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Detox Literário.

A história de um carro – Conto (Felipe Lomar)

Ainda me lembro do dia em que saí da concessionária. Era um belo dia de verão no Rio de Janeiro. A luz do sol iluminava minha pintura vermelho-álamo, última tendência da época. O senhor Jarbas Bulcão era o mais novo orgulhoso proprietário de um Chevrolet Caravan SS modelo 1977. O  possante ronco dos meus seis cilindros impunha respeito, e os transeuntes paravam para admirar o desfile dessa joia automobilística que vos fala. Jarbas me dirigiu até sua casa no Jardim Guanabara, um bairro afluente da Zona Norte. As ruas adornadas com árvores, canteiros e belas mansões transformavam o dia em um cenário Hollywoodiano. Minha vida útil começava em grande estilo.

Desde o primeiro dia, me tornei o xodó da família. E que família! Senhor Jarbas, executivo de uma grande corretora da Bolsa de Valores, era um homem inteligente e firme, que se empenhava para educar os filhos. Marília era uma esposa dedicada e mãe amorosa. E os filhos, Julinho, uma criança fofíssima, e Laurinha, uma linda jovem, eram as bênçãos da casa. A rotina consistia em deixar Julinho na escola, Laurinha na faculdade e me dirigir até o centro da cidade, para o trabalho de Jarbas, que me estacionava em um edifício-garagem. Marília ficava para cuidar da casa com a empregada, que assim como eu, era parte da família. Nos feriados e férias, dirigíamos até algum hotel de luxo na serra e ocasionalmente até o aeroporto ou o terminal de cruzeiros.

Laurinha tinha uma relação especial comigo. Em alguns finais de semana, ela pegava minhas chaves e fazíamos a longa jornada até a praia da Macumba, para encontrar alguns amigos. No rádio, os últimos sucessos de Rita Lee, Raul Seixas e Novos Baianos. Na boca do broto, um Camel. Meu porta-malas era enchido com pranchas de surf, violões e ervas para “viagens espirituais”. Foi em uma dessas aventuras que a menina conheceu João, e ele passou a sentar regularmente no meu banco do carona. Certa vez, esperaram escurecer e dirigiram até o mirante da prainha, onde com a trilha sonora do mar e a luz das estrelas, após um baseado e uma conversa sobre o universo, se amaram no banco de trás. Laurinha levou de seu pai uma bela bronca por chegar tarde, que também lhe aplicou uma surra com um cinto, em uma de suas várias tentativas de podar da filha os hábitos considerados inapropriados para uma garota de família.

Com o tempo e o aumento dos quilômetros rodados, os problemas aparecem. A empresa de Jarbas começou a ser investigada pela Polícia Federal. Era preciso ter discrição e os lucros já não eram mais os mesmos. Certo dia, Jarbas e outro funcionário encheram meu porta-malas com caixas cheias de papéis, que viraram uma grande fogueira em um terreno baldio. Em casa, o cinto que acertava os filhos passou a acertar também Marília, que afogava as mágoas no uísque. As viagens espirituais de Laurinha aumentaram em quantidade e diversidade de substâncias, até que estas foram substituídas por um pó branco. Além de João, outros homens e mulheres eram convidadas por ela para conhecer meu banco de trás, algumas vezes mais de um por vez.

Nos eventos sociais, porém, nada transparecia. Era necessário manter as aparências e as relações, fundamentais para os negócios. O esforço era cada vez maior, até não ser mais possível disfarçar. Uma noite, a casa desabou com berros e choros copiosos: Laurinha estava grávida. Não sabia quem era o pai. E agora, como contornar a situação? Abortar? Arrumar um casamento de fachada? As semanas foram passando e a barriga ficava cada vez mais difícil de esconder. Era visível o aborrecimento e decepção da agora senhora Laura com tudo aquilo. A outrora menina aventureira e livre mal saía de casa para não ser vista. No meio de uma madrugada, ela pegou minhas chaves. Quis dar uma volta para lembrar os velhos tempos. Ignorou o cinto de segurança que apertava a família. Rodou alguns minutos pela vizinhança e decidiu ir um pouco mais longe. O vento gelado da noite aliviava e acalmava seu coração. Na estrada do Galeão, um pouco antes de uma curva, o peso da realidade e o efeito dos remédios deram um contragolpe e prevaleceram. Laura adormeceu.

Fui mandado para o conserto, assim como Laura, mas ela não voltou. A família perdeu o espírito naquela noite. Jarbas parou de trabalhar, foi perdendo aos poucos a fala e os movimentos até precisar de ajuda para tudo. Marília nunca mais sorriu e passou a beber mais ainda. Evitava entrar na garagem, por não aguentar olhar para mim. Contratou uma governanta para cuidar do Julinho e mandou a empregada embora com uma mão na frente e outra atrás. E aquela história de ser parte família? Era também só fachada? Comecei a me sentir isolado. Sem função.

Os meses passavam e eu acumulava uma grossa camada de poeira. Até que um dia a porta da garagem abriu. Marília me vendeu por um preço abaixo da média para se livrar do que causou a morte da filha, segundo ela. Para minha sorte, o comprador era familiar: Severino, o porteiro da empresa de Jarbas, e Carlos, seu primogênito, recém-contratado como contínuo. Pagariam o valor em prestações. Em um dia ensolarado de verão, saí pela última vez daquela garagem.

Severino morava na Penha. A rua esburacada e com fios emaranhados nos postes não lembrava em nada o Jardim Guanabara. Cacos de vidro adornavam o topo dos muros. A família era numerosa, composta pelo casal Severino e Ângela, Carlos e os outros filhos, os pais de Ângela e uma tia de Severino. Meu trabalho era mais fácil pois eles iam para o trabalho de trem. Ao entardecer, os mais velhos colocavam cadeiras na calçada em frente ao portão e a fofoca corria solta. A vida da família era um livro aberto e os vizinhos sabiam até demais sobre eles.

Nos finais de semana, íamos até o parque da Quinta da Boa vista. Do estacionamento, podia ver as crianças rolando na grama, que depois iam ao zoológico ver o macaco Tião jogando cocô nas pessoas que passavam na frente de sua jaula, e por fim viam os esqueletos de dinossauro e as múmias no Museu Nacional. Às vezes também íamos à praia de Copacabana. O rádio tocava os últimos sucessos de Alcione e Fundo de Quintal. No porta-malas, cadeiras, sombrinha, toalha e uma caixa de isopor que levava o farnel para o dia todo. Os moradores do bairro se incomodavam com a presença dos “farofeiros”, mas eles não ligavam. Eram felizes e se divertiam daquele jeito, com o que tinham. E eu, novamente, me sentia parte de uma família.

Mas como eu disse anteriormente, os problemas sempre chegam com o tempo. Já não era mais um carro novo, e meus milhares de quilômetros rodados e um acidente forte cobravam seu preço. Por mais cuidadosos Carlos e Severino fossem, a manutenção básica já não era o suficiente, e isso significava gastos com peças. Gastos que a família nem sempre podia arcar. Motor de arranque, bomba de combustível, caixa de marchas, carburador, junta de cabeçote… perdi as contas de quantas vezes fui parar na oficina. Em algumas ocasiões, cheguei a ficar meses sem sair da garagem por falta de condições para me consertar. A inflação e os planos econômicos do governo fracassados da década de oitenta pioravam as coisas. Daquele jeito, eu mais atrapalhava do que ajudava, e essa situação me entristecia. Não queria ser um empecilho para a família. Mas não tinha como contornar o fato que não fui projetado para aquela faixa de renda, infelizmente.

Meu tempo com essa família terminou abruptamente em 1989. A quebra da Bolsa de Valores levou ao fechamento da corretora. Com severino e Carlos sem emprego, as coisas apertaram ainda mais. Era preciso pagar as contas e colocar comida na mesa, e não havia espaço para despesas extras. Decidiram me vender.

Não foi uma despedida fácil. Eles ainda tinham uma grande ligação afetiva e eu com eles. Meu novo dono era o seu Armando, dono de um ferro-velho. Após instalar um alto-falante no meu teto, passamos a rodar diariamente pela Zona Norte do Rio, recolhendo máquinas de lavar, televisões, geladeiras e aparelhos de ar-condicionado cuja vida útil já havia se esgotado. O trabalho era pesado. Era uma carga que não fui projetado para carregar, e meu proprietário não era tão cuidadoso na manutenção quanto os outros.

Ao longo dos anos, fui ficando tão cansado quanto os aparelhos que carregava. Minha bela pintura vermelho-álamo foi sendo queimada pelo sol, até começar a descascar. Lascas e arranhões na minha lataria se transformavam gradativamente em pontos de ferrugem. A suspensão traseira sucumbia e nem todos os cilindros conseguiam mais realizar a combustão. Não havia mais motivos para me orgulhar de mim mesmo. Os modelos mais novos eram mais eficientes, mais possantes, mais confortáveis. Restava me conformar com ainda poder rodar, apesar de ser um burro de carga. Quando já se foi tratado com afeto, sente-se a diferença. Havia a saudade de ser parte de uma família, mas também o realismo de que faltava pouco para apodrecer ao relento em um pátio ou ir parar em uma compactadora para reaproveitar a sucata.

O temido dia chegou em uma manhã ensolarada de verão. Seu Armando iria me trocar por um carro mais novo e menos beberrão. Antes, porém, restava pegar a última carga. Achei irônico o endereço do chamado ser no Jardim Guanabara, onde tudo começou. As árvores e canteiros ainda resistiam, mas as mansões davam seu lugar a prédios de apartamentos. Apesar disso, o clima pacato ainda resistia. Paramos em uma rua familiar. Ao toque da campainha, um belo e distinto casal de jovens saiu à calçada. Com certeza havia um carro zero na garagem com tanto prestígio quanto eu tive no meu tempo. Mas a conversa do rapaz com seu Armando não era usual para o trabalho. Ele parecia impressionado comigo. Logo eu, uma lata velha? O que estaria acontecendo? Ao reparar melhor no jovem, reconheci aquele rosto do fundo da memória: Julinho, agora doutor Júlio, se tornara um entusiasta por carros clássicos, e há muito tempo procurava um exemplar do meu modelo, que o lembrava da infância. Assustou-se ao ver um carro da mesma cor do que seu falecido pai tivera. Queria me comprar e me restaurar. Encontrou, porém, certa resistência de Armando, que não entendia o que o rapaz via em um monte de ferrugem. O brilho nos seus olhos ao finalmente ouvir o sim de Armando era indescritível. Colocou-me para dentro da garagem e logo foi providenciar um local para a reforma.

Naquela noite, Júlio retornou à garagem. Parou ao meu lado e ficou um tempo me admirando em silêncio. Era possível ver sua emoção através de seus olhos marejados e suas mãos trêmulas. Ainda não conseguia acreditar que aquilo era real. Respirou fundo, gentilmente colocando a mão sobre meu capô e olhando bem no centro do meu para-brisa. Com um breve sussurro, pude me assegurar que  minha nova jornada seria especial:

— Vou te chamar de Laurinha. Você agora é parte da família.

………………………..

Conto vencedor do desafio “narradores inanimados” no já desativado Clube do Conto, promovido pela Lume Literatura

5 comentários em “A história de um carro – Conto (Felipe Lomar)

  1. Thiago Amaral Oliveira
    30 de janeiro de 2025
    Avatar de Thiago Amaral Oliveira

    Primeiro tenho que confessar uma coisa: odeio carros. Não que eu não dirija, ou quisesse que fossem extintos. Eu apenas não me interesso nem um pouco pelo assunto. Modelos, sistemas, nomes estranhos de suas partes mecânicas. Quero fugir de tudo isso.

    Por sorte, seu conto não é exatamente sobre isso. Aqui, o carro é tomado como um personagem um tanto humano, e vemos a passagem de sua vida assim como de uma pessoa qualquer. Claro que, pelo privilégio de sua espécie, temos também o provilégio de conhecer mais de uma família por dentro, além dos diferentes pontos no tempo e história brasileira que esse carro percorre.

    Essa viagem tanto no tempo quanto no espaço é feita por uma narrativa leve e muito bem escrita. Flui que é uma beleza, assim como passear por rodovia espaçosa. Logo no início, senti um excesso de positividade que já sugeria a vinda de problemas na família abastada. Não deu outra… logo depois, imaginei que o final seria no ferro-velho, triste fim do carro que apenas queria ter uma família. Mas não, ele era especial para pelo menos uma pessoa. Assim como outros como ele, acaba como artigo de luxo, fazendo um hmano excêntrico (na minha perspectiva) muito feliz. Final feliz para uma vida cheia de altos e baixos.

    Como já disseram, primeiro lugar merecido para uma leitura redondinha, competente e com bastante entretenimento. Valeu demais.

  2. Marco Saraiva
    17 de janeiro de 2025
    Avatar de Marco Saraiva

    (nota: estou escrevendo com um teclado gringo, entao perdao pela falta de acentos!)

    Rapaz, muito legal a leitura!

    Para dizer a verdade, ate a primeira metade do conto eu estava achando a leitura boa, mas simples e sem muita novidade. Inclusive, bastante deprimente, com todas as tragedias na familia rica que primeiro o comprou. Achei interessante a ideia de acompanhar a vida daquela familia atraves dos olhos do carro. Foi uma ideia peculiar e que trouxe um ponto de vista diferente a narrativa… e soh.

    Mas depois de um tempo, lentamente entendi que a historia nao era sobre a familia. Era sobre o carro. E vendo ele como personagem principal, nao apenas um narrador, inconscientemente fui gerando uma ligacao afetiva com ele. E conforme vi o tempo corroe-lo, imaginei o seu inevitavel fim: largado em um ferro-velho em algum lugar, destruido. E tenho que admitir: fiquei ansioso, ja antecipando a tristeza que sentiria!

    E ai veio o final inesperado, e terminei a leitura com um sorriso no rosto.

    Muito bom!!

  3. André Lima
    14 de janeiro de 2025
    Avatar de André Lima

    Contaço que vai ganhando peso, forma e beleza ao longo da leitura.

    É uma crescente admirável… Confesso que não esperava que fosse gostar tanto da história, com base nos primeiros parágrafos. Grata surpresa!

    Gosto muito dessa ideia de confundir histórias, objetos e pessoas, entrelaçados numa linha narrativa bonita. A poética aqui é, ao fim da leitura, na medida.

    Parabéns! Gostei bastante!

  4. Antonio Stegues Batista
    12 de janeiro de 2025
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Merecido primeiro lugar, é uma história interessante, excelente a ideia sobre o tema, objetos inanimados, a história do carro e das famílias que o possuíram, a ambientação também dá um toque especial à narrativa. Nota 9,9.

  5. Kelly Hatanaka
    10 de janeiro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Amo este conto!

    A história do carro, que se mistura à história da família, que mostra a passagem do tempo e, por fim, volta a sua origem, é comovente e muito bem conduzida. Um conto perfeito em que nada sobra e nada falta.

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Informação

Publicado às 10 de janeiro de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .