EntreContos

Detox Literário.

Satélite – Conto (Giselle Fiorini Bohn)

– Eu gostaria que a senhora falasse sobre o aspecto premonitório da literatura. Esse é um assunto interessantíssimo… Tantas coisas foram previstas na literatura… posso, como exemplo, citar Sinclair Lewis em 1935 descrevendo a ascensão de um populista idêntico a Trump… ou, aqui mais perto de nós, o Brasil distópico das obras de Inácio de Loiola Brandão… são tantos os exemplos… realmente um tema muito intrigante… poderia nos dar sua contribuição?

Ela tinha a cabeça apoiada na mão direita, mas se endireitou quando ele parou de falar. Levantou os óculos, esfregou os olhos e inspirou profundamente. Sua cabeça latejava enquanto todo o salão aguardava sua resposta. Expirou, e repousou as mãos sobre a mesa.

– Não vejo nenhum aspecto premonitório na literatura.

Ela suspirou novamente. Já estava naquele pequeno auditório há horas, respirando aquele ar parado, sentindo o cheiro de mofo daquelas cortinas de veludo que estavam ali só de enfeite, sem saber se lá fora fazia sol ou se havia chegado o apocalipse. Horas ouvindo, falando, lutando contra o cansaço, o sono e essa dor de cabeça. Sinclair Lewis? Quem é esse? Quem se importa com essa merda toda? Queria sair dali, comer um pão com manteiga, tomar um comprimido, não mais ouvir ou falar, dormir, talvez. Não queria mais nada daquilo. Não gostava das pessoas, dessa atmosfera reverente, do ar solene, de toda essa presunção. E “senhora”? Ela tinha quarenta e oito anos, sim, já tinha virado senhora, mas ainda não conseguia se acostumar. Olhou para o lado, para o cartaz onde XI Encontro de Literatura estava impresso em uma fonte gótica horrível e irritante, e coçou de novo os olhos.

Demorou um segundo a mais do que ela esperava, mas a pergunta retornou:

– A senhora não concorda então com a premissa de que muitos autores parecem ter previsto o futuro?

– Não.

– Mas…

– Vivemos em um mundo limitado fisicamente. Se milhares de autores escrevem milhões de coisas, algumas delas vão se tornar realidade. Só isso.

– Ah, sim, mas o grau de semelhança de…

– O senhor sabe quantos presidentes de diferentes personalidades já foram personagens de livros?

– Err… não…

– Nem eu, mas imagino que muitos.

Uma tensão se instalara no ambiente, e ela sentiu os músculos se retesando.

– Mas a senhora tem que concordar que não pode ser mera coincidência quando…

– E não pode por quê?

Sua voz saiu mais rápida, alta e ríspida do que ela pretendera, mas já era tarde demais. Virou a cabeça para o homem na ponta da mesa, estupefato, todo olhos arregalados e boca aberta.

– Por que não pode ser tudo coincidência? Por que temos que sempre procurar um sentido, uma explicação, um significado para tudo o que acontece? Não é uma incrível, ou melhor, uma horrível coincidência eu odiar estes encontros e participar deles pra vender mais livros e ganhar a minha vida? Não é uma ironia do destino eu ter que ficar inventando análises sobre isso ou aquilo, quando eu detesto todas essas análises e essa porra toda?

Ela percebeu que soava estridente, quase histérica, e respirou fundo na tentativa de controlar o tom, mas ao mesmo tempo sabia que não havia mais volta. Isso já tinha acontecido antes; era quase uma possessão. Só lhe restava observar, de fora, a tempestade que se formava sem aviso e com fúria.

Todo o auditório se encontrava no mais absoluto silêncio. Ela desviou seu olhar raivoso do homem na ponta da mesa para o nada à sua frente. Ele não tinha culpa. Sua fúria empalideceu; a tempestade se foi tão rapidamente quanto chegou. Seus ombros tombaram, e ela mais uma vez inalou e exalou longamente. Da possessão só restou o transe.

– Vocês gostam de livros, não é? Vocês gostam de histórias. Pois eu vou contar uma história pra vocês…

Sua voz nesse momento saía baixa e lenta, como se uma reza, uma ladainha.

– Quando eu estava na sétima ou oitava série, havia um garoto que gostava de mim, um ou dois anos mais velho, eu acho. Eu devia ter uns doze anos. Ele era o menino mais desprezado da escola. Tinha um nome horrível, único, que dava vergonha só de ouvir. Era feio, desengonçado, usava uns óculos fundo de garrafa que deixavam seus olhos enormes. E, pra piorar, era o queridinho dos professores e dos padres. Sim, era uma escola católica, mas até os padres sorriam quando viam a adoração que aquele menino tinha por mim. Ele me mandava bilhetes, recitava poemas na frente de todo mundo, vivia me seguindo. Era meu satélite. Fazia questão de deixar claro pra todo mundo que me adorava. E eu? Eu só o ignorava, fingia que ele não existia, fugia, até eu perceber que só isso não adiantava. Então eu comecei a hostilizar o garoto abertamente. Falava para ele sumir, para me deixar em paz; ele se ressentia, mas não parava. Era um constrangimento que eu não sei explicar. O tempo todo eu ouvia minhas amigas rindo e zombando de mim, por ter aquele admirador nada secreto que todos achavam tão ridículo. E isso me tornava também ridícula por associação. Seu amor por mim me tornava patética; pelo menos era isso o que eu pensava que as pessoas pensavam. E aos doze anos a gente se importa muito, muito com o que os outros pensam. Eu só queria que ele sumisse. Não sei dizer quanto tempo isso durou, não me lembro. Só sei que um dia vieram as férias, e quando as aulas recomeçaram, que bom, ele não estava mais na escola. Aquele pesadelo tinha acabado. Nunca mais pensei nisso. E se passou um ano, talvez dois, não sei, e fui também para outra escola, ensino médio. Já tinha aí catorze anos, não era mais a menina também meio desengonçada de antes. Minha escola agora ficava no centro da cidade, escola estadual, podia entrar e sair quando quisesse, matar aula à vontade; vida nova. Era o início da decadência do ensino público, ninguém parecia se importar com nada. Eu estudava à tarde, um calor dos infernos, sempre uma mosca voando, o barulho do trânsito lá fora, bocejos sem fim, horas que não passavam, professores sem dinheiro e sem vontade. A escola era centenária; janelas imensas, portas altas, roseta de gesso naquele teto de quatro metros de altura, carteiras de madeira daquelas ainda com o buraco onde colocar o tinteiro; tudo velho e meio quebrado. Eu sempre colocava meus livros embaixo da carteira, e um dia esqueci um deles lá. O de matemática. Eu não sabia onde tinha deixado, pensei que talvez o tivesse perdido no ônibus. Nem liguei. Dois dias depois, no meio de uma tarde modorrenta, alguém bateu na porta da sala de aula. A professora foi com preguiça ver quem era, voltou e me chamou pelo nome. “Tem uma pessoa ali fora querendo falar com você”, e se sentou. Eu me levantei e saí. Não vi ninguém, até virar o rosto para a direita. Ele estava ali, encostado na parede, a alguns metros da porta, como se temesse que eu levasse um susto muito grande se o visse de perto. Eu o reconheci na hora, mas não disse nada. Ele não disse nada também por uns segundos. Então caminhou bem devagar até mim, e me perguntou se eu me lembrava dele. Eu disse que sim, e logo me arrependi. Seus olhos sorriram, e eu ouvi um suspiro de alívio. Ele estendeu as duas mãos, segurando um livro. “É seu, não é?”. Vi meu livro de matemática, a etiqueta com meu nome na capa. “Eu estudo nesta sala também, à noite. Eu me sento na mesma carteira que você,” ele disse. Eu não respondi. Ele segurava o livro sem tirar os olhos de mim, que agora sorriam em uníssono com os lábios. “Dá pra acreditar?”. Eu não sabia o que dizer. Ele não fazia nenhum movimento de me entregar o livro, e eu não sabia o que ele queria de mim. Eu só tinha catorze anos. Hoje eu sei. Ele queria que eu sorrisse e dissesse que, sim, inacreditável, não pode ser coincidência isso, imagine, você se sentar na mesma carteira em que eu me sento, entre as dezenas de carteiras da sala, e na mesma sala, entre as dezenas de salas da escola, e na mesma escola, entre as dezenas de escolas da cidade, justamente você e eu, que temos uma certa história, isso só pode ser coisa do destino, não pode ser só coincidência, como você está, uau, que coisa incrível, imagine só, a gente se reencontrar assim, parece coisa de filme, não é, a vida está nos dando uma segunda chance, não pode ser só coincidência, ei, a gente poderia conversar depois da aula, que tal? Mas eu tinha catorze anos e eu nunca gostei de sua presença e eu não queria saber como ele estava e eu nunca mais queria vê-lo de novo e eu não disse obviamente nada do que ele queria ouvir. Passaram-se alguns segundos, e o sorriso dele foi se esvanecendo, e então eu estiquei a mão. “Pode me dar?”. Ele ainda resistiu um momento, mas, derrotado, me passou o livro, que eu agarrei rápido e com força. Quero acreditar que eu ao menos o agradeci pela devolução, mas a verdade é que não me lembro. Não me lembro, juro. Eu acho que agradeci, eu preciso acreditar que eu pelo menos agradeci. Aí eu me virei, entrei na sala de volta, caminhei até minha carteira e me sentei. Pela porta entreaberta consegui ver que ele ficou parado ali, seus olhos devastados, gritando em silêncio um último apelo. Baixei o olhar e fingi estar escrevendo alguma coisa. Quando tive coragem de olhar para fora novamente, ele não estava mais lá. Eu nunca mais o vi. Eu sempre digo pra mim mesma que foi uma bobagem, coisa de adolescente. Uma bobeira. Não era amor de verdade, ele nem me conhecia direito, nem eu me conhecia direito. Com essa idade tudo parece importante, claro, mas não é.  Às vezes sonho com ele. Nas mais diferentes situações, eu o vejo de repente num canto, mas seus olhos não gritam mais nada; estão mudos. Será que ele ainda se lembra dessa história? Eu nunca me esqueci. A vida é esquisita mesmo. A gente fica tentando ver em tudo um sentido, uma explicação, um significado. Parece que tem que haver. Mas às vezes não tem nada, é só uma bobagem mesmo; é só uma coincidência. Foi só uma coincidência. Tem que ser. Foi só uma coincidência. Não foi?

Ela mantinha o olhar ainda fixo no vazio quando alguém na plateia se levantou e começou a bater palmas. Imediatamente todos também se levantaram, aplaudindo. Os outros palestrantes, ainda atônitos, também se levantaram para aplaudir, visivelmente aliviados pela súbita dedução de que fora tudo uma mera performance.

Foi todo aquele barulho que a tirou do estupor em que havia mergulhado. Não compreendendo a princípio o que estava acontecendo, ela olhou para a plateia e para seus companheiros de bancada, e baixou o olhar, o coração de repente escandaloso na garganta.

A ovação diminuiu até desaparecer, e todos voltaram a se sentar. Ela continuava fitando o chão, tentando imaginar o que seria aceitável dizer nesse momento, quando o som da voz do professor na ponta da mesa chegou abafado pelo sangue pulsando alto em suas têmporas.

– Sem palavras… este storytelling, esta maravilhosa capacidade de nos enredar na narrativa é justamente o que…

– Posso falar uma coisa?

A fala veio da terceira fila, à esquerda, rouca mas forte. O professor sorriu.

– Sim, claro… uma pergunta?

Um homem se levantou. Todos os olhos da sala se viraram para ele, menos os dela.

– Não, não é uma pergunta.

Ela levantou o olhar, mas não conseguia vê-lo direito com a luz do palco refletindo em seus óculos.

– Só queria dizer que, não, você não agradeceu.

E então ele se virou, passou com dificuldade pelas pessoas que continuavam sentadas na fileira, subiu as escadas acarpetadas e deixou o auditório.

10 comentários em “Satélite – Conto (Giselle Fiorini Bohn)

  1. Pedro Paulo
    17 de dezembro de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    A cadência da indignação dela vai iniciando uma aceleração da leitura que deixa muito fácil sentir a tensão que se instaura no auditório. Principalmente, prepara o leitor para prender a respiração quando ela começa a contar a história num só sopro. A voz protagonista é a verdadeira voz narrativa, ainda que esteja em terceira pessoa. É a que se sobressai.

    Além disso, esse retrospecto adulto sobre a adolescência, ainda mais passando pelas pequenas violências que são trocadas na vida escolar, ficam muito bem retratado e verossímil. Sinto como se tivesse visto isso hoje no trabalho. Muito bom, Gisele Bohn!

  2. andersondopradosilva
    15 de dezembro de 2025
    Avatar de andersondopradosilva

    Olá! Que felicidade ler você por aqui! Abraço!

  3. gisellefiorinibohn
    2 de novembro de 2025
    Avatar de gisellefiorinibohn

    Muito obrigada, querida! Que retorno lindo, e que surpresa! Ganhei o dia! 🙂

  4. claudiaangst
    2 de novembro de 2025
    Avatar de claudiaangst

    “Por que não pode ser tudo coincidência? Por que temos que sempre procurar um sentido, uma explicação, um significado para tudo o que acontece?” – às vezes, muitas vezes aliás, penso exatamente assim. Por que temos de encontrar sentido em tudo que acontece? Mas também, outras vezes (talvez nem tantas vezes), eu me pego dizendo – não acredito em coincidências. Por isso, o conto me pegou de um jeito surpreendente. É o contraste, a incostância da adolescente que ainda vive em mim.

    O final foi mais ou menos o esperado, porém eu contava com uma espécie de redenção do esquisito. Sua versão é a mais realista, com certeza.

    Um conto envolvente, sem dúvida, não dá pra parar de ler em um fôlego só. Um mergulho em águas tão familiares.

    Adorei as construções, a narrativa tão bem conduzida, a naturalidade dos diálogos, a vida estampada sem reservas.

    Parabéns!

  5. Kelly Hatanaka
    29 de outubro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Que conto incrível!

    E quanto você falou da personagem sem que nenhuma descrição precisasse ser feita. O tédio que ela demonstra, o jeito como ela fala, a história que ela conta dizem tanto sobre ela! Coisa de mestre isso aí.

    E o final, eu bem imaginava algo do tipo, mas é tão perfeito, um fechamento redondinho.

    Parabéns, Gi. Tava com saudade de ler seus contos. Escreve mais!

    • gisellefiorinibohn
      2 de novembro de 2025
      Avatar de gisellefiorinibohn

      Eu não tinha visto seu comentário… e que alegria você me deu agora! Parece que todas as vezes que desanimo da escrita alguma coisa aparece pra me chamar. Coincidência? A personagem e eu continuamos sem saber o que pensar sobre isso rs…

      Muito obrigada, querida, por esse comentário tão gentil! 🙂

  6. Gustavo Araujo
    17 de outubro de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    Ótimo conto! Destaque inicial para ambientação. Dá para sentir o calor, o desconforto, o total enfado da escritora diante da situação, do público, das perguntas que se repetem. A certa altura só faltou o mediador dizer que Os Simpsons vêm adivinhando o destino da humanidade desde 1988, prova irrefutável de que coincidências não existem kk

    Mas o melhor do conto, para mim, é a história contada a um só fôlego, a um só parágrafo. Quase dá para ouvir a voz da autora reverberando com todas as letras que coincidências são só coincidências e que mesmo que o Matt Groening tivesse feito um episódio com o Bart stalkeando a professora, ainda assim não teria nada a ver com a realidade da nossa protagonista.

    Confesso que antevi o final, porém. Imaginei que seria esse o único fim possível. Mas, de qualquer forma, não deixa de ser um arremate à altura do que foi construído. É forte e impactante até porque, com competência, dá vazão à expectativa do leitor.

    Por mais contos da Giselle aqui no EC.

    • gisellefiorinibohn
      2 de novembro de 2025
      Avatar de gisellefiorinibohn

      Ah, Gustavo… você sempre tão gentil! 🙂 Agradeço demais por tirado este conto do limbo, dando a ele uma nova chance de ser lido.

      Foi um presente imenso, em um momento de pouca inspiração e baixa energia.

      Muito obrigada, de coração. E vida longa ao Entrencontos. Um dia hei de voltar! 🙂

  7. cgls9
    16 de outubro de 2025
    Avatar de cgls9

    Uau!!!!

    • gisellefiorinibohn
      2 de novembro de 2025
      Avatar de gisellefiorinibohn

      Obrigada! 🙂

Deixar mensagem para cgls9 Cancelar resposta

Informação

Publicado às 16 de outubro de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .