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Metanol – Conto (JP Felix da Costa)

Metanol: Composto químico de fórmula CH3OH, também conhecido como álcool metílico ou hidrato de metilo, e pode ser caracterizado como líquido, altamente inflamável e com chama incolor.

 

A vida de Ludomila não era fácil. Fora sempre pejada de desgraças. Por vezes, a culpa das desgraças é do destino, por outras, das vicissitudes da vida, ou das coincidências nefastas. Para Ludomila, a culpa não era de nenhuma delas. No seu caso, chegavam sempre por mão alheia. Ou melhor, por duas mãos bem específicas.

Perdera o pai quando ainda era criança. Por razões que nunca ninguém lhe explicou, o pai saiu da vida delas para nunca mais voltar. Nem notícia alguma tiveram, desde esse dia. Se hoje se cruzasse com ele na rua, não o reconheceria. A memória que retinha, de tão tenra idade, não lhe dava os detalhes necessários para efetuar um reconhecimento facial, como costumava dizer. Gostava de usar os termos que ouvia nas séries policiais que tanto lhe agradavam.

Mas não foi propriamente aí que as desgraças começaram. Este evento, que era também, em verdade, uma desgraça, diluiu-se na memória do passado a partir do dia em que a mãe decidiu aceitar um candidato para preencher a vaga deixada pelo pai.

O padrasto, Anastácio de seu nome, a início, ignorava-a. Na altura Ludomila ressentiu-se desse tratamento. Mas, desde o dia em que ele foi viver com elas, desejou que o tratamento se tivesse mantido igual.

Anastácio desenvolveu um apetite muito especial por atormentar Ludomila. A mãe, ingénua, nunca percebeu o tipo de pessoa que acolhera no seu lar.

Começou devagar. Uma pancada aqui, um empurrão ali. Depois veio uma chapada. Aos poucos ia aumentando o nível de violência. Em paralelo, ele apurava as técnicas de chantagem que ela pagava com silêncio. A inépcia da mãe para entender o que verdadeiramente ocorria abriu caminho ao padrasto para escalar as ações.

Era Ludomila adolescente, já a mãe habitava na quinta das tabuletas, encaminhada para a morada eterna por um cancro galopante, quando o prazer mórbido de magoar, de Anastácio, atingiu o auge. Num “trágico acidente” este cegou a enteada num olho. Trágico acidente foi como ficou registado, para memória futura, o evento que negou a Ludomila um mundo a três dimensões. A partir desse dia, Anastácio, como se não bastasse o que fizera, tirava especial prazer em gozar com o aspeto dela e, em tom sarcástico, apelidava-a de Camões, pela pala que usava para ocultar a órbita vazia. Este evento marcou uma mudança no comportamento de Anastácio. O seu tratamento violento passou de físico para psicológico.

Ludomila, já feita mulher, procurou uma forma de se livrar do calvário em que vivia há demasiados anos. A porta de saída mostrou-se no amor declarado de Teobaldo, o jovem padeiro que, nos últimos tempos, fazia as entregas porta a porta.

Mas conseguir ultrapassar a ombreira da metafórica porta, mostrava-se difícil. Apesar de já namorarem às escondidas há algum tempo, das promessas de amor e de Teobaldo lhe garantir ter condições para poderem viver juntos, Ludomila ainda se debatia nas garras do padrasto.

O acumular de um passado de agressões, tanto físicas como psicológicas, avalisou, para Ludomila, a concretização de uma resposta à altura que pusesse término, de uma vez por todas, àquela relação destrutiva em que o padrasto a encarcerava. Muitos chamar-lhe-iam vingança, mas ela apenas o considerava um acerto de contas, pelo que ele lhe cobrara no passado, acrescido de juros.

Numa madrugada, como outra qualquer, pouco tempo antes da chegada de Teobaldo com o pão, Ludomila abriu a porta da rua, para lhe permitir a entrada. Dirigiu-se para o quarto do padrasto, carregando um bidão cheio. Com algum esforço, ergueu-o e despejou o conteúdo sobre ele. O choque com o líquido despertou-o.

— Que vem a ser isto? — Perguntou Anastácio, apalpando o pijama ensopado.

— Metanol — respondeu Ludomila. Sem dizer mais uma palavra, riscou um fósforo e lançou-o sobre ele. O padrasto foi, de imediato, envolvido por um fogo difícil de discernir.

Nesse momento, Teobaldo, alertado pelos gritos de Anastácio, irrompeu pela porta. Impedido de avançar por Ludomila, e perplexo por ver o padrasto a gritar e a se contorcer freneticamente, sem conseguir perceber o motivo desse comportamento, questionou-a.

— O que se passa com ele?

Ludomila dirigiu-lhe um olhar cheio de ternura e respondeu.

— Amor… é fogo que arde sem se ver.

5 comentários em “Metanol – Conto (JP Felix da Costa)

  1. Marco Saraiva
    21 de abril de 2025
    Avatar de Marco Saraiva

    É um conto que constrói a tensão para uma cena específica, avassaladora, com um requinte especial de horror ao fazer o leitor entender que a chama do Metanol é incolor e que, provavelmente, o pai de Ludomila estaria assistindo a própria pele enrugar e queimar sem entender de onde vinha tanta dor. É um conto muito bem escrito e que entrega o que promete com bastante eficácia.

    Parabéns!

  2. Gustavo Araujo
    13 de abril de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    É um conto curto e certeiro, que não se perde em muitas digressões. Uma história de vingança — o acerto de contas — como Ludomila preferiria dizer, que termina com o velho chavão bíblico bem colocado.

    Receio, porém, que o título e a explicação inicial — tipo dicionário — tenham tirado um tanto da força da narração, já que dá para intuir, logo início, que Ludomila haverá de se vingar do padrasto usando metanol.

    De todo modo, é um conto interessante. Creio que se alterar o título e a imagem, tende ficar ainda melhor.

  3. Thiago Amaral
    9 de abril de 2025
    Avatar de Thiago Amaral

    Bom conto. Pra mim, o destaque são as cenas de violência, que causam revolta no leitor.

    No fim, descobrimos que o conto tinha o intuito de terminar numa piada. Tem todo o setup, até chegar ao trocadilho. Consigo ver o autor tendo a ideia enquanto pensava na frase, e bolando toda uma história para justificar o trocadilho. Ficou bom, mas fiquei pensando no porquê dela conectar isso a “amor”. Talvez se o homem dissesse que as porradas eram de amor…. Ou era o amor de Teobaldo que a fez ter a força de escapar do padrasto. De qualquer forma, não ficou claro.

    Fiquei também curioso em explorar a crueldade do homem. Porque ele fazia o que fazia? Sei que o intuito era apenas a punchline, mas…. será que estou sendo chato demais? kkk

    Muito bom como o apelido que ele lhe dá (Camões) serve bem para caracterizar a crueldade e ao mesmo tempo justifica a punchline. Assim o leitor não suspeita do setup. Bom trabalho!

  4. Kelly Hatanaka
    8 de abril de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Um conto terrível sobre relações abusivas. Interessante como uma vida de abusos impediu Ludomila de simplesmente sair daquela situação e buscar uma vida nova. Não há como aplicar lógica a sentimentos. Pode-se dizer que o padrasto colheu o que plantou.

  5. Givago Domingues Thimoti
    7 de abril de 2025
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Oi, JP!

    Tudo bem?

    Esse é um conto sucinto, abrupto, duro. O tom combina com a dureza da realidade da violência doméstica entre homens e mulheres.

    Está bem escrito, no geral. Pessoalmente, senti alguns entraves na leitura. Talvez pela diferença entre a linguagem portuguesa e a brasileira. Talvez por sintetizar o máximo de informações da narrativa dentro das frases.

    No mais, é um bom conto!

    Obrigado pela contribuição na Área Off!

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Informação

Publicado às 6 de abril de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .