primeiros que notaram a sua aproximação chamaram a atenção dos outros com piadas. Falavam da velha. Falavam da velha bêbada e feiosa que tropegava perto deles. Desafiavam uns aos outros sobre o que fazer dela.
Teodora fez que não ouvia. Dos seus tropeços emendou uma dança ridícula na qual sua caneca era seu par, a cerveja quente caindo em rompantes sobre o seu punho, o que pouco a pouco foi se tornando a diversão do grupo. A farsa do seu olhar ébrio era também o esforço de não mirar Zé Pernambucano nem de soslaio. Temia que seu ódio se manifestasse antes da hora. Não ocorreu. Pelo visto, o chefe do bando só a percebeu quando um de seus homens a tirou para dançar. A catinga do patife era toda a caatinga que atravessara até ali. Mas o acompanhou com uma alegria alucinada, uma dança tropeçada. Estava surpresa consigo mesma. Nenhum tremor. Todo o controle sobre aquele descontrole dissimulado. Ao fim da dança, os outros fechavam círculo ao redor, a pobre da atendente pôde fugir e o trio até tocou mais enérgico agora que o sadismo do grupo mudara de foco. Quando Teodora e seu par se separaram, ela se dobrou numa mesura que foi quase cair pra frente. Levantou a cabeça e seus olhos se alinharam com os de Zé Pernambucano.
— Minha nossa, meus zói de véia tão me enganando? Vosmicê é Zé Pernambucano?
Os homens abriram a boca. Uma uníssona e longa letra “o” de incredulidade. Entreolharam-se antes de se virarem, um de cada vez, em direção à chefia.
— Ao seu dispor, minha senhora.
— Avemaria, que homi gostoso é bom, mas gostoso e famoso? Aí é dádiva!
Gargalhadas. Batidas na mesa. Um se engasgou e os demais riram dele. Zé Pernambucano riu também. Mas só depois dos outros. Observou-a antes de se permitir apreciar o gracejo.
— Agradecido, senhora. Lisonjeado… mas num leve a mal, é que a véia lembra minha mãezinha-querida-que-deus-a-tenha. Não te olho por outro lado.
Os olhos dele pousaram em um ponto atrás dela e Teodora soube que encarava a servente. Sua saliva desceu grossa como um bolo na garganta. Sentiu os lábios secos, as duas mãos se sacudiram num movimento breve, mas desconcertante. De repente, o alvoroço de sua dança pesou em seu corpo e a periferia de seus olhos assombrou. Balançou a cabeça e agitou as mãos moles em um x que tesourava.
— Não, não, não, chefe! Não é nada disso! Até porque, cá entre nós, camaradas… — abaixou a voz, deixou as palavras flutuarem e fez bico como se ponderasse a confissão de uma sem-vergonhice. Pairou o silêncio, até o trio cessou sua música, o bando todo se inclinou pra frente, exceto por Zé Pernambucano, que lhe ergueu uma sobrancelha de dúvida. Teodora se lançou pra frente com um sorriso travesso — este xibiu aqui já tá foló e se vem um de vocês vai precisar de um comparsa pra preencher!
Do gole cuspido de um, choveu cerveja sobre o silêncio do grupo. Depois as gaitadas. Riso de pôr homem grande no chão com a mão na barriga. Um dizendo “me mijei, porra” e o outro dizendo “ele se mijou, caralho”. A algazarra era geral. No balcão o dono do lugar assistia apreensivo. Pela janelinha na parede Teodora avistou a servente correndo, atravessando a estrada e sumindo na escuridão da mata. Num olhar de esgueira divisou seu parceiro de viagem convulsionando sobre a mesa até o corpo se dobrar para trás, largando-o quase deitado no encosto da cadeira. Voltou-se para Zé Pernambucano e desalojou o punhal da bainha. A lâmina alumiou a lua cheia, captando a atenção de todos.
Desa vez, o bando alongou a letra “u”. Elogiaram a lâmina, palpitaram o valor do metal. Zé Pernambucano cruzou os braços. Apontou um polegar para o próprio peito.
— A senhora trouxe pra mim?
Ela estirou uma mão e a virou pr’um lado e pro’outro.
— Mais ou mens, mais ou mens… veja, o sinhô me entenda, mas nós mulher fica assim de tocaia e ouve as histórias dos homi… e aí é claro que chega nos ouvidos o nome dos tipo do sinhô. Então imagine cá eu, que cresci num açougue e de cutelagem eu entendo, quando fico sabendo que tem um tal de pernambucano matador e rasga-bucho. Que entende de corte!
O bandoleiro meneou a cabeça devagar, os lábios comprimidos de quem se impacienta.
— Aí tava ali mais meu filho, tadinho, doente de dar dó… e te reconheci. Num aguentei, vim prestar homenagem… e fazer um convite, se o sinhô perdoa.
Silêncio. Ela sorriu, mostrou-lhe o topo da cabeça, enterrou-a entre os ombros. Apontou-lhe o punhal e o balançou.
— Um desafio. Um teste de habilidades… o sinhô e eu, sabe? Eu sei de tudo um todo de facas. Painho ensinou, mas nunca tive pra quem mostrar… como o sinhô é autoridade, seria uma honra pr’essa véia aqui fazer uns truques com o sinhô.
O bando havia gostado da ideia, é claro, como demonstravam com alarido e provocações. Mas Zé Pernambuco estalou os lábios, estapeou o ar e virou o rosto. Disse que ela estava bêbada, que procurasse o que fazer que ele tinha coisas para resolver. O bandido voltou a olhar ao redor. Teodora soube que procurava pela menina. Virou-se para um dos homens, que vinha a ela como se fosse abraçá-la. Ela também estendeu os braços, os ombros altos como se consolasse a si mesma. Abraçou-o e em um movimento delicado desembainhou a faca do sujeito. Um dobrar de pulso rodopiou a arma numa volta completa, retornando o cabo para sua mão, agitando os que acompanharam a manobra. Ela o rodou mais uma vez, mas dessa vez seus dedos pinçaram a faca pela lâmina. Virou-se para onde estava Zé Pernambucano, levou a arma ao lado do rosto e num arremesso a fez girar até encontrar a parede logo ao lado da orelha do chefe do bando. O brecar do metal na madeira solapou toda a zoada. Teodora sorriu. Zé Pernambucano ficou de pé num salto, revólver na mão.
— Tá maluca, véia?
Alguns dos homens silenciaram, acautelando um olhar observador, enquanto os mais chapados gritaram e saltitaram, estapeando uns aos outros como se tentassem se chamar à realidade do que havia acontecido, inclusive aquele de quem retirara a faca, para quem a bainha vazia era o maior entretenimento. Teodora voltou a estender os braços.
— Oxente, ômi! Num falei? Sou boa de facas, menino! Vai: me diz que o senhor acerta como eu? Assim, de supetão?
Isso bastara. A algazarra voltou a dominar o bando, que ecoava a sua provocação aos gritos. Teodora jogou o peso para o outro pé e assim mudou de posição, disfarçando o olhar para seu parceiro de mesa. Não havia mais mesa. Em um de seus agitos o doente a havia derrubado, ele mesmo no chão, um bocado de espuma avermelhada acumulado no canto da boca, uma perna ainda sobre a cadeira. Preciso ser rápida.
Zé Pernambucano já havia devolvido o revólver à bainha e agora silenciava os seus homens com uma das mãos enquanto com a outra tirava a sua faca. Caminhou até onde Teodora estava como se cada passo lhe custasse, deixando bem à vista a insatisfação. Parou meio de costas para a parede e para os demais, também escondido da luz. Em seu rosto obscurecido Teodora reconheceu o ódio. E viu, também, que ele a percebia. Suspeitava. Com a mesma preguiça que havia andado até ali, o homenzarrão se virou, nesse lance enterrando a faca na parede, logo ao lado da lâmina que Teodora arremessara. O fincar da faca dele, enterrada três quartos na madeira, derrubou a sua, que se sustentava só pela ponta. Ele sorriu torto para o grupo e caminhou de volta ao seu assento, antes retirando a faca da madeira e devolvendo à bainha. Sentado, praguejou ao encontrar Teodora já sentada ao seu lado. Ela improvisou um bater de palmas, seu punhal prateado de luar ainda numa das mãos.
— Como é que os rico diz? Bravo! Bra-vô! Mas… — mais uma vez aquela palavra suspensa, aquele olhar rodando para a plateia, a expectativa pairando no silêncio — o sinhô faz isso?
Ela estirou a mão livre sobre a mesa, os dedos esticados e um pouco afastados uns dos outros. Bateu a ponta da faca entre cada um dos espaços entre os dedos. Primeiro devagar e então cada vez mais rápido, excitando seu público de ladrões, estupradores e assassinos à máxima aclamação. Quando recolheu a mão para si mesma, os sujeitos imploravam ou intimavam seu chefe à prova. Com um suspiro cheio de má vontade, ele retirou a lâmina e repetiu o truque ele mesmo, seu olhar irado cruzado com o de Teodora. Mas naquele momento ela deixou que a recíproca se provasse. E o bandido viu, já tarde demais, que o ódio da velha era muito maior. Que era um rancor de história mal-acabada entre os dois, da trilha de sangue que ele havia deixado e que ela seguira. Sangue que não saiu dela, mas que era dela também. Sua bebice de atriz evanescia e sua vingança transparecia pela primeira vez.
Teodora foi rápida. Emendou uma surpresa na outra, em um movimento rápido deslizando a lâmina de seu punhal entre o lábio superior e a gengiva dele, enquanto a outra mão, certeira, hábil, correu por entre seus dedos frouxos e retirou a faca da mão dele. Aquela, Teodora levou até a sua jugular.
— Põe as mãos na mesa, canalha, que um assassino que nem você só presta pra deixar a faca amolada e eu sei que uma pressãozinha aqui… — a lâmina do pescoço empurrou para frente e ele quis ir para trás, mas seu punhal começando a romper o interior de seu lábio o manteve no lugar. Zé Pernambucano soltou um gemidinho patético — gane, cachorro… pode ganir. Mãos na mesa pr’eu não me banhar no seu sangue, filho da puta. Se algum homem seu ainda é dono de si, sabe que se mexer comigo é mais fácil você morrer primeiro. Manda tudo ficar pianinho e aqui onde posso ver. — aquele olhar idiota. Assustado. Ela gostava disso. — Vamos! Mande! — O susto o fez saltar, atravessando um pouco mais do punhal dela pela sua boca, um filete de sangue disputando com a luz prata da lua na superfície do aço da lâmina.
Ele obedeceu e o bando foi se enfileirando entre eles e onde antes estava o trio pé de serra. Aos poucos tinham saído todos, o balconista, os músicos, os passantes que viam que a coisa ia ficar feia. Os criminosos enfileirados contemplavam a situação embasbacados, como se não conseguissem acreditar no que viam. A ordem seguinte Teodora gritou direto para eles que, receosos, só obedeceram quando o chefe os ordenou com aquela pronúncia engraçada que só alguém com uma faca na boca emite. Os bandidos puseram seus revólveres e lâminas no chão um por um, chutaram-nos para perto da mesa, onde a mulher rendia o homem. Os olhos do facínora caíram sobre ela.
— Q’eh a vé-a ac-ha q’eh v’ah acon’ecer?
Ela girou os pulsos de leve, dobrando o homem como um boneco em sua direção. Seus olhos ficaram próximos.
— O nome da minha filha era Glória. Você destruiu o seu corpo e a sua mente e ela morreu por sua causa. Esta é a minha vingança. Você e todos do seu bando não viverão além desta lua cheia.
Num movimento, revirou seu punhal para o fio da navalha alinhar-se de todo com seu lábio, enquanto empurrou a faca contra o seu pescoço. Do reflexo dele de ir para trás, a lâmina dela partiu a parte de cima da boca do assassino em duas partes. Ele sufocou o grito com as duas mãos e, meio tombado para trás, Teodora conseguiu empurrá-lo para o chão, aproveitando do golpe para se lançar para trás. Desse impulso, tropegou alguns passos até cair diante do homem que a acompanhava havia semanas, receoso das noites e esperançoso por uma cura que inventara para ele. Caiu sobre os joelhos e se dobrou sobre ele. Aqueles olhos, por debaixo da opacidade amarelada da enfermidade, ainda transpareciam horror. Porque ele finalmente entendia. Teodora disse para si mesma que não se permitiria sentir, mas sua voz embargava com o princípio de um choro:
— Às noites ele pode ser homem ou criatura, mas quando o luar platina o breu, não tem o privilégio da escolha… — segurou a parte detrás de sua cabeça, que ele tentava afastar, pôs a lâmina embaixo de seu nariz. Uma lágrima escapou do olho dele como outra também corria pelo dela. — Fareje, minha besta. Este é o seu faro. Esta é a sua presa!
Atrás deles dois os homens se atrapalhavam entre acudir o chefe ou se armar para cima dela. Zé Pernambucano os restringia, sua voz chafurdava ameaças através do sangue que enchia sua boca. Um barulho rouco e constante avolumou até suprimir o barulho do grupo. Teodora contornou o corpo caído de seu companheiro, rastejou até dar de costas com a parede, abraçou os próprios joelhos. Apenas seus olhos marejados podiam ser vistos. Na sua frente, o corpo do doente se sacudia e revirava, largando em ângulos estranhos que não conformavam à anatomia de um homem. Para cada novo ângulo o craquelar de ossos quebrando e se rearranjando. Escapava-lhe da boca um rosnado que borbulhava sangue conforme seus dentes se fragmentavam e dessa ruína óssea presas afiadas rasgavam a carne da mandíbula que se redesenhava.
O amarelado dos olhos se abrira conforme o branco sumia e o ouro lupino enchia a superfície das órbitas oculares. Avantajado, o corpo rompeu a roupa e a nudez do sujeito já era mais animal do que humana. As unhas romperam e da carne inflamada garras longas e afiadas captaram em suas pontas a luz da lua cheia que trazia a besta. Os homens tinham esquecido Teodora. Mais uma vez armados, berravam e apontavam suas armas trêmulas para o sujeito. Ela se jogou para o lado para escapar da linha de fogo quando a chuva de balas começou a varar sua criatura. O monstro ganiu e rugiu, odioso, mas o tiroteio o revirava pela potência das balas e sequer havia se levantado, remexendo no chão, atingido e ferido. Teodora sentiu o metal abrir sua carne, mas não desviou o olhar, observando atentamente o homem — agora o animal — que havia manipulado até aquela noite. As balas cessaram e veio uma quietude angustiante de quem não tinha o que dizer diante do inacreditável. O monstro levantou e todas as balas que o cravejaram rolaram por sua pelugem ensanguentada, enquanto a carne se restaurava para compensar os seus rombos, os ossos se religavam, o tecido se recosturava sozinho.
De pé, a besta era maior do que qualquer um do recinto ou do que qualquer homem que já havia visto. Sua anatomia híbrida reteve em si o brilho do luar e absorveu todo o salão em sua sombra. Havia despertado com o aroma férreo de sangue fresco e com as propriedades que só o seu faro reconhecia e atribuía à sua presa. Mas aqueles homens o atacaram, romperam sua carne, e por isso agora também eram os seus inimigos. Nenhum deles foi rápido em recarregar, disparar, atacar ou fugir. Os movimentos da criatura não eram os de qualquer animal que conhecessem. Afinal, ele não era mesmo um animal. Era outra coisa. O que fosse, os matou um a um, pedaço por pedaço. Zé Pernambucano foi o único que ele devorou. O homem até tentou lutar, mas uma mão que levantou foi um braço que perdeu e de resto o monstro o fincou no chão com suas patas e todo o seu peso. Banqueteou. Devagar. Naquele lugar que era música, barulho e perigo, o silêncio da madrugada só era rompido pelo som de ossos quebrando, carne rasgando, o jorrar e respingar de sangue fluindo.
Teodora, de quem o próprio sangue também esvaía, não rompeu o contato visual com a cena ou com o seu inimigo, cujos olhos apavorados cruzavam com os seus em uma súplica. À sua maneira, Teodora também banqueteava. A sua vingança durou até a manhã, quando a escuridão se diluía na luz da alvorada. O ritual de transformação em homem não foi menos asqueroso e assustador do que aquele no sentido contrário. A diferença, entretanto, é que do corpo da besta emergiu um homem renascido. Nu, coberto em sangue, corado pela saúde eterna que a sua maldição o concedia enquanto cumprisse o pacto de sangue a que as noites de lua cheia o obrigavam. Ele estava de joelhos, arfava, levava a mão à boca. Era gosto de carne humana o que sentia. As lágrimas correram seu rosto rosado. Engatinhou até Teodora. Ela é quem estava pálida, agora. Segurou-a pelo colarinho, seu puxão era forte o bastante para quase levantá-la do chão.
— Sua mentirosa! Você me prometeu a cura!
Ela o tocou no rosto. Seu primeiro gesto genuíno. Um pedido de perdão na palma da mão que o tocava. Ela pronunciou suas últimas palavras.
— Foi a cura para mim.
Ele deixou o corpo sem vida dela tombar para o lado. Nu, pincelado em rajadas do sangue de todos os cadáveres dali, caminhou até a porta do boteco, sentou-se na varanda. A beleza daquela manhã nada dizia dos horrores da madrugada. Mas ele sabia. E saberia. Sempre.
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