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Detox Literário.

Sedução Amazônica – Artigo (Gustavo Araujo)

É inegável a revolução provocada pela Amazon no universo da escrita e da leitura. Em pouco tempo, a gigante americana permitiu que novos escritores publicassem diretamente suas obras sem intermediários, possibilitando a competição direta com grandes editoras e medalhões da literatura.

O chamado Kindle Direct Publishing – KDP foi lançado há mais de dez anos e vem se aperfeiçoando cada vez mais com o propósito de difundir a literatura como nunca antes – e também para gerar lucros para empresa como nunca antes.

É fácil deixar-se encantar pela promessa de sucesso e ganhos financeiros que, até então, pareciam restritos a autores consagrados. As redes estão repletas de ilustres desconhecidos celebrando vendas astronômicas com livros sobre os quais nunca ouvimos falar. A própria página do Kindle contribui para a consolidação da miragem: livros e mais livros de gosto duvidoso figuram como mais vendidos, não raro com milhares de avaliações e centenas de resenhas.

Como não entrar nesse mercado? Essa é a pergunta que todo autor se faz, seja alguém que ainda aspira ao sucesso, seja alguém já tarimbado. A promessa de sucesso é boa demais para ser ignorada.

Claro, também eu resolvi experimentar. Há mais de dez anos coloquei as versões digitais de “O Artilheiro” e “A Arte de Viajar no Tempo” no KDP. Logo em seguida, lancei o “Pretérito Imperfeito” por lá também, além de contos esparsos e histórias infantis escritas sob pseudônimo.

Sim, acreditei no sistema. Mergulhei no emaranhado de regras a respeito de royalties, locais de disponibilidade, custos envolvidos, descontos, promoções e marketing. Mesmo deixando mais da metade dos possíveis lucros à empresa, parecia ser um ótimo negócio.

Entusiasmado, pensei que se avaliasse livros outros poderia ser recompensado pelo algoritmo amazoniano e ter meu perfil de autor sugerido ao público em geral, aumentando assim minhas chances de venda.

Sim, eu acreditei.

Escrevi mais de cem avaliações que geraram mais de 30 mil interações para a Amazon, ajudando a promover obras de outras pessoas, de outras editoras, de outras empresas e, no fim, promovendo a própria Amazon. Isso, no entanto, não me trouxe qualquer benefício. As interações com meu perfil ou o incremento nas minhas vendas por conta dessa estratégia foram nulos. Percebi que deveria seguir a cartilha: meus livros jamais decolariam se eu não aderisse às promoções sugeridas ou me entregasse a um marketing violento com os passos sugeridos pela própria Amazon.

Nesse momento comecei a entender o óbvio. Que por trás da miragem de democratização da literatura há uma espécie de sucateamento da escrita. Que ao menos noventa por cento dos autores KDP passam por experiência semelhante. Empenham-se verdadeiramente, mas quem lucra de verdade, e de forma pornográfica, é a Amazon.

Trabalhamos em troca de migalhas, na esperança de nos transformamos em ilustres-desconhecidos-que-vendem-milhares-de-livros-todo-mês.

Patético.

Certo dia recebi um email da Amazon dizendo que muitas das minhas avaliações estavam disponíveis em outras plataformas e que isso não seria permitido. Que se eu não adotasse providências para proteger a alegada exclusividade teria todos os reviews de minha autoria deletados e meu perfil tornado restrito. Tudo o que me restaria, nessa hipótese, se resumiria a compras online.

Eu ri.

Claro que não apaguei resenha alguma publicada no Entre Contos, no Instagram, no Skoob ou qualquer outro lugar. Logo, todos os mais de cem reviews com suas 30 mil interações desapareceram do universo do Jeff Bezos. Assim, instantaneamente.

Além de trabalhar sem receber nada em troca, toda minha a produção foi parar no lixo.

Venci a inércia e entrei no KDP para desativar todos os livros que havia publicado por lá – alguns ainda permanecem disponíveis, contra minha vontade, devido a uma carência prevista nas regras contratuais. Também apaguei meu perfil de autor. Nada disso fiz por raiva ou por revanche, mas porque percebi, enfim, que não queria fazer parte de um sistema que, no melhor estilo “Revolução Industrial”, explora seus “parceiros” em nome de uma lucratividade deletéria e unilateral. Se vivo fosse, Emile Zola seria anti-Amazon, com certeza. Germinal ganharia uma nova edição.

Claro que minha desistência – ou melhor, meu despertar – em relação à Amazon não vai arranhar sequer a partícula mais elementar daquele universo. Dificilmente vai convencer qualquer um a deixar a plataforma.

Mas, pessoalmente falando, é inegável e especialmente libertador saber que há vida fora dele. Sempre houve.

Os risíveis royalties que recebi por conta das versões digitais das obras que disponibilizei na selva do KDP – mesmo com todo empenho – jamais se aproximaram do que obtive com as vendas diretas das versões físicas desses mesmos livros. Não, nunca foram um sucesso estrondoso, mas comparativamente acabaram gerando um retorno muito mais interessante, tanto em números como em interação com os leitores. E o que é melhor, sem qualquer “parceria” corrosiva.

Certo está o escritor Guilherme Cavallari, da Editora Kalapalo. Melhor produzir, editar, divulgar e vender diretamente os próprios livros do que render corpo e alma a uma empresa estrangeira que há de se beneficiar de todo o seu esforço deixando a você apenas as migalhas. E que sequer sabe quem você é.

É assim com autores. É assim com editoras, em especial editoras pequenas, que se veem esmagadas pelos recursos e pela influência inelutáveis. É assim com a logística que sufoca “colaboradores”. Mas isso é assunto para outro artigo.

10 comentários em “Sedução Amazônica – Artigo (Gustavo Araujo)

  1. André Lima
    27 de junho de 2025
    Avatar de André Lima

    Triste realto. O que poderia ser uma excelente plataforma para gerar uma espécie de comunidade em torno da escrita, não passa de mais uma das muitas ferramentas da modernidade de vender ilusões. Eu acrescentaria ainda o crescimento enorme de livros gerados por IA…

    O algoritmo não favorece quem de fato produz. Me pergunto também se isso não é um reflexo da indústria editorial que sempre tivemos…

  2. Thiago Amaral
    31 de janeiro de 2025
    Avatar de Thiago Amaral

    Interessante seu relato, Gustavo. Eu nem fazia ideia dessa novidade literária na Amazon. Infelizmente, as relações de poder ainda são assim na nossa sociedade: quem pode, usa quem não pode até a última gotinha, espremendo bem.

    Ainda bem que não dependemos mais tanto da “mão invisível” do mercado, pelo menos. Como diz Eduardo Moreira, “cuidado com a mão invisível do mercado, porque ela vai passar a mão no seu bolso” hahahah

    Feliz será o dia em que poderemos viver de nossas paixões. Espero que encontre caminhos melhores.

  3. leandrobarreiros
    30 de dezembro de 2024
    Avatar de leandrobarreiros

    É isso, sem tirar nem por.

    Não dá para fazer um acordo com o diabo e ter esperanças de que há qualquer preocupação dele para com você.

    A nossa relação com a escrita é uma coisa muito estranha. Não acho que seja só um fenômeno no Brasil, mas por aqui fica mais fácil de distinguir algumas coisas. É de tirar o sono pensar na quantidade de escritores de alto calibre com quem eu tive o prazer de competir junto e saber que eles ainda enfrentam uma barreira para se tornar profissionais exclusivos da literatura.

    Eu acho que a escrita em certa medida sofre algo similar às ciências humanas. Como a matéria prima dos escritos são as palavras e via de regra todo mundo consegue produzi-las, o valor da qualidade acaba se diluindo. E fica difícil ser encontrado por um público, ainda mais em uma conjuntura que facilita a produção em massa dessas obras.

    O mesmo acontece com filosofia, sociologia, pedagogia, história e outras ciências humanas. Como parte da matéria prima dessas ciências são as palavras e, de novo, via de regra todos conseguem organizar um discurso, os trabalhos dos filósofos, sociólogos e historiadores acaba sendo desqualificado frente a um cálculo estrutural, já que aqui uma minoria tem a matéria prima necessária para a construção do serviço. É claro que dificilmente um leigo consegue entender uma obra de ciências humanas sem estudo prévio ou muito esforço, mas a ilusão de compreensão é mais fácil.

    Me lembro de um engenheiro civil desqualificando Paulo Freire por ele fazer um esforço em “falar difícil”, sem entender que os conceitos e concatenamento de ideias do Freire não foram organizados para serem difíceis, mas que utilizavam uma linguagem específica da filosofia, da sociologia e da pedagogia que demandavam um arcabouço teórico que o engenheiro não tinha.

    No campo das artes acho que a escrita é a que mais sofre com isso. Um artista plástico ou um desenhista tem um conjunto específico de ferramentas que a maioria das pessoas não têm, mesmo no seu nível mais elementar. Assim, há um reconhecimento quase imediato do grande público.

    Contudo, todo mundo consegue imaginar uma cena. E “todos” conseguem escrever, ao menos no nível mais elementar. Daí temos essa inundação de conteúdos de baixa qualidade, porque imaginar e saber palavras é bem diferente de conseguir organiza-las de modo a contar uma cena, quem dirá uma história.

    Mar de palavras, dificuldade de encontro com um público e corporações maximizando o lucro em detrimento do artista e do trabalhador no geral.

    Mundo difícil esse.

    Mas, mesmo diante desse cenário em que tudo parece perdido, temos o Entrecontos, a Caligo e os amigos escritores daqui que sempre tentam ajudar uns aos outros no crescimento artístico.

    Aproveito para agradecer a você, Gustavo. E ao Fabio, por todo trabalho que vocês fazem para manter isso daqui. Bem como aos escritores que sempre estão aqui, a Bia com o apoio na Caligo e todo mundo que já ajudou a administração. Não sei se vocês tem noção de quão importante são na vida das pessoas.

    • Thiago Amaral Oliveira
      31 de janeiro de 2025
      Avatar de Thiago Amaral Oliveira

      Acredito que, em relação às Ciências Humanas, não é apenas o “material” empregado que causa a desvalorização da área, mas também a crença de que não tem valor, não serve pra nada.

      Na minha área, a Filosofia, é particularmente irônica, pois muitos acham inútil, mas se discute moral em todo lugar, o tempo todo… rsrs Se discute Filosofia sem nem saber, e se defende linhas filosóficas sem saber que estão fazendo isso.

      Os ganhos por investir nessas áreas são subjetivos demais, não tão quantitativos quanto na Engenharia, por exemplo. Ainda estamos na era das trevas.

  4. JP Felix da Costa
    30 de dezembro de 2024
    Avatar de JP Felix da Costa

    Compreendo-te perfeitamente…

    Como não escrevo com o objetivo de ganhar dinheiro (contento-me em não perder), opções como a Amazon ou a bookmundo (este tem a vantagem de dar para imprimir livros sem ter de vender online) são interessantes porque são a custo zero. No mundo em que a literatura está tão massificada, em que editoras de vaidade e online dão palco a qualquer um, tornou-se quase impossível ter garantias de um mínimo de qualidade quando se encontra um livro. Já nas editoras “normais” esta garantia não é certa, quanto mais nestas editoras que não filtram nada. Esta combinação, de quantidade e falta de qualidade, em editoras cujo lucro não é promover os autores, mas viver deles, abafa o que de qualidade vai sendo produzido fora dos cânones editoriais clássicos. Por saber isto, dedico-me à escrita por gosto, pela partilha, procurando fazer sempre melhor, mas sem quaisquer sonhos de daí lucrar financeiramente.

    O engodo que estas editoras lançam (a Amazon não é a única) oferece um mundo de sonho, de reconhecimento e ganhos financeiros. Mas, como todas as máquinas de marketing, o objetivo é apenas enredar o autor e tirar lucro do trabalho dele com um mínimo de esforço e investimento.

    Eu, do lado de cá do charco, percebo que as editoras não procuram apostar em novos talentos, apostam em pessoas que sejam conhecidas, mesmo que o que escrevem seja de qualidade duvidosa. O que interessa é a garantia de vendas que a fama, por outros motivos, promete. Ou seja, nos dias de hoje o formato é “ganha nome e depois escreve um livro” e não ao contrário.

  5. Kelly Hatanaka
    30 de dezembro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Meus resultados na amazon são quase nulos. Mas, preciso reconhecer que eu invisto zero energia em divulgação. Em boa parte porque não estou contente com o que produzi até agora. Em 2025, pretendo sumir com tudo e começar de novo. Quem sabe?

  6. Priscila Pereira
    28 de dezembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Felizes são aqueles que escrevem por prazer e encontraram uma comunidade de leitores/autores sinceros e interessados! Vida longa ao EntreContos!

  7. Leo Jardim
    28 de dezembro de 2024
    Avatar de Leo Jardim

    Boa, chefe. Depois de um relato desses, a pouca vontade de investir nessa ferramenta morreu de vez.

  8. danielreis1973
    28 de dezembro de 2024
    Avatar de danielreis1973

    Agora, aprofundando a análise: se antigamente era difícil estar sob as asas de uma grande editora/gravadora, hoje é quase impossível. O dinheiro de advances não existe (já que não apostam, nada é mais por encomenda, pois todos querem o produto “pronto”, seja um livro de 250 páginas, seja um álbum com 10 ou 12 faixas). E, de preferência, que venha com um público cativo de brinde – público de influencer, é o mínimo que se espera de nós…

  9. danielreis1973
    28 de dezembro de 2024
    Avatar de danielreis1973

    O mundo anda tão complicado… com música é a mesma coisa, Spotify, Deezer, etc. Acho que certo estava o Plinio Marcos, que ia para a porta do teatro vender seus poemas, mimeografados. Ganhava mais do que com os direitos das suas próprias peças, ali encenadas. Na música, o Agnaldo Timóteo cantava na praça e vendia seus CDs de mão em mão. Pelo menos esses a gravadora não roubava dele…

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Publicado às 27 de dezembro de 2024 por em Artigos e marcado , .