EntreContos

Detox Literário.

Os Meus Sapatos (Anderson Prado)

Era só uma casa pobre dentre tantas do lugar. Pouco somava, pouco subtraía da penúria geral. Seus cômodos, mesmo tão pequenos, conseguiam a façanha de sequestrar quase todo espaço do terreno. Eu me sentia enclausurado. Éramos cinco incapazes de emprestar vivacidade àquele chão tão frio, de madeira opaca. Nem os dias mais quentes obravam nos ceder algum calor. Cinco cômodos que nunca consegui acabar, de janelas desproporcionais e paredes úmidas e desgastadas. Lembro que, ao me deitar ao lado da mulher que desaprendi a amar, escutava o enganador som de rio distante, águas de esgoto dando cambalhotas ao caminho de poluir o mar. As nervuras das paredes e seus cantos tomados de bolor, escancarando culpas e me acusando de não suster a família, lembravam o tal córrego poluído a caminho de pretejar o mar. Quem sabe o cheiro de água pútrida que sentia não vinha de lá?

A última lembrança que tenho é dos olhos daquele garoto. Eram os arautos do engodo quando me miravam ansiosos sob a portinhola. Sempre igual, numa enfadonha repetição litúrgica, que pensei mesmo que fosse eterna, na minha insistência de tentar me enganar, como num desejo incontrolável de me fazer bom pai e bom marido, provedor de um lar: eu caminhava devagar, pé por pé, receoso de chegar. Não via inteiro o garoto, mas podia adivinhá-lo a um canto da sala espreitando meus sapatos empoeirados a titubear.

O garoto corria para a pequena varanda, talvez em dúvida, uma dúvida ingênua, como que esperando que um outro homem tivesse a delicadeza de calçar meus sapatos e se fazer seu pai. Mas nunca se confirmava o que almejava, numa injeção de sentimento invasivo e abominável, quando me via, dobrando pelas curvas do caminho, sempre um pouco bêbado, um pouco trôpego: chapéu descaído, cigarro colado à baba e paletó puído no ombro direito.

Quando finalmente eu vencia a tremedeira, localizava a chave nos bolsos, acertava o cilindro, destrancava o cadeado e transpassava a segunda portinhola, seguia o mesmo envergonhado ritual: descolava o cigarro da saliva, cuspia o amargor da boca e olhava com meus olhos embaciados como a ver através do garoto. Humilhado, não seguia em frente, caminhava pela lateral da casa, até a oficina nos fundos, e desaparecia nas paredes de madeira.

Eu era qualquer coisa menos que gente, um bicho que não tenha olhos. Minha sensação era de não ver o filho existente no garoto, olhar sem enxergar, como se ele fosse janela clara e eu, com o chapéu descaído, mirando alguém pairando, inerte, para além do espectro do que deveria ser mais do que um garoto, um filho.

Eu era bicho de ir e voltar, desses cães vadios que se chuta, se põe pra fora, mas que, desavergonhados, sempre sabem o caminho de voltar. Dizia que viajava a trabalho, passava dias, semanas e sempre voltava em tempo menor que qualquer saudade. Sempre que partia, deixava para trás aflição, uma ameaça de retorno, uma ansiedade fundamentada.

“Vem aí meu marido”, é o que eu queria ouvir, mas não, não. “Vem aí o teu pai”, como a acusar, como a transferir responsabilidades e culpas. E eu vinha, atrasado de dias, sempre, e do mesmo jeito. Os sapatos se embaralhando, tropeçando, me denunciando por debaixo da portinhola. A decepção do garoto, seu sentimento, sua angústia, seus pés na madeira da varanda e a constatação: ainda era o mesmo pai com aquele chapéu descaído, desenhando sinuosidades na viela de terra, lutando contra a segunda portinhola, descolando o cigarro da baba seca, cuspindo sujidades, olhando embaciado além do próprio filho e sumindo pela lateral da casa. No mor da vezes, o garoto voltava para dentro, correndo atônito, temeroso e ansioso, tudo junto, como se fossem três dele, talvez um a quem eu tanto fitava, avisando aos irmãos “é mesmo nosso pai”, meio a dizer “se comportem, se aprumem, vem alto, vem fora de si”.

Por vezes, eu os fazia esperar além do habitual, dizia: “volto no próximo sábado” e não voltava. Não era atraso de um ou dois dias, mas de semana ou mês. Daí a origem de uma esperança profunda de não voltar mais.

Em momentos de lucidez, fantasiava rotinas e andanças. Trazia comigo itens diversos, desde rapadura, doce de coco, até um colar de conchas, uma medalha de capitão, um cabo de faca, entre outros objetos. Sem o encurvado e o embaciado do álcool, eu me fazia alto e bonito, e dizia andar por aí negociando com reis e lutando com leões esfomeados. Fazia do cabo de faca memória de feroz ataque felino frustrado, a lâmina quebrada no coração da fera encarniçada.

Ao filho mais velho, contei que enfrentava por vezes gigantes de três bocas e cabeça de mulher. Lutava sozinho, sem companheiros, e era preciso coragem para seguir em frente, para sair e lutar. Três bocas famintas, mesmo uma só sendo suficiente para aterrorizar. Falavam em uníssono, o trítono de sua voz soando como uma família a falar toda junta. Era preciso valentia para lidar com essas aventuras. Suspeito que esse meu filho entendeu a verdade, percebeu o meu gosto de ir e que um dia poderia não voltar.

Foi em uma dessas angustiadas fugas que tive a inebriante visão de uma impossível e harmoniosa família dançante. Ao lado de casa, num fio malesticado, secavam ao sol meu paletó e uma jardineira infantil: cuidados daquela que ainda era minha esposa. Fizeram, ambos, paletó e jardineira, vir à mente a memória do farfalhar de bandeiras de paz, convidando perdões e reconciliações. Depois, na contemplação daquela cena, só me restou a imagem do sol cortando o telhado, banhando as roupas, soprando o vento quente e fazendo dançar uma ilusão de família.

Dois dias depois daquela dança, voltei. O garoto deve ter visto a aproximação dos maltratados sapatos. Correu a tempo de me ver abrindo a segunda portinhola, chapéu amassado, cigarro e baba ao canto da boca, e cuspindo imundícies. Transpassei o olhar pelo filho, para ver apenas o inconveniente garoto, e segui em direção à empoeirada oficina.

Neste mesmo dia, tombei na poltrona puída da sala, descansando os sapatos no sol, na entrada, como dois jacarés preguiçosos. O garoto me cercava, sempre o mesmo garoto. Parecia clamar por atenção. Avançou sobre os sapatos e, por pouco, não alcançou o chapéu e os cigarros. Desta vez, olhei de fato para o garoto, esquecido do álcool e da embriaguez. Via o meu filho e via o perigo. Fulminei um olhar de correção. O garoto se encolheu, como esmagado sobre uma superfície, ciente da reprovação. Logo em seguida, contra a minha vontade, senti lhe ocorrer um ar de alegria, acho que era meu desolhar que mais o assolava.

Repousou de volta os sapatos no sol.

No dia seguinte, parti novamente, mas não tardando a voltar. Dessa vez, apenas dez dias. Mas o anunciar de minha volta foi diferente, pela primeira vez: sob a portinhola, para escrutínio do garoto, não só meus sapatos, mas também quatro cascos desritmados, num andar cansado. Trazia comigo um burrico de aspecto mortificado.

Do tamanho de minhas posses, tinha cara de Ananias, o tal burrinho, mas tinha trejeitos de César. O menino mais novo disse que era magro demais para ser Brutus, mas não tão esquelético para ser Costela. O mastigar da própria língua emprestava ao animal um aspecto circunspecto, de modo que se podia ver franzir o cenho, numa carranca que o menino mais velho gritou: este é Zangado! Mas, o garoto do meio preferiu se atentar às olheiras naturais, ao negrume que rodeava os olhos e tinha formato, em um deles, de lágrima, uma lágrima de palhaço, numa tristeza quase alegre de não querer ser triste, de modo que o chamou de Risonho. E, com pão duro e bolorento em mãos, ofereceu, chamando primeiro de Zangado, depois de Risonho, o que o fez aceitar. Não tinha mais dúvida, era Risonho o burrinho.

Ouvi os meninos confabularem se o burrinho não lhes contaria todas as coisas que me veria fazer, em minhas andanças mundo afora, dando pista da profissão que desempenhava. Coisas escandalosas como parricídios, tempestades ininterruptas e pobres coitados tendo que comer barata cascuda.

Não demorei para arrumar o bicho, dar-lhe trato melhor que à própria família, cuidei dos dentes, da ferradura e fiz com que o pelo ficasse lustroso, mais que o piso gelado da casa. Não tardei, também, a arrumá-lo com cangalha feita na oficina, fazendo entender que já me ia, num trote.

Vendo Risonho sozinho, bebendo água, aguardando minha chegada, o garoto do meio o acariciou atrás da orelha e cochichou ao seu ouvido.

Para minha surpresa, Risonho pareceu responder-lhe com um olhar estrábico, talvez confiando-lhe, mudamente, nosso sombrio destino.

Juntaram-se todos próximos à segunda portinhola. Não me iludi, não era de mim que se despediam, era de Risonho e sua alegria triste. Num gesto errático, fiz menção de me virar, e o garoto do meio avançou, ansioso:

“Pai, o senhor me leva, nesse burrico?”.

Montado de chapéu e cigarro, à contraluz do sol, ameacei um sorriso e, conspurcado de remorso, afaguei os cabelos do garoto, puxei as rédeas em manobra e me fui intentando nunca mais voltar.

Desta vez, em um ensaio de ausência definitiva, demorei meses. Até o dia em que fiz chegar, por falso portador, a notícia de minha própria morte. Não podendo e não sabendo matar meus vícios, matei a mim mesmo. 

O mesmo portador, amigo-cúmplice, deu-me conhecimento do velório, feito a céu aberto, em caixão sem corpo, na frente da oficina, simbólico. Ao ouvir o relato, meu corpo vivo sentiu como se me negassem um último acesso à casa.

O incômodo da revelação me perseguiu. A casa me atraía e o álcool me traía. Foi numa noite de sábado, já madrugada avançada, que passos bêbados e pesados me levaram de volta para a casa. O mesmo ritual repetiu-se, abri com dificuldade a segunda portinhola, descolei o cigarro da boca pra que não me denunciasse na noite escura, cuspi o amargor da saliva e segui em direção da oficina, contornando a casa, buscando as janelas que escondiam minha esposa e filhos. Sobrepujando o ruído do córrego distante a percorrer o silêncio, jurei ouvir as crianças gritando. Olhei em direção à portinhola, mas não vi ninguém.

Acelerei os passos e deixei o quintal, afiançando nunca mais voltar. Mas voltei. E isso se repetiu, em noites espaçadas, sempre de mesmo modo. Cuspia no chão e devassava a portinhola, temendo o aparecimento das crianças, e dirigia-me para os lados da oficina, o mesmo lado onde encontraria os quartos e suas janelas, visões de vultos e de breu.

Segui as visitas, às vezes esperançado de ser visto, ressuscitado. Estava cansado, bebia cada vez mais, auspiciava o privilégio de esquecer. Será que estava fadado a vagar pela epiderme da Terra, como um errante? Será que havia lugar para mim?

Enganava-me que ali era meu lugar, entre a segunda portinhola e a oficina, ali onde a luz da lua alumiava minhas visitas e perfurava o teto de zinco, salpicando o chão de estrelas. Ali, onde os pés trôpegos denunciavam a cabeça alta, com meus sapatos-mensageiros, por baixo da portinhola.

À medida que fui envelhecendo, tive que ceder às exigências do corpo. Ou reduzia o álcool ou o álcool me reduziria a menos que nada. Segui com as visitas, mais sóbrias e rareadas. Abria a portinhola e já não ouvia mais as crianças, talvez porque nunca tenham estado ali me espreitando, talvez porque cresceram e dormissem acossadas pelo cansaço do trabalho. Olhava de um outro jeito para a portinhola procurando o menino do meio, os olhos ainda embaciados, já não pelo álcool, mas por uma velhice severa porque precoce. Será que teriam os meninos a minha idade quando os deixei? Será que, mais velhos do que eu então, compreendiam-me?

Certa noite encontrei não o clarão da lua, mas o brilho cambiante de velas. A mulher por quem um dia me apaixonei, que o casamento e a rotina me desensinaram a amar, a mãe dos meus filhos estava morta. Me afastei, espreitei de longe. Quando voltei, nas muitas noites seguintes, outros eram os vultos através da janela, novos desenhos de corpos sob a coberta, minha família não estava mais ali.

Eu já tinha o dobro da idade com que parti. Decisão dolorosa de deixar a casa mais uma vez, de não voltar, mas necessária. Não lutaria mais contra a segunda portinhola sob o brilho insuspeito da lua, tirando o cigarro da boca pra não ser denunciado no escuro, cuspindo no meu chão como a marcar território e olhando para a portinhola da sala procurando a ânsia daquele garoto. Mas tinha que seguir adiante. Eu sentia, vez ou outra, a presença da minha família, como se habitassem as casas qualquer por que passava, em novos ramos de árvores a se multiplicar e redesenhar, novos núcleos, filhos-netos-bisnetos. Pensava tê-los visto em alguma esquina ou pelo reflexo de alguma poça d’água. Pensava às vezes ter sido reconhecido através do burrico Risonho, mesmo sendo outro o asno que me acompanhava, mas nunca me identificavam. Talvez fosse a falta que os sapatos faziam, a maneira como se embaralhavam em uma dança descoordenada. Mas esse já não eram meus passos. A insegurança da velhice me emprestava um outro caminhar, eles não me veriam enquanto não retornasse. Fiquei anos sem vê-los. A saudade era ressentida, como se fedesse pouquinho, tal como o córrego distante que eu sempre ouvia.

Eu não me reinventei, não percorri novos caminhos, não aprendi novos passos, não construí nova família. Só envelheci. Respondi para mim mesmo a um questionamento que um dia me fiz: não, meus filhos nunca me compreenderiam. O mistério de minha existência continuaria o mesmo.

Vagava há exatamente quinze anos após a última visita à casa. Era hora de uma despedida, o derradeiro aceno. Decidi, portanto, retornar para averiguar as condições em que encontraria tudo, se encontraria tudo.

Foram quinze anos sentidos em cada passo da rua de terra. Tudo continuava a mesma coisa, inclusive eu. Abri a segunda portinhola, como o meu eu de outrora. Contemplei a casinha. Vazia, fria. Tudo parecia estar como deveria estar. As condições da morada assemelhavam as mesmas de quando saí.

Removi o cigarro da boca murcha, escarrei no chão de terra seca, cruzei olhos com meus novos sapatos e me lembrei do antigo par. Talvez ainda estivessem dentro da casa esperando aquele filho do meio vir buscá-los e finalmente calçar. Perscrutei a outra portinhola, buscando a ânsia dos olhos daquele menino.

Mirei a varanda, lá estavam eles, os mesmos olhos, mas no corpo de um homem também velho. Pareceu sorrir, pareceu acenar. Recuei feito quem bêbado sem querer invade quintal alheio, desapareci na lateral do muro.

Anoiteceu e eu decidi que ficaria pelo entorno. Dormiria ao relento, tendo por teto a imensidão das estrelas. 

Percebi, em minha reflexão, que até aquele dia pouco havia revelado de mim mesmo. Meus filhos nunca souberam se tive profissão, de como fazia dinheiro, ganhava a vida. É que eu não era gente de ter profissão ou de dizer “eu te amo”, eu era um gesto. Talvez o de retirar o cigarro do canto babado da boca após abrir a portinhola, mas era um gesto, uma soma de gestos, aqueles gestos desencontrados eram tudo o que eu sabia ser.

E senti saudades de dançar, de entrecruzar passos bêbados e embaralhados, de me enganar como me enganei no dia daquela estranha sinfonia que ouvi no varal, um ensaio de família harmoniosa dançando limpa, macia e cheirosa embalada pelo vento.

Será que vivi os últimos anos evitando retornar a esta verdade? Talvez tenha esquecido os detalhes de minha tumultuada vida, os detalhes da desrotina familiar. Mas não tudo, pois o remorso é morro sempre visível no horizonte.

Eu me perguntei se poderia haver uma outra versão desta história, uma outra acepção de mim, talvez pelos olhos gulosos daquele filho do meio, sempre a me rodear, vigiando meus passos, espreitando sob a portinhola, acusando minha chegada, dançando comigo harmonioso em miragem dependurada.

E foi quando decidi rever minha família pela última vez. Ao retornar à casa, eu os vi pelas janelas rompendo com a dor que lhes impingi, vivendo uma vida sem mim, gritando boas-novas que hão de vir a quem quiser escutar. Sem vícios, sem medos, sem esperas. Uma nova família, um outro núcleo, meu filho do meio e meus netos, superados de mim.

Nesta noite, me entristeci quando me recordei da família. Não por não termos dançado harmoniosos, concertados em acertada família… Mas por não ter dito o que sempre quis dizer, mesmo naquele dia em que o garoto do meio investiu sobre meus sapatos:

“Vá, filho, percorra os caminhos, gaste suas solas. Caminhe nessa vida como todos hão de caminhar, mas, por favor, não calce estes meus sapatos, não reproduza meus passos, escreva uma outra história.”

Sobre Fabio Baptista

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23 comentários em “Os Meus Sapatos (Anderson Prado)

  1. Rodrigo Ortiz Vinholo
    14 de junho de 2025
    Avatar de Rodrigo Ortiz Vinholo

    Não sei se esse conto atende bem as propostas do desafio… De todo modo, fico dividido: por um lado, há um domínio e uso de técnica muito bons, mas por outro achei a narrativa confusa e pouco envolvente. Idas e voltas, tangentes, e no fim não conseguiu me prender, cheguei ao final com certo esforço.

  2. Felipe Lomar
    14 de junho de 2025
    Avatar de Felipe Lomar

    olá,

    O conto é muito bem escrito, possui uma técnica refinadissima. Muito bom revisitar a mesma história por um outro ponto de vista. Eu diria que o único problema, além da extensão exagerada, é ser esteticamente quase uma cópia do original, sem muito espaço Para a personalidade própria do fanfiqueiro. Mas ainda assim é muito bom

    boa sorte

  3. Givago Domingues Thimoti
    13 de junho de 2025
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Os Meus Sapatos

    Da série “fazendo a boa”, vou tentar comentar o máximo de contos da Série A possível, apresentando minhas impressões pessoais sobre o seu conto. Os Meus Sapatos é um conto fanfic do conto vencedor do Desafio Nostalgia, do André Lima. Estou curioso para saber o que ele achou desse conto. 

    Da minha parte, achei muito interessante a utilização de um conto que do EC. Referencial.

    Bom, sobre esse conto, tentei não comparar muito ambos os trabalhos, mesmo que haja semelhanças. Confesso que por vezes não consegui. Quando vi, lá estava eu relendo o conto do André, meu comentário e minhas impressões sobre o conto. De alguma forma, vi alguma transformação no meu eu-leitor que me deixaram encucado. Por que gostei mais de um do que de outro? O que funcionou ali e não funcionou aqui?

    Este conto é um exercício interessante, já que coloca o ponto de vista do pai, um personagem tão idealizado quanto dúbio na vida do filho do meio. 

    É um conto com uma escrita robusta. Talvez, alta literatura (se é que existe algo como alta literatura). Certa ou errada, brincou com as palavras. Em alguns momentos, pelo menos para mim, até esbarrou num exagero na repetição de alguns termos. É, em boa parte, erudita.

    De negativo, ele esbarra na falta de ineditismo. Claro, é uma fanfic, uma obra baseada em outra. Repete inclusive os mesmos erros e acertos. Por exemplo, o conto está bem longo para a história que se apresenta.  Mas a sensação geral que tive foi a de que faltou um fato novo. Claro, está lá a visão do pai, a dificuldade de se enxergar enquanto indivíduo responsável  por aquele ambiente humilde. Mas me parece que há uma conexão muito esparsa (para não dizer desconexão), escondida diante dos termos eruditos. Me peguei pensando bastante sobre isso e cheguei ao seguinte veredito: ao repetir o estilo rebuscado do André e colocando o pai como esse protagonista, parece que a história ainda é a visão do filho sobre o pai e não o pai sobre ele mesmo. Fiquei pensando, por exemplo, nesse estilo e como ele não dialoga tanto com o personagem. Ou como não sabemos quase nada da história dele – como trabalha, o que faz quando se ausenta… O que levou a viver ali, com aquela mulher, naquele casamento infeliz… Essa falta de profundidade briga bastante com o fato do narrador ser personagem e ter a oportunidade de apresentar o seu lado da história…

    Enfim, esse conto talvez seja um exemplo de como é necessário focar tanto no esmero da escrita quanto no contar uma história. Essa história brilharia com mais detalhes sobre o personagem e menos sobre a escrita em si.

  4. Alexandre Costa Moraes
    13 de junho de 2025
    Avatar de Alexandre Costa Moraes

    Entrecontista,

    “Os Meus Sapatos” é uma fanfic fiel ao conto original “Os Sapatos do Meu Pai”, retomando imagens simbólicas e um tom narrativo alinhado ao estilo do autor homenageado. A linguagem tem personalidade, as descrições são cuidadosas e a ambientação pobre e árida é muito bem construída.

    O ritmo mais arrastado e a estrutura repetitiva acabam comprometendo um pouco o dinamismo da leitura, mas certamente isso faz parte da escolha estilística para manter coerência com a obra de origem. Os personagens não chegam a viver grandes arcos, mas servem bem ao propósito simbólico para a história.

    Parabéns pelo texto e boa sorte no desafio.

  5. Pedro Paulo
    11 de junho de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Escolha corajosa, escrever a partir de um dos nossos. E o fez bem. O tom, consolidado no vocábulo e na construção do texto, também está aqui e ainda assim concebe um personagem original e bastante diferente do que ficava desenhado pela perspectiva ingênua do narrador no original. Como a introspecção é o grosso do texto e o personagem enfrenta uma batalha interna de toda a vida, a leitura é gostosa pela qualidade da escrita, mas começa a consumir a paciência a falta de movimento da trama circular. Ainda assim, há catarse no final, quando se lê as palavras engasgadas do protagonista.

  6. Fabiano Dexter
    11 de junho de 2025
    Avatar de Fabiano Dexter

    História
    Uma história triste sobre um pai que não consegue se colocar a altura do olhar de seu filho, que sempre o espera ansioso, aguardando por ver seus sapatos por baixo da portinhola. Ele então descreve, pela visão do pai, as suas muitas chegadas em sua casa pobre onde a única luz é a esperança de seu filho.
    A história é bonita e o final muito bom.
    Tema
    Ainda que seja uma bela homenagem, não classificaria o conto como uma Fanfic.
    Construção
    O conto é um pouco longo e em alguns momentos me cansou um pouco, mas vemos uma escrita extremamente competente.
    Impacto
    Um bom conto, mas que acabou não se destacando tanto no meio de outras histórias muito boas e mais dentro do tema.

  7. Bia Machado
    10 de junho de 2025
    Avatar de Bia Machado

    Olá, tudo bem? Primeiro, quero esclarecer que meu comentário é baseado apenas na leitura que fiz de seu conto nesse momento. Em outro momento, talvez, eu tivesse outra impressão a respeito de sua história. Bem, no comecinho estava achando interessante, tinha muitas expectativas para seu conto. Conforme fui lendo, porém, bateu uma sensação de cansaço, com relação ao ritmo de leitura. Talvez pudesse ter criado algo mais curto, menos “arrastado”? E digo arrastado porque em alguns momentos li rápido, sem conseguir me concentrar. Então precisei voltar e ler com mais calma. A meu ver, poderia ter dado um tom mais dinâmico ao seu texto, com mais espaço para interação com os outros personagens, o enfoque total no narrador-personagem pra mim não funcionou, faltou emoção e sim, para mim a emoção, o envolvimento que o texto consegue de mim conta muito. Então é algo muito mais pessoal que técnico a forma como avalio, ou seja, os outros que leram podem ter gostado, claro. E não li o tal conto do qual disseram que esse é fanfic. Mas é isso, boa sorte no desafio.

  8. Priscila Pereira
    10 de junho de 2025
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Autor! Tudo bem?

    O que gostei: muita técnica, frases belas, escrita impecável.

    O que não gostei: a história ficou um pouquinho chata, me desculpe… Foi muito difícil ler até o final.

    Boa sorte!

  9. Fabio Baptista
    9 de junho de 2025
    Avatar de Fabio Baptista

    Pai de família relata suas desventuras e lembranças.

    Na minha primeira leitura, fiquei com a impressão de que o conto fosse mais uma sátira. Na leitura definitiva, porém, entendi mais como uma homenagem mesmo (não que a sátira deixaria de ser homenagem) e uma tentativa válida e muito bem executada de contar uma boa história sob outro ponto de vista.

    Devo dizer que gostei mais dessa abordagem aqui, sem aquele realismo mágico todo do entrecontista André, algo mais pé no chão e verossímil, um pai que gosta de tomar umas cachaças e contar umas histórias. Acompanhou os filhos e a esposa (que desaprendeu a amar) à distância, tornando-se um gesto (eu ri nessa aqui).

    Uma boa história, uma técnica excelente, um final bonito, mas… não se enquadra totalmente na minha concepção do tema.

    Peculiaridades do certame à parte, um ótimo trabalho.

  10. Mauro Dillmann
    6 de junho de 2025
    Avatar de Mauro Dillmann

    Conto bem escrito, com uso de palavras bem escolhidas. Quase hermético. Quase. Tudo está inteligível, com alguma dramaticidade na linguagem.

    “Eu era qualquer coisa menos que gente, um bicho que não tenha olhos” [Seria, porventura, “um bicho que não TINHA olhos”? Seria “tinha” para concordar com “era”? Creio que sim.]

    “Embaciado” é palavra forte, deixa marcas. Poderia ser usada uma única vez no texto. Como a utilizou diversas vezes, a repetição cansou e demonstrou falta de cuidado na lapidação do texto. O mesmo para “portinhola”, embora seja mais compreensível.

    O personagem-narrador diz que “sempre voltava em tempo menor que qualquer saudade”, para em seguida dizer ““volto no próximo sábado” e não voltava. Não era atraso de um ou dois dias, mas de semana ou mês”. Um narrador contraditório, suspeito.

    O conto tem algo de repetitivo. Em determinado momento, cansei.

    Quem não conhece o conto do desafio anterior, “Os sapatos do meu pai”, escrito por André Lima, certamente não reconhecerá fanfic. Acho que não existir elemento que indique a partir do quê fanfic foi feita, fragiliza um pouco.

    É um bom conto. Parabéns!

  11. Kelly Hatanaka
    2 de junho de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Achei original fazer uma fanfic de um conto do EC. Gostei da ideia.

    O conto parte de uma premissa ótima, o conto campeão “Os Sapatos de Meu Pai”, e mostra a história pela ótica do pai.

    Só que o resultado não fica tão interessante quanto o original. Enquanto o original fala do pai a partir de sua ausência, das coisas que o filho desconhece, a fanfic explica tudo. E explicações, muitas vezes, matam a magia. Como leitora, gosto de preencher os vazios da história e um dos muitos méritos de “Os Sapatos de Meu Pai” é oferecer muitos vazios para o leitor. Cada um pode criar sua própria história. E a minha tinha absolutamente nada a ver com alcoolismo. O que deu um certo sentimento de frustração.

    Porém, é inegável que se trata de uma história bem escrita, em que houve a tentativa de emular o estilo original, muito difícil e que procurou espelhar a história original.

  12. claudiaangst
    29 de maio de 2025
    Avatar de claudiaangst

    Olá, autor(a), tudo bem?

    Temos aqui uma fanfic de um conto do desafio anterior? Sim! Todo mundo vai se dar conta disso? Talvez, mas acredito que o texto fala por si.

    Pequenos lapsos de revisão:

    • […] um bicho que não tenha olhos > […] um bicho que não tinha olhos
    • No mor da vezes > Na maioria das vezes (o nível de linguagem destoa do resto do texto)
    • […] fio malesticado > […] fio mal esticado (talvez a intenção tenha sido manter o neologismo empregado pelo autor emulado, mas não vi sentido nisso)
    • […] era Risonho o burrinho > […] era Risonho, o burrinho

    A narrativa agrada aos leitores mais sensíveis, trazendo o mesmo tom poético da obra original, uma nova versão sob um outro ponto de vista (o do pai).

    Não sei se os sapatos, a portinhola, o chapéu e o cigarro foram escolhidos como elementos simbólicos, mas assim me pareceu. O desfecho lembrou um pedido de perdão camuflado em conselho paterno.

    Parabéns por mais uma participação e boa sorte!

  13. cyro eduardo fernandes
    22 de maio de 2025
    Avatar de cyro eduardo fernandes

    Belo conto lastreado na tristeza e na melancolia. Não identifiquei qualquer referência à uma Fanfic. Boa técnica e impacto.

  14. Jorge Santos
    20 de maio de 2025
    Avatar de Jorge Santos

    Olá, autor ou autora. Creio que este texto é um fanfic de outro texto do Entrecontos. A ser verdade, é uma ideia fantástica. E espero que seja, porque não encontrei uma referência a fanfic – e também não é infantil. Outra ideia, extremamente criativa: o texto é um fanfic da vida da personagem, uma existência alternativa. Isso está patente no último parágrafo. Em termos de linguagem, estamos perante um texto excelente e complexo – tão complexo que torna difícil a leitura. A ideia é percetível – a importância da família e a passagem do tempo numa existência cheia de dificuldades e vícios. Tudo isto se perde na complexidade e subjetividade do texto. Podemos passar sentimentos complexos de uma forma simples, não necessariamente direta. O texto é, mesmo assim, extremamente belo. A força da palavra está patente em todas as frases, mas o sentido dilui-se e a subjetividade impera.

  15. André Lima
    19 de maio de 2025
    Avatar de André Lima

    Primeiro de tudo, gostaria de salientar que fiquei extremamente surpreso com esse conto. Logo de cara, abri e passei os olhos. Veio-me uma dúvida, ao ver a foto “original” em P&B e alguns trechos avulsos: seria uma espécie de sátira, colocando tudo que foi estabelecido no conto original às avessas? Ou seria uma espécie de pastiche, homenagem, tentando emular talvez o estilo da obra original? Uma paródia?

    Meu primeiro palpite foi de que seria uma sátira. Ajeitei-me na poltrona e comecei a ler.

    O primeiro parágrafo é interessantíssimo. É uma completa perversão (Mas não satírica) do parágrafo inicial da primeira obra, embora haja ligeira “inconsistência”, gostei do resultado final. “Era só uma casa pobre dentre tantas do lugar” demonstra uma indiferença, algo que ficou marcado pelo personagem do pai. Mas o parágrafo segue, dando um aspecto grunge, escatológico, se desviando dessa indiferença e levando toda a construção onírica, lúdica e poética do original para o abismo, para os dejetos, para o sujo. Esse parágrafo foi animador, pois, embora não pareça tanto (Talvez tenha ficado mais nítido no meu último conto – Quando O Véu se Ergueu Diante do Desventurado Hugo Benevides), sou muito marcado pela estética grunge dos anos 90, tal como pelo expressionismo alemão, então adoro quando o exagero vai para este lado sombrio, pegajoso, mais intimista.

    “A última lembrança que tenho é dos olhos daquele garoto.” O parágrafo segue, nesse mesmo ritmo de desconstrução, quase que frase por frase. O que é um trabalho cansativo, mas cuidadoso. “Última lembrança” me deixou alerta, espero que o conto no final resgate esta frase.

    O texto segue, de maneira linear, desconstruindo, mas não apenas de maneira “antagônica”, a tentativa aqui é afastar o lírico, o lúdico, o onírico e dar uma dose letal de realismo. Os detalhes sobre a vida de um trabalhador comum, pai de família pobre, vivendo dramas como alcoolismo.

    ““Vem aí meu marido”, é o que eu queria ouvir, mas não, não. “Vem aí o teu pai”, como a acusar, como a transferir responsabilidades e culpas. E eu vinha, atrasado de dias, sempre, e do mesmo jeito.”

    Este trecho muda um pouco a perspectiva inicial. Parece-me que a história está indo agora para uma espécie de rivalidade familiar, como se o “título” de pai fosse um fardo para o protagonista, que queria ser reconhecido como marido, homem.

    “A decepção do garoto, seu sentimento, sua angústia, seus pés na madeira da varanda e a constatação: ainda era o mesmo pai com aquele chapéu descaído, desenhando sinuosidades na viela de terra, lutando contra a segunda portinhola, descolando o cigarro da baba seca, cuspindo sujidades, olhando embaciado além do próprio filho e sumindo pela lateral da casa.”

    É interessante como o texto trabalha a distorção do pai, fantasiando negativamente sobre o olhar do OUTRO (No caso, o filho), tendo como lente a própria realidade, a sua autoimagem.

    “Em momentos de lucidez, fantasiava rotinas e andanças. Trazia comigo itens diversos, desde rapadura, doce de coco, até um colar de conchas, uma medalha de capitão, um cabo de faca, entre outros objetos. Sem o encurvado e o embaciado do álcool, eu me fazia alto e bonito, e dizia andar por aí negociando com reis e lutando com leões esfomeados. Fazia do cabo de faca memória de feroz ataque felino frustrado, a lâmina quebrada no coração da fera encarniçada.”

    Aqui, este parágrafo destoou da qualidade anterior e da proposta. Eu entendo a desconstrução “frase-a-frase”, mas aqui furou a lógica da história inicial e adquiriu aspecto de paródia, tirando o peso narrativo que havia sido estabelecido antes. Ora, se fosse ser coerente, o pai deveria imaginar o que o filho fantasiava sobre ele.

    “Ao filho mais velho, contei que enfrentava por vezes gigantes de três bocas e cabeça de mulher. Lutava sozinho, sem companheiros, e era preciso coragem para seguir em frente, para sair e lutar. Três bocas famintas, mesmo uma só sendo suficiente para aterrorizar. Falavam em uníssono, o trítono de sua voz soando como uma família a falar toda junta. Era preciso valentia para lidar com essas aventuras. Suspeito que esse meu filho entendeu a verdade, percebeu o meu gosto de ir e que um dia poderia não voltar.”

    Neste parágrafo, o brilho retorna. Ótima sacada e simbolismo, trazendo a família (Ambiente familiar) como antagonista, voltando à coerência narrativa e de construção do personagem.

    “Foi em uma dessas angustiadas fugas que tive a inebriante visão de uma impossível e harmoniosa família dançante. Ao lado de casa, num fio malesticado, secavam ao sol meu paletó e uma jardineira infantil: cuidados daquela que ainda era minha esposa. Fizeram, ambos, paletó e jardineira, vir à mente a memória do farfalhar de bandeiras de paz, convidando perdões e reconciliações. Depois, na contemplação daquela cena, só me restou a imagem do sol cortando o telhado, banhando as roupas, soprando o vento quente e fazendo dançar uma ilusão de família.”

    Neste trecho já achei que a precisão literal da desconstrução frase-por-frase destoou. Em alguns momentos o autor desconstrói emprestando novo significado, dando nova poesia, mas nesse e em poucos outros, é apenas um avesso literal.

    “como dois jacarés preguiçosos”, dito logo após, é um exemplo de “citação” crua. Gostaria de ter visto uma perversão desse olhar do filho.

    “Logo em seguida, contra a minha vontade, senti lhe ocorrer um ar de alegria, acho que era meu desolhar que mais o assolava.”

    Aqui, por exemplo, essa literalidade na desconstrução foi quase até a última frase, que deu um pouco de exposição.

    “Mas, o garoto do meio preferiu se atentar às olheiras naturais, ao negrume que rodeava os olhos e tinha formato, em um deles, de lágrima, uma lágrima de palhaço, numa tristeza quase alegre de não querer ser triste, de modo que o chamou de Risonho. E, com pão duro e bolorento em mãos, ofereceu, chamando primeiro de Zangado, depois de Risonho, o que o fez aceitar. Não tinha mais dúvida, era Risonho o burrinho.”

    A escolha por parafrasear causa estranhamento, mas ao mesmo tempo é uma estratégia interessante. O texto não é linear nesse sentido: ora brilha com construções novas, ora causa estranheza ao redizer letra por letra.

    “Juntaram-se todos próximos à segunda portinhola. Não me iludi, não era de mim que se despediam, era de Risonho e sua alegria triste. Num gesto errático, fiz menção de me virar, e o garoto do meio avançou, ansioso:

    “Pai, o senhor me leva, nesse burrico?”.”

    São nessas construções que o conto brilha!

    “O mesmo portador, amigo-cúmplice, deu-me conhecimento do velório, feito a céu aberto, em caixão sem corpo, na frente da oficina, simbólico. Ao ouvir o relato, meu corpo vivo sentiu como se me negassem um último acesso à casa.”

    Agora vinha o momento que mais me preocupava: como o conto vai desconstruir o fantástico e dar a superdose de realismo que vinha dando desde o início? A solução encontrada foi surpreendente. Gostei.
    Embora, nos parágrafos seguintes, tenha que haver uma flexibilização na boa-vontade do leitor, entendendo como possível tudo que passou a acontecer, sob a perspectiva do pai.

    “Segui as visitas, às vezes esperançado de ser visto, ressuscitado. Estava cansado, bebia cada vez mais, auspiciava o privilégio de esquecer. Será que estava fadado a vagar pela epiderme da Terra, como um errante? Será que havia lugar para mim?”

    Neste trecho, repetir literalmente a frase do original teve força! Muito bom!

    “Eu já tinha o dobro da idade com que parti. Decisão dolorosa de deixar a casa mais uma vez, de não voltar, mas necessária. Não lutaria mais contra a segunda portinhola sob o brilho insuspeito da lua, tirando o cigarro da boca pra não ser denunciado no escuro, cuspindo no meu chão como a marcar território e olhando para a portinhola da sala procurando a ânsia daquele garoto. Mas tinha que seguir adiante. Eu sentia, vez ou outra, a presença da minha família, como se habitassem as casas qualquer por que passava, em novos ramos de árvores a se multiplicar e redesenhar, novos núcleos, filhos-netos-bisnetos. Pensava tê-los visto em alguma esquina ou pelo reflexo de alguma poça d’água. Pensava às vezes ter sido reconhecido através do burrico Risonho, mesmo sendo outro o asno que me acompanhava, mas nunca me identificavam. Talvez fosse a falta que os sapatos faziam, a maneira como se embaralhavam em uma dança descoordenada. Mas esse já não eram meus passos. A insegurança da velhice me emprestava um outro caminhar, eles não me veriam enquanto não retornasse. Fiquei anos sem vê-los. A saudade era ressentida, como se fedesse pouquinho, tal como o córrego distante que eu sempre ouvia.”

    Este parágrafo é o melhor de toda a obra. Belo, escatológico, pesado, cheio de riqueza autoral.

    “pois o remorso é morro sempre visível no horizonte.”

    É esse tipo de desconstrução que estou falando!

    “E foi quando decidi rever minha família pela última vez. Ao retornar à casa, eu os vi pelas janelas rompendo com a dor que lhes impingi, vivendo uma vida sem mim, gritando boas-novas que hão de vir a quem quiser escutar. Sem vícios, sem medos, sem esperas. Uma nova família, um outro núcleo, meu filho do meio e meus netos, superados de mim.

    Nesta noite, me entristeci quando me recordei da família. Não por não termos dançado harmoniosos, concertados em acertada família… Mas por não ter dito o que sempre quis dizer, mesmo naquele dia em que o garoto do meio investiu sobre meus sapatos:

    “Vá, filho, percorra os caminhos, gaste suas solas. Caminhe nessa vida como todos hão de caminhar, mas, por favor, não calce estes meus sapatos, não reproduza meus passos, escreva uma outra história.””

    O arremate foi perfeito, escanteando o fantástico da cena final do voo, dando novo significado a tudo e amarrando no realismo cru.

    Conclusão:
    O autor é habilidoso, com toda certeza. Não é fácil desconstruir uma obra, dar um novo significado, ainda mais no nível de detalhe do frase-a-frase. Mas a ideia foi muito bem executada, com um aspecto sujo que deu força a tudo. Alguns deslizes aconteceram, algumas incongruências. O conto oscila, pouco, muito pouco, mas oscila. Queria poder ver mais da capacidade ótima do autor de dar nova poética grunge a tudo que poderia ter feito. Em alguns momentos, a literalidade soou como preguiça, não como incapacidade.

    De todo modo, eu mesmo não poderia ter feito a versão “espelho quebrado” melhor que esta, pois já estaria enviesado por tudo que foi estabelecido na obra original, enquanto aqui não houve dúvidas ou pena em pisotear tudo.

    É um trabalho delicado, cuidadoso e muito bem executado. Parabéns!

  16. Antonio Stegues Batista
    18 de maio de 2025
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Resumo do conto. Homem se distancia da família e passa a ir e vir, sem um contato mais íntimo.

    O texto é uma fanfic de outro conto do desafio passado. Essa versão é um conto elogiado pela narrativa elaborada, frases rebuscadas em tom poético. Tem algumas repetições que tornam a leitura maçante, como se fosse proposital para dar extensão ao texto. Algumas partes com adjetivos chatos em excesso, mas o conto tem lá o seu valor como arte literária. Eu daria nota 5, apesar dos entraves. Parabéns e boa sorte.

  17. paulo damin
    15 de maio de 2025
    Avatar de paulo damin

    Não entendi se era pra ser uma fanfic ou um chubesco. Mas tudo bem. É um conto reflexivo, existencial. Meio faroeste, talvez. A curiosidade é que o cara tem uma relação com um burro, em vez de com um cavalo. No final, uma mensagem do tipo faça o que eu digo, não o que eu faço. Ou não faça nem o que eu digo, nem o que eu faço. Memórias. Não sei, não peguei a referência.

  18. Thiago Amaral
    15 de maio de 2025
    Avatar de Thiago Amaral

    Temos aqui uma bela homenagem ao conto do nosso amigo André. Boa parte dessa versão é quase gêmea ao original, seguindo os mesmos pontos parágrafo por parágrafo, e mantendo até mesmo comparações e metáforas. Nessa situação temos duas saídas, a de admirar a similaridade no pensamento de pai e filho, que afinal não eram tão diferentes quanto poderiam imaginar, ou considerar a nova versão como preguiçosa.

    Mas a verdade é que essa fanfic também expande as ideias da primeira, onde podemos ver aspectos da personalidade do pai, este cheio de inseguranças. Podemos ver também confusão em certas partes, típico das peças que a memória prega na gente, como o nome do burrico. Mas o momento de ruptura mesmo se faz após a “morte” do pai, onde o filho de fato vê um cadáver no original, enquanto que aqui não se fala nada disso. Também não há mais espelhamento de parágrafos, marcando a separção entre personagens e histórias.

    Engraçado como esse conto aqui “conserta” o realismo fantástico do primeiro, sendo que o pai está de fato vivo. Como ele não viu os filhos ao entrar na casa? Me parece que a intenção era sugerir que o pai estava muito bêbado, o que pode ser um tanto exagerado.

    Ao fim do conto, ele volta a espelhar o primeiro, contrastando mais uma vez com a história do garoto. Vemos aqui que, enquanto o primeiro valoriza as memórias, o segundo as rejeita, cheio de remorso. No fim, o pai é redimido pelo tempo, mas jamais saberá disso.

    Concluí que a homenagem faz um bom trabalho e honra as ideias do primeiro.

    Parabéns e boa sorte no desafio.

  19. Leandro Vasconcelos
    14 de maio de 2025
    Avatar de Leandro Vasconcelos

    Olá! Este é um conto bem denso e introspectivo. A voz narrativa pertence a um pai alcoólatra e ausente, que revisita — já velho, quase espectral — os espaços da família que abandonou. O texto trata de remorso, ausência paterna, legado emocional e memória afetiva, com forte carga simbólica sobre os sapatos: o que o pai mais deseja é que os filhos não os calcem, ou seja, não trilhem seus caminhos de miséria.

    Gostei do estilo do autor. O texto conta com metáforas poderosas; cada ação e descrição é carregada de significados emocionais. O “cigarro colado à baba”, os “sapatos-mensageiros”, o “remorso como morro sempre visível no horizonte” são exemplos de como a linguagem articula a degradação física com a ruína moral. A narração é conduzida por um fluxo de consciência deliberadamente lento, errante como o próprio personagem, oscilando entre passado e presente de maneira elíptica e dolorosa.

    Este talvez tenha sido o principal trunfo do autor: transmitir com crueza a melancolia da vida do protagonista, sem carregar demais o escrito com impressões próprias, conferindo fidedignidade ao relato pessoal do moribundo.

    Algumas coisas, porém, incomodaram-me. Primeiro, tive dificuldade em identificar quaisquer dos temas do desafio. Disseram-me tratar-se de uma fanfic de outro conto do EC. Se não soubesse de tal informação, provavelmente acharia que era uma obra derivada de algum clássico, como São Bernardo ou Memórias Póstumas de Brás Cubas, embora sem se referir diretamente a elas, exceto pelo estilo em primeira pessoa em caráter confessional e enredo ligeiramente parecido. Mas, mesmo assim, fico a indagar se realmente pode ser enquadrada no gênero “fanfic”.

    Outro ponto: apesar de ser um texto de alta qualidade literária, escrito com esmero e sensibilidade, tem um ritmo muito lento a ponto de ficar cansativo. Reitero que a beleza das construções compensa esse efeito negativo, sobretudo porque nos remete a grandes clássicos da literatura brasileira; só que poderia ser mais dinâmica, com mais diálogos e, sobretudo, uma maior participação dos outros personagens.

    Toda a história se dá a partir do ponto de vista do pai. Isso faz sentido, dado o gênero confessional, mas a ausência completa de vozes dos filhos ou da esposa, além de engessar a narrativa, pode reforçar o apagamento deles como personagens. Seria interessante, talvez, um vislumbre da reação da família, ainda que mínimo.

    O texto também soa repetitivo, talvez reflexo da mente confusa e viciada do protagonista. Mas também aparece um pouco de prolixidade, que poderia ser sanada se a narrativa fosse mais dinâmica, como dito.

    Enfim, de todo modo, é um conto muito belo, profundo, e que me agradou. Parabéns ao autor!

  20. Augusto Quenard
    13 de maio de 2025
    Avatar de Augusto Quenard

    Bom, o primeiro ponto a observar é que não consigo pensar no texto como chubesco, ou infantojuvenil ou fanfic.

    De resto, achei uma prosa quase poética bonita, mas talvez haja uma repetição excessiva de cenas, de idas e voltas. Entendo que a repetição é importante para a construção do tempo, da hesitação do pai, da procriação dos filhos, mas talvez possam se acrescentar outros elementos a cada ida e vinda, como o burrinho.

    Sugestão pro final, também, ele dizer isso que fala de algum modo para o filho, ou para o neto, ou ver o filho falando isso para o neto. Não sei, algo que fique na diegese do conto, não só no discurso. de repente seria mais emotivo. Só uma ideia.

  21. Luis Guilherme Banzi Florido
    9 de maio de 2025
    Avatar de Luis Guilherme Banzi Florido

    Boa tarde!

    “Escreva outra historia”. Voce decidiu concluir o conto usando uma frase que representa a propria ideia por tras da sua historia: uma reimaginação, um recontar, um reescrever. Me lembrou aquele programa “profissao reporter”, que mostrava a mesma hisrtoria por diferentes pontos de vista.

    Temos aqui uma fanfic do conto do Andre (ideia muito legal, alias, o Andre deve ter ficado lisonjeado hahaha). Aqui, vemos tudo do ponto de vista do pai. O conto é mais cru, pois vemos a realidade dos olhos do pai, desesperançoso, cansado, derrotado. No conto original, viamos tudo do ponto de vista oposto, o do filho. Tudo mais esperançoso e inocente. Voce trabalhou bem essa ideia.

    O conto, desse modo, é meio que uma versao espelhada do original, mostrando as mesmas situações, mas de outro prisma. A ideia é legal, mas o conto acabou ficando um pouco cansativo, pois é a mesma historia, de novo. Então acho que isso acaba funcionando como uma faca de dois gumes. Nao vai funcionar para quem nao leu o conto original, e vai ficar repetitivo para quem leu.

    O final é onde o conto brilha, onde os dois personagens se separam e as historias seguem rumos diferentes. Aqui, a coisa fica mais interessante. Talvez, se tivessemos mais disso ao longo do conto, sei la.

    O final é bonito e tocante, assim como o original, e homenageando o original.

    Enfim, um bom trabalho, uma ideia curiosa e criativa, mas que acaba perdendo em ritmo por repetir uma historia ja conhecida.

    Parabens e boa sorte!

  22. Rangel
    5 de maio de 2025
    Avatar de Rangel

    Olá, senhor Pai do Filho do Meio.

    Você fez uma bela homenagem a um colega seu de desafio, utilizando a história dele para compor a sua pela perspectiva de outro personagem.

    Nisso, você soube aproveitar a história primeira e tirar bastante suco dela. Tanto nos eventos, quase todos re-narrados pelo olhar do pai, quanto a própria história e estilo de narração. É quase impossível distinguir o seu narrador do “original”, pois têm as mesmas falas, o mesmo tom. É um pastiche, homenageando um estilo de escrita.

    Isso é excelente e, certamente, lhe trará vantagens, pois o primeiro conto é bom, poético, com imagens lindas que aqui são reproduzidas com palavras exatas ou aproximadas.

    Assim, é um texto bem escrito e visão do pai, quebra a primeira história, tirando dele a aura de bom.

    Bom agora vou às críticas. O texto é excelente, mas me parece que o que ele tem de mais interessante é mérito do texto de referência. O narrador em primeira pessoa me parece um homem simples para uma linguagem tão rebuscada e poética. Eu esperava desse pai mais brutalidade na narração. Algo mais direto. Vejo nesse pai, completamente o filho e não pareceu tão convincente.

    A reprodução “frame” por “frame” da primeira história é inteligente, mas te deixa num lugar muito seguro, incapacitado de errar ou de surpreender. Veja não é ruim, mas para mim, funcionaria melhor se fosse do mesmo escritor. Apesar de que ainda assim continuaria o problema do estilo de contação do pai ser idêntico ao do filho.

    O último parágrafo é lindo. Você brilha ali.

    Então é isso, curti muito, mas achei que a régua ficou desigual.

  23. toniluismc
    5 de maio de 2025
    Avatar de toniluismc

    👞 OS MEUS SAPATOS (Pai do Filho do Meio)

    💀 Ou: Como transformar um conto forte em um eco enfadonho de si mesmo

    📉 PRIMEIRA IMPRESSÃO

    Imagine que alguém lê um conto tocante, enxuto e dolorosamente humano — e resolve respondê-lo com um texto que parece saído de um workshop de “Como soar profundo usando mil palavras por pensamento simples”. O resultado é esse: um espelho do original, mas manchado, embaçado e inchado de vaidade estilística.

    Este texto tem um dos maiores pecados possíveis numa coletânea de fanfics: usa o texto alheio como muleta emocional para justificar uma verborragia que não se sustenta sozinha. A ideia não é ruim — um pai que tenta revisitar sua ausência através da mesma linguagem simbólica que o filho usou — mas a execução se afoga num poço de pretensão e cansaço narrativo.

    ✍️ 1. Técnica — Nota: 2.8

    Pontos a favor:

    • O autor domina a linguagem formal, isso é evidente. O texto tem construções elaboradas, ritmo lírico e imagens potentes aqui e ali.
    • A escolha vocabular é refinada, e em alguns trechos até convence: há passagens sobre o burrico, sobre o varal e sobre o envelhecimento que quase emocionam.

    Mas…

    • O texto é um desfile de frases pomposas tentando justificar a própria existência. É como se o autor dissesse: “Olhem como eu escrevo bonito!” — e esquecesse de contar uma história.
    • Repetição de estruturas, com períodos longuíssimos que se tornam ilegíveis em voz alta. Um texto denso precisa de pausas, de contraste. Aqui, temos um rolo compressor de sintaxe poética que se transforma rapidamente em encheção de linguiça rebuscada.
    • O maior erro técnico? Fingir ser original quando é dependente. Não é uma fanfic, é uma sombra prolongada do conto original.

    🔎 Resumo técnico: É um exemplo clássico de domínio estilístico sem propósito narrativo claro. Um monólogo interno que se multiplica sem necessidade, perde a força do impacto inicial e soa como autoparódia do conto que o inspirou.

    🎨 2. Criatividade — Nota: 1.9

    E aqui está o colapso.

    • O texto não é criativo. Ele responde a outro conto com os mesmos elementos, mesmos gestos, mesmas simbologias, apenas trocando o ponto de vista. Fanfic? Talvez. Releitura sensível? Nem tanto. Soa mais como aproveitamento emocional da densidade do original para tentar criar profundidade onde não há novidade.

    O burrico Risonho, por exemplo, é um acréscimo que tenta ser lírico, simbólico, doce. Mas vira piada interna demais, nomeado por uma criança num momento que deveria soar sensível — mas termina parecendo uma tentativa de aliviar a narrativa artificialmente.

    🔎 Resumo criativo: É como se alguém escrevesse “O Pequeno Príncipe 2: A Volta do Aviador”, só que sem sutileza, sem expansão de universo e sem charme. Um parasita narrativo do conto original, sem coragem de andar com os próprios pés (ironicamente, mesmo sendo um conto sobre sapatos).

    💥 3. Impacto — Nota: 2.3

    O conto tenta ser impactante a cada parágrafo. E é exatamente isso que o torna cansativo.

    Impacto real exige contenção. Mas aqui, o autor joga peso em tudo:

    • O esgoto soa poético,
    • O cigarro vira símbolo existencial,
    • A portinhola é metáfora de retorno,
    • O silêncio é discurso,
    • A dança do varal é epifania.

    Chega uma hora que o leitor não sente mais nada. Está anestesiado pela estética do excesso. A emoção que poderia surgir do reencontro (ou da impossibilidade dele) é sabotada pela quantidade de palavras entre a ação e o sentimento.

    🔎 Resumo do impacto: Um conto que tenta esmagar o leitor com poesia, mas esquece de dar espaço para respirar. Impactante? Talvez para quem nunca leu o original. Mas quem conhece “Os Sapatos do Meu Pai” verá este como um eco exausto de algo que foi, de fato, pungente.

    🧨 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    “Os Meus Sapatos” é o tipo de conto que acredita que emoção e densidade vêm da multiplicação de metáforas, e não da construção de personagens. A história do pai ausente poderia ser devastadora — mas aqui ela é apenas sufocante.

    A sensação é de estar ouvindo um bêbado erudito contando a própria tragédia com palavras bonitas enquanto você torce para alguém desligar o microfone.

    Resumo cruel em uma frase:

    É um texto que quer ser cortante, mas acaba sendo só cansativo — como sapatos velhos tentando andar por uma estrada já percorrida por outros, com bem mais propósito.

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Publicado às 3 de maio de 2025 por em Liga 2025 - 2A, Liga 2025 - Rodada 2 e marcado .