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Detox Literário.

Costume de Findo – Poesia (Leila Patrícia)

Começou bebendo para dormir, continuou para existir.
O álcool deixou o copo, escorreu no ar.
Ele respirava tragos como quem respira casa.

As paredes pareciam inclinar-se, cansadas de vê-lo tombar.
O relógio seguia marcando derrotas que não pertenciam a ninguém.
A comida era ferrugem cuspida no canto.
A cama moldou o corpo ausente: mofo.

Só houve deriva.

Um copo a mais, uma promessa a menos.
Até que voltar perdeu sentido, porque já não havia onde.

As fotos encolheram no silêncio.
O sorriso recuou, os rostos das crianças ficaram planos, quase brancos.
A lembrança se dissolveu na mesma névoa pútrida do hálito.

Falava às vezes com o som da garrafa.
E o silêncio respondia, pontual. O nada, paciente, era o único a ficar.

A dor envelheceu.
Deixou de doer, não por cura, mas por esquecimento.
O afeto virou língua estrangeira.
O amor, reflexo gasto de nomes sem voz.

Uma manhã, abriu a janela.
A luz entrou, atravessou o corpo, saiu.
O ar parecia limpo, mas era só o vazio iluminado.

Deitou.
Ouviu risadas.
Tentou rir também, mas o rosto não lembrava o gesto.

O copo caiu — o mesmo som das coisas que desabam.
Ficou olhando o líquido no chão, a mancha crescendo,
lembrando o vinho de um casamento distante,
depois nada.

O fundo não é lugar.
É costume.
E ele já o mora há muito tempo.

5 comentários em “Costume de Findo – Poesia (Leila Patrícia)

  1. Pedro Paulo
    17 de dezembro de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Autodestruição é um dos temas que mais me impressiona e, ao mesmo tempo, assombra. Esses versos retratam as diversas facetas da solidão no vício: o hábito suicida, a perda de linguagem e contato, a falta de esperança… excelentes versos, Leila!

  2. Kelly Hatanaka
    29 de outubro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Uma linda poesia sobre o vício que vence a vida e o fundo do poço, que não deixa espaço para redenções.

    O tema é sombrio, mas suas palavras têm leveza lírica.

    Parabéns!

  3. Gustavo Araujo
    17 de outubro de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    Um poema pungente que bem retrata a realidade inescapável reservada aos derrotados pelo vício no álcool. Em certos momentos, me fez lembrar do clássico filme “Farrapo Humano”, do Billy Wilder, em que o protagonista, interpretado pelo Ray Milland, vai se decompondo à medida que a dependência da bebida avança. Triste e real, como aqui se vê.

    • leila patricia de sousa rodrigues
      18 de outubro de 2025
      Avatar de Leila Patrícia

      Obrigada pela leitura generosa, Gustavo.

      A referência a Farrapo Humano diz muito — há mesmo essa decomposição que o vício impõe, mas o que mais me interessava era o que sobra depois, quando até a dor se acomoda e o afeto já não reconhece o rosto.

      Fico feliz que esse silêncio também tenha te chegado.

  4. Gislene Gomes
    14 de outubro de 2025
    Avatar de Gislene Gomes

    Lindo!

E Então? O que achou?

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Publicado às 14 de outubro de 2025 por em Poesias e marcado .