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Detox Literário.

Vigrid é aqui – Conto (Leila Patrícia)

O primeiro sinal não foi o frio, mas o cansaço.
Não nas pernas — no pensamento.
Um silêncio denso, anterior às palavras.

Depois vieram os irmãos.
Um com arma. Outro com a crença de que a arma era um direito.
Mataram-se por nada. Ou por tudo.
Por um fio quebrado entre o afeto e a violência.
E se enterraram nos celulares, como se fossem túmulos portáteis.

As florestas arderam sem resistência.
Os mares subiram em revolta — não por ódio, mas por tédio de serem ignorados.
A serpente já não estava no oceano: estava na fiação.
Jörmungandr virou rede. E sua cauda se conectou ao próprio código.
Fez do mundo um círculo vicioso.

Fenrir saiu das páginas.
Agora morde em forma de manchete.
Devora manhãs inteiras enquanto as pessoas mastigam pão e culpa.
Não uiva. Notifica.

Loki está em todo lugar, com mil rostos e filtros.
Desinforma, diverte, divide.
Faz rir e matar com o mesmo clique.

Heimdall tenta vigiar as pontes, mas não há mais pontes.
Só muros, cancelas e senhas.

Thor levantou o martelo uma última vez.
Mas ninguém olhou.
Estavam ocupados, rolando a tela.
O trovão caiu no vazio, sem eco.

Odin observou.
Não de um trono — de um canto qualquer, onde os velhos veem o mundo acabar.
Sem pompa, sem exército, sem espadas.
Só com um olho cansado e o outro já fechado.

Vigrid não é um campo.
É o cotidiano.
É a escolha entre cuidar ou consumir.
Entre olhar ou desviar.
Entre levantar ou continuar sentado.

O mundo não termina com explosões.
Termina com entregas agendadas, contratos assinados, notificações lidas e não respondidas.
Termina devagar, disfarçado de progresso, quase celebrado como avanço.
E quando percebemos, já começou de novo — um ciclo silencioso, onde o peso do fim se confunde com o ritmo do cotidiano.

Yggdrasil treme.
Mas ninguém escuta.
Nem a árvore, nem o silêncio.

…………………………………………………
Nota de autora:

Leila Patrícia é professora e escritora. Escreve com a pele, o cansaço e a lucidez de quem não quer fingir que não viu. Suas narrativas transitam entre o cotidiano e o mítico, sempre na beira do abismo — e da beleza.

13 comentários em “Vigrid é aqui – Conto (Leila Patrícia)

  1. Leila Patricia
    18 de julho de 2025
    Avatar de Leila Patricia

    Oi, Gustavo!

    Sim, a ideia era essa mesmo: usar o épico pra cutucar o agora. Porque tem hora que o real endurece tanto que a gente só consegue dizer por metáfora. Inventei um campo de batalha antigo pra falar dessa guerra moderna, onde a gente apanha calado e ainda agradece.

    E essa sua aposta no ciclo da história… ah, que vontade de acreditar junto. Mas às vezes o ciclo parece um redemoinho, né? Gira, gira e a gente volta pro mesmo lugar, só que mais tonto.

    Obrigada por ter lido com cuidado. E por ter citado a Aline Bei, esse é um elogio que morde de leve. No bom sentido.

  2. Gustavo Araujo
    17 de julho de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    Bacana a ideia de utilizar a mitologia nórdica para falar de uma realidade que não é só do Brasil, mas de diversos países que se veem assaltados por uma ideologia fratricida, antiambiental e que visa a preservação de uma casta de privilegiados enquanto a maioria é domesticada por pão e circo. Reflexo dos nossos tempos e que, por ora, não parece arrefecer. O que me reconforta é saber que a história é cíclica e que, de alguma forma, mais cedo ou mais tarde, essa realidade míope há de ser superada. Perdão pelo otimismo, rs

    Quanto à maneira de passar o recado, vale dizer, quanto à escrita, gostei bastante. É um estilo que me fez lembrar da Aline Bei, que se parece com um poema mas que mantém a lógica de uma prosa. Por isso é mais eficiente em despertar o interesse e a curiosidade, até porque faz pensar.

    Parabéns pelo ótimo texto.

  3. Fabio D'Oliveira
    16 de julho de 2025
    Avatar de Fabio D'Oliveira

    Os mitos são reflexos da sociedade humana. Por isso, quando analisamos parte deles, encontramos semelhanças com a realidade atual do mundo.

    Isso mostra como alguns problemas são atemporais, universais. Parece uma tendência. Uma vacilada e pendemos para o Ragnarok, para o Apocalipse, para o Kali Yuga, seja qual for o nome.

    Parece que estamos sempre na beiradinha do abismo.

    O conto não entrega nenhuma surpresa em seu conteúdo, mas brinca com o leitor quando se trata da execução. A narrativa em prosa e o formato em versos, transitando entre a sobriedade e o floreio, entregou uma experiência muito legal. Gostei da leitura, apreciei-a. E esse é o fator mais importante, pra mim.

    Um texto com uma proposta simples, com uma leitura gostosa e com uma crítica relevante.

    • Leila Patricia
      16 de julho de 2025
      Avatar de Leila Patricia

      Oi, Fábio.

      Seu comentário me encontrou com precisão. Essa sensação de estarmos sempre à beira — de um colapso, de um silêncio, de uma repetição trágica — foi o sopro que guiou a escrita.

      O texto não quis dar grandes voltas no enredo. Era mais sobre o eco do que se repete e o modo como a forma pode ressoar esse vazio. Talvez por isso tenha escolhido essa cadência entre prosa e verso, entre sobriedade e floreio, como você tão bem observou.

      Fico feliz que a leitura tenha sido agradável — e mais ainda por ela ter deixado uma crítica pulsando ali por baixo da superfície.

      Obrigada pela leitura generosa.

      Leila Patrícia

  4. Pedro Paulo
    16 de julho de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Na segunda leitura dos primeiros versos encontrei o nexo entre a mítica nórdica e uma reflexão pessimista quanto aos rumos da contemporaneidade. Um Ragnarok silencioso, omisso nos pequenos gestos de cotidianos vazios. Não menos apocalíptico. A árvore cai sem que se perceba.

    Prosa que parece poesia, especialmente por não investir em recursos como diálogos, pensamentos, espaços ou tempos bem definidos, escrevendo a situação em versos que misturam o mito e o atual. Uma grande surpresa, gostei bastante!

    • Leila Patricia
      16 de julho de 2025
      Avatar de Leila Patricia

      Oi, Pedro Paulo!

      Seu olhar me tocou. Há algo de profundamente belo — e melancólico — na imagem dessa árvore que cai sem que se perceba.

      É exatamente essa sensação de ruído abafado, de fim em câmera lenta, que quis esboçar.

      Fico muito grata por você ter lido com tanta atenção e generosidade. Que bom que o texto o surpreendeu.

      Volte sempre.

      Leila Patrícia

  5. Leila Patricia
    15 de julho de 2025
    Avatar de Leila Patricia

    Escrevi esse texto num desses dias comuns demais — em que tudo parece funcionar, e justamente por isso dá medo.

    Quis falar de como a falência das coisas não vem com sirenes nem fogos. Vem com cliques, distrações e a normalidade anestésica do que chamamos de progresso.

    Misturei mitologia e cotidiano não para soar esperta, mas porque acho que já estamos nesse esvaziamento simbólico onde tudo se consome — até a linguagem.

    Obrigada por oferecer tempo a um texto em que o tempo escorre. Isso vale mais do que parece.

    — Leila Patrícia

  6. Kelly Hatanaka
    15 de julho de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Um texto poético sobre os tempos atuais, o isolamento e a superficialidade das redes sociais, usando de referências da mitologia nórdica.

    Muito bom!

    • Leila Patrícia
      15 de julho de 2025
      Avatar de Leila Patrícia

      Oi,Kelly!

      Fico muito feliz que tenha percebido esse cruzamento entre a mitologia e o modo como nos desconectamos em plena era da hiperconexão.

      O isolamento, hoje, já não exige paredes — basta o vício de deslizar a tela.

      Obrigada pela leitura e pelo comentário generoso!

      — Leila Patrícia

  7. Luis Guilherme
    15 de julho de 2025
    Avatar de Luis Guilherme

    Oi, Leila! Bem vinda ao EC !

    Otimo conto, uma narrativa poética e metafórica que brinca com o apocalipse nórdico, transpondo-o sobre a realidade atual do mundo, com seus elementos muito mais mundanos levando ao caos e destruição. Vigrid é aqui, e o Ragnarok está em andamento. Otimas analogias! Parabéns!

    • Leila Patrícia
      15 de julho de 2025
      Avatar de Leila Patrícia

      Oi, Luis!

      Muito obrigada pela acolhida e por captar essa tensão entre mito e cotidiano — essa transposição que me inquieta e fascina.

      É exatamente essa sensação de um “Ragnarok” que não explode em fogo, mas que avança silencioso, em pequenos gestos e distrações, que quis trazer.

      Fico feliz que tenha encontrado ressonância no texto. Vamos seguir atentos, né?

      Um abraço,

      Leila Patrícia

  8. Priscila Pereira
    15 de julho de 2025
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Leila! Tudo bem?

    Bem-vinda ao EntreContos! Espero que continue entre nós e participe dos desafios!

    Seu conto é poético, filosófico e metafórico, muito gostoso de ler e faz pensar na época em que estamos vivendo hoje, se é boa, se é má, se é progresso ou retrocesso, como estamos como espécie humana? Como iremos acabar?

    Gostei bastante! Parabéns!

    Até mais!

    • Leila Patrícia
      15 de julho de 2025
      Avatar de Leila Patrícia

      Oi, Priscila!

      Muito obrigada pela leitura atenta e pelas perguntas que você levanta — que são também as que me atravessaram enquanto escrevia.

      Essa dúvida entre progresso e retrocesso, entre o conforto e a ruína, é o que mais me inquieta: será que o fim chega mesmo como fim, ou ele se disfarça de rotina?

      Fico muito feliz com o acolhimento. Sim, quero continuar por aqui.

      Um abraço,

      Leila Patrícia

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Informação

Publicado às 15 de julho de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .