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Detox Literário.

Cuspido e escarrado – Conto (Kelly Hatanaka)

Dona Eleutéria e sua filha, Mariana, escolhiam feijões. Mariana, amuada, máscara de lama negra no rosto e toalha nos cabelos, teve que adiar a pintura das unhas porque a mãe precisou de sua ajuda para preparar a feijoada do dia seguinte. Conversavam sobre a família, que viria comemorar o aniversário de vó Rita.

— Ah, esse menino! Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento… — Dona Eleutéria falava de Miltinho, filho de sua prima.

— Como assim?

— Ué, não está sabendo? Miltinho foi pego fumando um daqueles cigarrinhos estranhos. Ficou falando que era cigarro de palha. Pois bem, cigarro de palha não deixa o olho vermelho daquele jeito!

— Não, mãe, disso eu sei. Eu não entendi essa história de pão bolorento.

— É modo de dizer, minha filha. Significa que a criatura parece um anjo de candura por fora, mas é uma cria do demo por dentro.

Feijão bom, pra tigela. Pedrinha, pro canto. Mariana deu um piparote em uma pobre formiga perdida.

— Sim, mas o que tem a viola a ver com o pão?

— Sei lá, ora, acho que é só para rimar mesmo.

— Mas não faz sentido.

— É uma daquelas coisas que dizem, nem sempre faz sentido. Como “fulano é o pai cuspido e escarrado”. Faz sentido isso? Não faz, mas é o que se diz.

— Mas é que está errado, mãe — disse Mariana, ajeitando a toalha na cabeça. — O certo é “fulano é o pai esculpido em carrara”.

— E isso quer dizer o que? Que diacho é “carrara”? – Dona Eleutéria estava começando a perder a paciência.

— Parece que é um tipo de mármore…

— E o que isso tem a ver com ser parecido com o pai?

— Aí eu não sei.

— Pois é isso: não faz sentido. É dito popular, coisa que está na boca do povo, como se o povo soubesse de alguma coisa!

Ficaram quietas por um tempo. Mariana pensando se já não estaria na hora de tirar a máscara do rosto; dona Eleutéria pensando em tirar a conversa daquela aula de português e levar de volta para a velha e boa fofoca.

— Ah, você sabe aquilo que andam falando do padre Lauro?

— O que falam sobre ele? — Perguntou Mariana, fingindo não se interessar.

— Que o homem é bonito demais pra ser padre e que isso não pode ser coisa boa.

— Bobagem desse povo! Porque padre tem que ser feio, ué?

— Não é que tem que ser feio, mas é que se for bonito a tentação é grande, né.

— Que tentação? Só porque ele é alto e simpático, tem aqueles olhos azuis tão bonitos… e as covinhas quando ele sorri…

— Eita, que para quem até pouco tempo nem ia pra missa você andou prestando muita atenção no padre!

— Droga, preciso tirar essa máscara que está começando a pinicar! — Mariana deu um pulo da cadeira e correu para o banheiro. Demorou-se um pouco e voltou um tanto pensativa.

— Vomitou de novo? Não devia ter comido tanto brigadeiro, não disse?

— E o que mais?

— O que mais o que?

— O que mais andam falando do padre Lauro?

— Ah, andam falando que a Daniela, filha da Maria, está apaixonada por ele.

— O quê? Essa é boa! Aquela desenxabida não tem a menor chance!

— Desenxabida? Desmiolada, isso sim! Pois andam dizendo que ela… — Eleutéria olhou para os lados e fez o sinal da cruz — andam dizendo que ela caiu em tentação com o padre.

— Mentira! — Mariana gritou antes que pudesse perceber.

— Que é isso, menina? Que destempero é esse?

— Nada mãe! Só acho desrespeito falar assim do padre, um homem tão santo.

— Santo?! Ah, minha filha, você é muito ingênua! É o que dizem: o hábito não faz o padre.

— Não é “o hábito faz o monge”?

— Tanto faz, é a mesma coisa, Mariana! O que importa é que a dona Isaura tem uma prima que tem uma conhecida que mora em Jundirá, a cidade de onde o padre Lauro veio.

— E?

— E ele saiu de lá às pressas, ninguém sabia o porquê. Até que…

Mariana odiava essa mania da mãe de criar suspense.

— Fala logo, mãe, desembucha!

— Até que foi um tal de mocinhas aparecerem grávidas aqui e ali!

Dona Eleutéria tentava parecer chocada, horrorizada e indignada, mas não conseguia. O prazer da fofoca era grande demais.

— A primeira foi a irmã do sacristão, uma menina que estava se preparando para entrar no convento! Depois, foi a filha do pai de santo. Imagina o trololó religioso, menina! Isso que é sincretismo! Por fim, foi a filha da maior fofoqueira da cidade. Achei isso ótimo, uma questão de justiça divina… que foi, Mariana? Tá passando mal?

Mariana correu em direção ao banheiro.

— De novo? Se continuar assim, vou te levar ao médico. Mas só depois de amanhã. Nem ouse ficar doente antes do aniversário da vó.

— Tá, mãe.

— Conhecendo você, sei bem que é capaz de ficar doente de propósito, só pra eu ajeitar a festa sozinha.

— Tá, mãe.

Mariana estava pálida. Devia mesmo estar se sentindo mal. Eleutéria se sentiu culpada por ser tão dura com ela.

— Comeu direito, menina? Fica com essa mania de dieta depois não para em pé.

— Mais ou menos, nada para no meu estômago.

— Bem feito! Não come nada, mas quando vê brigadeiro, devora a panela toda. Depois fica aí, enjoada.

— É, mãe. Mas fale mais do Lau… do padre Lauro.

— Mais? Ah, minha filha, é como diz aquele velho: “o pior cego é o que não quer ver”. A cidade toda ficou enfeitiçada pelo padre e só perceberam que ele era um safardana quando já era tarde.

— Que velho, mãe? — Mariana estava cada vez mais pálida.

— O velho deitado, ora.

— Que velho deitado é esse, pelo amor de Deus?

— Aquele que dizia essas coisas de sabedoria. Todo mundo fala “é como diz o velho deitado… água sobe em pedra dura tanto faz até que pula”, coisa do tipo. Presta atenção na conversa, Mariana!

— É velho ditado, mãe! Ditado!

— E o que tem a ver lição de escola com sabedoria popular, menina? Affff, eu hein!

— Nada, mãe. Mas e o padre?

— Ah, isso! A melhor parte da história. Ele se escafedeu daqui! Fez o mesmo que fez em Jundirá, cuspido e escarrado!

— O quê?

— Sumiu, desapareceu, pirulitou-se. Ninguém sabe dele. Tem gente ligando pro bispo, pra diocese, pra Roma, pedindo por satisfações e por um novo padre. De preferência um que tenha cara de padre e não de galã da novela das oito.

Dona Eleutéria chorava de tanto rir e tomou um susto quando Mariana saiu correndo pela porta da cozinha.

— Essa é boa, fugiu sem mais nem menos. Agora fiquei sozinha pra fazer a feijoada.

Ficou pensando que a filha deve ter ido à farmácia comprar alguma coisa para o estômago. Esses enjoos estavam mesmo demais. Ou então, foi falar com as amigas e cancelar a ida à missa mais tarde. Uma pena esse escândalo todo do padre Lauro. Eleutéria estava gostando de ver o súbito interesse de Mariana pela igreja. Mariana que antes não queria nem saber de missa, começou a ir em todas, a se envolver nas atividades da igreja, sempre por lá na sacristia, às vezes até tard…

De repente, Eleutéria conseguiu juntar lé com cré e sua boca sussurrou o que a mente chocada acabara de compreender:

— Meu Deus, minha Mariana caiu no conto do vigário!

8 comentários em “Cuspido e escarrado – Conto (Kelly Hatanaka)

  1. vlaferrari
    10 de outubro de 2024
    Avatar de vlaferrari

    Quando crescer quero escrever assim. Que coisa deliciosa de ler. Sim, Luis Fernando Veríssimo é uma associação muito correta de se fazer. Leve e ligeiro, levando o leitor para um delírio imaginativo incentivador, como toda boa literatura deve fazer. Parabéns.

  2. Antonio Stegues Batista
    8 de outubro de 2024
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Dona Elotéria, Euleotéria, que nome difícil, finalmente descobriu o que estava acontecendo com a filha e o lobo da colina escarlate. Muito bom, parabéns.

    • Kelly Hatanaka
      8 de outubro de 2024
      Avatar de Kelly Hatanaka

      Verdade! kkkkkkkk

  3. André Lima
    8 de outubro de 2024
    Avatar de André Lima

    Você é craque demais nesse tipo de conto!

    Foi tão leve, tão rápido e fluido que me pareceu que estava lendo o roteiro de uma esquete.

    Tudo muito amarradinho, sem diálogo expositivo, deixando o óbvio ir surgindo a cada linha, sem ter de explica-lo. Isso é um recurso técnico que aplaudo sempre!

  4. Gustavo Araujo
    7 de outubro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    É como dizem: em terra de cego quem tem um olho é ciclope! Ótimo conto, Kelly. Me fez lembrar do Luis Fernando Veríssimo, por conta da agilidade dos diálogos e do jeito meio ingênuo, meio pretensioso da D. Eleutéria. Bacana a maneira como você vai construindo a história proibida de Mariana com o Padre Lauro, assim, nas entrelinhas, para arrematar — aí sim — com o dito popular que revela tudo. Muito bom mesmo. Obrigado por compartilhar com a gente aqui no EC.

  5. JP Felix da Costa
    7 de outubro de 2024
    Avatar de JP Felix da Costa

    Olá Kelly!

    ó tenho uma palavra para descrever este conto: delicioso.

    Adorei o diálogo, a construção dos personagens pelas palavras. Não foram necessárias descrições para ver a cena toda a decorrer. A deturpação popular do uso dos ditados, a cusquice/fofoca e a satisfação na desgraça alheia, que no fim lhe bate a porta, tão transversal aí como cá. Tudo evoluiu num ritmo compassado que só nos dá vontade de continuar a ler.

    Parabéns

    JP

  6. Givago Domingues Thimoti
    2 de outubro de 2024
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Boa tarde, Kelly! Tudo bem?

    Adorei a maneira que você construiu a narrativa por meio de diálogos, a partir de uma situação banal e corriqueira do dia-a-dia. Com bastante leveza, humor e uma certa irreverência.

    Do ponto de vista gramatical, o conto está irretocável também!

    Parabéns!

  7. Priscila Pereira
    2 de outubro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Kelly! Tudo bem?

    Já conhecia esse ótimo conto e relê-lo foi um prazer! As personagens são tão reais e tudo é tão bem descrito e narrado que é quase como se estivéssemos assistindo a cena.

    Os ditados embaralhados, o interesse repentino da mocinha, tudo muito instigante e bem humorado! Lembro que amei o “velho deitado” 😅😅😅

    Esse conto parece que fica melhor a cada vez que a gente lê! Parabéns!

    Até mais! 😘

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Informação

Publicado às 1 de outubro de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .