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Maus – Art Spiegelman – Resenha (Givago Thimoti)

Maus, de Art Spiegelman, é uma graphic novel serializada entre 1980 e 1991, que conta a história do pai do autor, Vladek, em meio ao Holocausto ocorrido na Segunda Guerra Mundial, além de pincelar a vida antes e depois do Holocausto. A HQ quebrou paradigmas da academia anglófona ao se tornar a primeira em vencer o Prêmio Pulitzer.

Antes de me debruçar sobre a resenha em si, é fundamental salientar que o livro possui cenas pesadas, um tanto quanto explícitas. Então, se for ler, saiba que terá pela frente alguns momentos de desconforto.

Bom, dito isso, pessoalmente, penso que a resenha (assim como a leitura) deste livro é uma resenha necessária. Não exatamente porque a história confirma o pessimismo de alguns europeus, temerosos por uma Terceira Guerra Mundial, mas porque ilustra o tamanho das marcas da Segunda Guerra nas populações envolvidas. 

Ganhei esse livro de uma amiga, quase três anos atrás. Depois de uma aula sobre História Social e Política Geral, no meu último semestre de faculdade, resolvi tirar o plástico que ainda o cobria. Ainda bem que o fiz.

Sendo bem sincero, essa resenha é uma das mais complicadas de se escrever. Maus é um livro complexo, com muitas nuances. Não que seja escrito (ou no caso, desenhado) de tal forma que seja difícil de interpretar. É um relato de difícil assimilação.

Duas coisas me impressionaram nesse livro.

A primeira é o quão fidedignos são os relatos de Vladek. Claro, só quem viveu sabe. Entretanto, é necessário ressaltar a capacidade de Art em transcrever os percalços que o pai e a mãe passaram. Se é difícil escrever em linhas, imagina desenhar a Segunda Guerra. Retratando animais ao invés de pessoas.

Pois bem, Art Spielgeman, por meio de seu jogo de luz e sombras, nos fornece um dantesco relance do que foi o Holocausto, abarcando até aqueles mínimos detalhes que vemos nos livros de história (escolares ou acadêmicos). 

O livro começa mostrando a vida dos pais antes da eclosão da Guerra, na Polônia. Vladek trocando uma namorada por Anja, o grande amor de sua vida e mãe de seus filhos. Conforme as famílias dos noivos estão alegres com o enlace, já que a união promove frutos financeiros. Entretanto, as notícias dos demais países europeus vão mostrando que os ventos da Europa apontam para o temor de uma nova Guerra.

Aqui, o contraste do jogo dicotômico entre luz e sombras começa a ganhar espaço. O sueco-estadunidense mostra o movimento dos grupos armados nazistas no início da Guerra, que partiram da Alemanha até a Polônia matando e caçando judeus, aprisionando-os em guetos dentro da Polônia. Paulatinamente, a Alemanha vai retirando os direitos civis dos judeus aos poucos dentro de seu território; primeiro os excluindo dos serviços públicos e outros ofícios. Então, os proibindo de se casarem. Por fim, tomando para o Estado Nazista os seus negócios e suas casas.

Vladek é uma testemunha ocular de todo esse momento. Ele e a esposa, por terem algumas posses, temem o momento no qual essa perseguição chegará até os dois. A vida segue em meio ao clima tenso da ocupação nazista. O casal precisa se refugiar na Tchecoslováquia para tratar uma depressão pós-parto. Contudo, eventualmente, eles têm notícias que seus familiares e/ou amigos vão sendo perseguidos.

O livro vai relatando todas as tentativas de fugirem do Estado Nazista, para então viverem nos guetos judeus, depois refugiados na casa de estranhos e, eventualmente, na vida em Auschwitz. Vladek, Anja e os mais diversos personagens que têm suas trajetórias retratadas em Maus são humanos tentando sobreviver. Logo, eles corrompem, traem, se unem para sobreviver, se arriscam para se salvar, escolhem opções duríssimas, sacrificando o que normalmente é inegociável. 

No campo de extermínio, Vladek explica como os nazistas transformaram o matar numa eficiente linha de produção, que dizimou incontáveis famílias. Desde o trabalho forçado até a exaustão para subsidiar os esforços de guerra até o funcionamento das câmaras de gás.

Todo esse relato pesado vai sendo feito e repassado para nós leitores enquanto testemunhamos a complicada relação entre Vladek e Art. É aqui que está o segundo fato que impressionou este leitor.

Neste movimento do filho-autor, que busca compreender o pai e a mãe (Anja cometeu suicídio quando Art tinha 20 anos) por meio de suas histórias, ele nos apresenta uma figura real, humana e sobrevivente. Sua visão não é idealizada. Não há qualquer pedestal; encaramos as dores de Vladek de frente, olho no olho e até mesmo, por vezes, de cima para baixo. Afinal, é a visão de um filho em relação a um pai sobrevivente de um dos maiores genocídios testemunhados pela História. Logo, percebemos a mágoa, a neurose e a intransigência de Art em relação às manias, ao jeito grosseiro e atropelado de seu pai.

Assim, transitando entre o passado e o presente, a partir dos relatos de Vladek e de sua visão enquanto filho, Art costura a vida retalhada em frangalhos de seus pais pela Alemanha Nazista.

Para concluir, eu definiria o livro, para além da biografia de um sobrevivente, como uma aprofundada visão quase antropológica sobre um pai capaz de personificar um ser humano num dos mais dantescos momentos da Humanidade. Leitura obrigatória!

Nota final: ⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️(5/5)

10 comentários em “Maus – Art Spiegelman – Resenha (Givago Thimoti)

  1. Luis Guilherme Banzi Florido
    9 de julho de 2025
    Avatar de Luis Guilherme Banzi Florido

    Faaalaa Givago! Excelente resenha, mano! Concordo muito com tudo que voce expressou. Essa é uma das HQs/Graphic Novels que eu mais gosto, e olha que já li muitissimas. Eu gosto de hqs de todo tipo, desde herois (hoje em dia leio muito pouco, a formula se desgastou bastante pra mim e hoje me limito àquelas que conseguem de algum modo sair da caixinha), até mangás, hqs historicas, documentais, etc. Essa impacta de um jeito absurdo. Machuca a alma. É impossível passar incólume por ela. E voce conseguiu retratar bem isso na sua analise. Se eu nao tivesse lido, teria despertado essa vontade. Obrigado por compartilhar algo tão relevante (e contemporaneo, infelizmente, afinal, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais). Abraço!

  2. Pedro Paulo
    7 de julho de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Neste ano, trabalhei o tema de “Imperialismo/neocolonialismo” com a turma da qual tenho mais atenção. Estou sempre tentando lembrá-los que os temas abordados não são isolados uns dos outros e se complementam. Muitas das barbaridades cometidas contra “inimigos” por regimes nazifascistas teve o seu ensaio nos avanços imperialistas sobre África e Ásia, realizados nas décadas anteriores. Quando trabalhei esses assuntos, além de chamar atenção para essa terrível continuidade, eu disse algo aos meus estudantes: que era necessário se aprofundar nesses eventos porque pode parecer surpreendentes ou mesmo impossíveis as coisas que um ser humano pode fazer com o seu igual. Mas acontece.

    “Maus” é uma obra-prima de muitos méritos, um deles sendo ilustrar a organicidade com a qual a lógica de carrascos e vítimas se naturaliza em uma sociedade, mesmo fora de um contexto de guerra declarada – vide que as leis segregacionistas começaram na Alemanha antes da Segunda Guerra e nos Estados Unidos havia leis similares desde o século anterior. Outro mérito da obra é o retrato que o autor faz de seu pai, como você mesmo apontou em sua ótima resenha – concordo que é muito desafiador abordar um trabalho como “Maus” – Vladek não é romantizado como um herói, mas retratado como um ser humano sobrevivendo e sobrevivente ao pior dos cenários possíveis, sendo extirpado e largando ele mesmo do quer que fosse necessário para poder viver. Assim, o texto reconstitui não só os eventos vividos pelo pai, mas as conversas entre pai e filho, mostrando como Art tinha muita dificuldade para conviver ou mesmo conversar com o seu pai às vezes. E também mostrando como o próprio Vladek caia em contradições, reeditando o preconceito que ele mesmo sofrera o dirigindo a outras comunidades.

    Dos possíveis inícios que poderia selecionar, Spiegelman decidiu por ilustrar uma cena de sua infância, em que choramingava ao pai ter sido trapaceado por uns amigos em uma brincadeira. Vladek responde irritadiço: “amigos? Coloquem-se em uma sala sem comida e água por uma semana e saberá o que é um amigo de verdade.” Para além de demonstrar vividamente o mal que uma pessoa pode infligir a outra, esse HQ nos alerta ainda para outro aspecto: o que nos separa da selvageria é tão somente as condições em que nos encontramos. E pode ser assustador medir do que somos capazes ou, ainda, daquilo que somos incapazes e cuja incapacidade poderia custar a nós e àqueles que amamos até mesmo a vida.

    É uma obra muito humana, apesar dos personagens serem retratados como ratos, gatos, porcos e cachorros. Parabenizo pela coragem em resenhá-la, companheiro, como concordamos acima, a análise é um desafio!

  3. André Lima
    27 de junho de 2025
    Avatar de André Lima

    Muito legal sua resenha, Givago. Eu nunca consumi uma Graphic Novel. E aí vem a minha dúvida, ingênua, de um nunca-consumidor: qual a diferença de uma graphic novel pra uma história em quadrinhos? Existe uma narrativa em prosa que se alterna com as imagens, é isso? Ou tudo que é dito está dentro das imagens, como numa HQ?

    Tive vontade de ler, vou até procurar na Internet este livro. Embora o tema “segunda guerra” não seja dos meus preferidos, a maneira como foi abordada aqui me instigou.

    • Givago Domingues Thimoti
      27 de junho de 2025
      Avatar de Givago Domingues Thimoti

      Então, pelo que pesquisei na época, a maior diferença é que as HQs são histórias mais longas, quase intermináveis, sem uma estrutura narrativa similar a de um romance. Por exemplo, A Turma da Mônica que tem incontáveis arcos, personagens, sem início, meio e fim. Calvin e Haroldo, DC, Marvel…

      Graphic Novel, por outro lado, são romances contados em forma de quadrinhos. Tem uma estrutura início/meuo/fim. Podem ser serializadas, isso é, publicadas num periódico. Assim como podem ser publicadas de uma forma mais única, como num livro.

      Muito obrigado pela leitura!

  4. Alexandre Costa Moraes
    25 de junho de 2025
    Avatar de Alexandre Costa Moraes

    Vou começar pelo final da sua resenha: também acho que Maus é uma leitura obrigatória. Li faz uns 5 anos, quando um amigo do trabalho, o Pig Neto, me emprestou, dizendo que eu ia curtir muito, já que gosto de textos fortes e de histórias de conflitos históricos. Hoje, tenho certeza que esse livro é muito mais do que só relembrar uma tragédia da humanidade -ele mostra como a desumanização acontece de um jeito sutil, persistente e cruel. E também fala sobre uma relação familiar tensa e complicada, marcada pela sobrevivência no meio do Holocausto. No livro, os judeus são desenhados como ratos, os n4zistas como gatos, os americanos como cães e os poloneses como porcos. Isso não é só uma metáfora forte, é uma denúncia clara de como regimes totalitários transformam as pessoas em estereótipos, em animais, em inimigos, em presa e predador. Tem racismo, tem violência, tem tudo isso contado com muita honestidade e realismo, sem apelar para o sentimentalismo. As ilustrações ajudam a gente a entrar no contexto da época, como se fosse um flash da memória de quem viveu aquele caos. E ainda usa símbolos de um jeito muito inteligente.
    Mesmo depois de tanto tempo, Maus continua impactando, principalmente agora, com o avanço da extrema-direita na Europa e América (EUA), o aumento do preconceito contra imigrantes (principalmente africanos e muçulmanos, e Latinos nos EUA) e políticas que excluem pessoas, disfarçadas de pragmatismo político e religioso. Isso deixa claro que a leitura do livro continua urgente.
    A retórica ultranacionalista, o fechamento de fronteiras, a falta de políticas de integração para imigrantes, a perda da empatia… tudo isso são sinais perigosos. O livro do Art não é só um retrato do passado, é um espelho quebrado do presente. Ele mostra como o colapso moral começa quando a gente para de enxergar o outro como humano. E, infelizmente, parece que estamos vendo isso acontecer de novo. Nesse cenário, trazer essa leitura a tona é muito necessária. Parabéns pela resenha.

    • Givago Domingues Thimoti
      25 de junho de 2025
      Avatar de Givago Domingues Thimoti

      Olá, Alexandre! Tudo bem?Obrigado pela leitura e pela resposta. Você colocou em palavras tudo que eu queria tentar expressar. Como resenhas são diminutas, geralmente, busquei escrever de um jeito mais resumido.

      Adorei esse trecho do seu comentário: “O livro do Art não é só um retrato do passado, é um espelho quebrado do presente. Ele mostra como o colapso moral começa quando a gente para de enxergar o outro como humano.”

      • Alexandre Costa Moraes
        26 de junho de 2025
        Avatar de Alexandre Costa Moraes

        pois é, cara, ali na Palestina e Faixa de Gaza tá cabuloso. E os poderosos – a ONU, etc estão fazendo questão de não enxergar um massacre (ou fazer vista grossa). Neste exato momento um novo Vladek, Art e famílias podem estar passando por uma versão desse drama humano. Muito triste.

  5. Kelly Hatanaka
    25 de junho de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Não sei se fiquei com vontade de ler, e isso não é culpa da ótima resenha. Conhecendo ou não a história, ela está fadada a se repetir e não parece que exista algo que possa ser feito. Angustiante.

    • Givago Domingues Thimoti
      25 de junho de 2025
      Avatar de Givago Domingues Thimoti

      Olá, Kelly! Tudo bem? Obrigado pela leitura e pelo elogio! Olha, ler as notícias internacionais sempre me deixam assim. Ganhei esse livro uns 3 anos atrás e eu enrolei essa leitura pelo mesmo motivo. Me surpreendi também com uma profunda visão de pai e filho, que foge daquela abordagem tradicional e idealizada. Foi uma grata surpresa!

      PS: a sensação de angústia é latente em parte do livro…

  6. Gustavo Araujo
    24 de junho de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    Num contexto em que o discurso extremista à direita ganha holofotes e eleições, a leitura de Maus é indispensável, já que demonstra, de modo quase didático, como pode ser nociva e deletéria a ascensão de figuras dispostas a contrapor “tudo o que está aí”, a resgatar “os melhores dias”, e a “fazer o país grande novamente”, tudo às custas da supressão de direitos e da condenação de minorias.

    De fato, o livro de Art Spiegelman choca não somente por contar essa história terrível mas por lançar a incômoda impressão de que estamos reencenando esse roteiro, em certa medida com inversão de papéis. Paulo Freire já dizia que na ausência de educação, o sonho do oprimido é tornar-se opressor e isso fica bem claro quando percebemos que a história do nazismo, de Vladek e sua família, se repete em Gaza, como demonstrado por Joe Sacco (outro quadrinista de talento) no igualmente perturbador “Palestina”.

    Como mostra o autor, pessoas são reduzidas à condição de animais em louvor a mantras fascistas de superioridade racial, pincelados por um sentimento de autorização divina.

    Lamentável, mas a humanidade não parece ter compreendido a lição. Vivemos como um ouroboros, caçando o próprio rabo num ciclo vicioso onde hoje se lê Deus, Pátria e Família, com repercussões profundas que sequer podemos estimar.

    Excelente e oportuna resenha, Givago. Espero que outros leitores se inspirem e leiam a obra. Necessária, como disse.

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Publicado às 24 de junho de 2025 por em Resenhas e marcado , , .