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Detox Literário.

Curió – Final alternativo (Gustavo Araujo)

De certa forma, jamais se esquecera do avô, das conversas em que o velho o ensinava os segredos daquelas matas. Das vezes em que o carregou no colo, de povoado em povoado, fugindo da sanha de vingança de Aimoré, até que fossem encurralados e o velho tombasse para que ele, a mãe e Tito conseguissem fugir.

Por um momento, imaginou-o ao seu lado. Os cabelos brancos, a respiração entrecortada, o peito arfando, os olhos injetados de sangue. É hora da gente acertá as conta com esse infeliz, ele diria.

Curió rastejou na direção oposta do armazém. Tinha o corpo colado à terra, àquela mesma terra que havia devorado as entranhas de seu pai e que agora comeria os ossos de Tito. Por culpa de Aimoré. Sentia o mato úmido a roçar-lhe o peito, a terra ferindo seus braços e pernas à medida que avançava. Jurou ter ouvido a gargalhada do tio, gozando com a morte daquele que não considerava filho.

Teria sua mãe traído Aimoré com Iberê? Isso nunca teve relevância. Tito era seu primo. E era também seu irmão. Não interessava quem era filho de quem. Só o que importava era que seu tio merecia uma morte lenta por toda a dor que causara a eles.

Levantou-se quando a luz do armazém não era mais visível. Vagarosamente contornou a região em meio à mata densa. Galhos, arbustos e raízes escondidos pela escuridão quebravam ao seu avanço, crepitando no silêncio da floresta. Ao longe, bugios davam o alarme, seguido do pio enervante de pássaros invisíveis. A fauna o perseguia, mas ao menos os jagunços haviam perdido sua pista.

Podiam ter se passado três horas ou uma vida inteira, mas Curió enfim aproximou-se do armazém pelo lado sul da propriedade. O tio estava lá, era certo, apesar das luzes apagadas. Não teria ido para a casa ou se refugiado em qualquer lugar. Também ele queria terminar aquela saga, também ele queria morrer em paz. Fugir, protelar, tudo isso era fora de questão. Para alguém que havia passado tanto tempo na cadeia, considerando a si mesmo como vítima de uma perfídia inadmissível, a honra só podia ser reconquistada de uma maneira.

Daquele lado, por dentro da cerca, havia um trator estacionado. Próximo, um sujeito magro, com um chapéu de abas largas e uma espingarda indolente sobre os braços caminhava em círculos, Curió analisou as próprias chances. Havia perdido seu revólver e contava agora somente com um facão. Mió assim, ouviu o avô sussurrando, não faiz baruio.

Rastejando pelo capim, inaudível como uma cobra, passou por debaixo de cerca e aproximou-se mais do tal trator. Quando estava a poucos metros, invisível, agachou-se e atirou uma pedra para o lado contrário, fazendo a sentinela se despertar de seu torpor e virar-se naquela direção. Curió levantou-se de plano, atirou mais uma pedra naquele lugar, fazendo o guarda engatilhar a arma. Súbito, assobiou para ele. Ao virar-se o sujeito não teve tempo de reagir, já que o facão cortou-lhe o rosto de cima a baixo, começando pela sobrancelha e descendo até o pescoço. No chão, o homem se contorceu em espasmos, afogando-se no seu próprio sangue. Era um menino somente, com uma penugem fina sobre os lábios superiores ensaiando um bigode que jamais cresceria.

Sem pensar, Curió tomou-lhe a espingarda e correu para a parede. Sabia que outras sentinelas rondavam a propriedade e que os cães não demorariam a aparecer. Precisava entrar no galpão, sem alarde, o mais rápido possível. Não adiantava estourar alguma porta ou forçar uma janela, já que os ruídos o denunciariam. Agachado, voltou ao corpo do garoto morto, o odor metálico de sangue já se espalhando pelo ar. Tateou sua roupa empapada, mas não encontrou chave alguma.

Não deu tempo para se arrepender. Apenas sentiu o bafo quente e a mordida violenta em seu braço, puxando-o. Era um cachorro negro, extremamente forte, que aparentemente surgira do nada, sozinho, com o firme propósito de arrancar seus membros e de estraçalhar seu pescoço. Com o outro braço, Curió buscou o facão, mas a maneira como o cão o arrastava impedia qualquer reação. Era como se as fibras de sua musculatura se rasgassem, se desprendessem. A sensação clara era de que seu braço se desprenderia de seu tronco a qualquer momento com os movimentos repetidos e acelerados daquela besta.

Um tiro rasgou o ar e o cão imobilizou-se, morto. Curió, em meio a dor, tentou-se levantar. Em vão. A mão instintivamente segurou o braço ferido, como se quisesse costurá-lo de volta. Sem facão, sem espingarda. Um homem grande e com hálito desagradável se acercou dele e ergueu-o sem cerimônia. Em seguida, amarrou suas mãos para trás com um fecho que plástico.

O patrão tá isperano… Ocê demorô que só, minino.

Uma luz azulada surgia pelo horizonte, anunciando o retorno do dia.

Logo logo o sol vai di aparecê… Tá na hora di terminá com isso.

Entraram no armazém por uma porta lateral. Uma luz fraca e amarelada acendeu-se. Na pequena sala, uma mesa de fórmica, um sofá ensebado e uma cadeira de palha puída constituíam a única mobília.

O homem jogou Curió no sofá e amarrou-lhe os tornozelos com o mesmo fecho de plástico.

Num sai daí, minino ― disse, rindo da própria piada.

A luz apagou-se. O silêncio caiu sobre o local. Curió aguardou por um tempo indefinido. Dez minutos, cinquenta, mil. O braço latejava e o sangue parecia escorrer para sempre. Alucinações surgiam. O avô, Tito, a mãe…

Mãe… A sinhora tá aí?

Ouviu sua própria voz ecoar no infinito daquela escuridão.

Mãe… Me disculpa…

Lágrimas se libertaram pelo rosto até que fachos indefinidos de luz começaram a cruzar-lhe a vista. Entrou numa espécie de torpor. Socos e pontapés se seguiram, atingindo-lhe a cabeça, o tronco e os braços. O braço. A dor lancinante dava azo ao desespero. Iria morrer, isso era certo. Todo seu corpo gritava em alarme, como se dissesse faça alguma coisa, levante, corra

Então tudo cessou e ele foi deixado ali, chorando baixinho. Lembrou-se dos tempos de menino, na beira do rio com o avô, o velho Vargas. De sua voz mansa e de seu sorriso brejeiro, daqueles que sempre escondem algum segredo. Não havia segredo algum porém. Não agora, ao menos. A morte lhe aguardava naquela sala.

A luz enfim acendeu-se mais uma vez. Curió estava no chão em meio a manchas ensanguentadas que serviam como testemunhas de seus movimentos desesperados.

Intão, ocê queria vim aqui pra mim matá, é?

Curió, com os olhos feridos pela luz e inchados pelos socos mirou aquele homem. Reconheceu sua figura de outros tempos: um sujeito baixo, com uma cabeleira grisalha e uma barba espessa. Sua boca larga era repleta de dentes amarelados.

As notícia não são boa… Quem vai morrê é ocê, minino.

Ocê é um covarde fidumaputa, tio...

Fidaputa é ocê, seu merda. I não mi chama de tio qui eu não sô da tua laia. Ocê vai sofrê muito ainda antes de eu te mandá pros inferno.

Nisso, Aimoré olha para a porta atrás de si e faz um aceno com a cabeça. Segundos depois, o sujeito com hálito ruim entra por ali trazendo uma pessoa pelo braço. Ela caminhava lentamente, como se, temerosa, medisse os passos.

Mãe…

A mulher abaixou a cabeça. Aimoré se aproximou dela e com o cano de um revólver qualquer ergueu-lhe o queixo.

Olha lá, Maiara, o teu fio… O fruto da tua traição com o meu irmão… Qui nem aquele coitado do Tito… Ah, como eu sonhei com esse dia…

São os nossos fio, Aimoré. Ocê num consegue vê? Os dois…

Cala a boca, muié. Ocê é uma messalina qui eu sei, mi traiu duas veiz com meu próprio irmão, aquele infeliz…

Aimoré guardou o revólver e caminhou até o local em que Curió estava.

Hoje a justiça vai sê feita ― disse ele, cuspindo. ― Vai morrê todo mundo i eu infim vô podê discansá com a justiça feita.

Um estrondo derrubou o homem de mau hálito. De sua fronte, um fio de sangue brotou, mas ele já estava morto antes de cair no chão. Aimoré tateou o coldre, mas seu revólver havia desparecido. Nas mãos de Maiara, agora era apontado para ele mesmo.

Muié… Ocê…

A frase jamais chegou a se completar. Um segundo e um terceiro tiro derrubaram o homem. E um quarto disparo arrebentou-lhe o rosto.

Nos anos que se seguiram, as pessoas contariam aquela história de modos diversos. Para alguns, Maiara e Curió saíram tranquilos pela porta da frente do galpão e desapareceram no mundo. Para outros, mãe e filho foram trucidados pelos guardas de Aimoré depois que as balas do revólver se acabaram. Outros ainda dizem que Curió morreu ali mesmo, pelos ferimentos no braço, e que a mãe, diante daquilo, meteu uma bala na própria cabeça.

Ninguém sabe.

Mas é fato que os curiós continuam piando pela floresta.

7 comentários em “Curió – Final alternativo (Gustavo Araujo)

  1. Jorge Santos
    6 de outubro de 2024
    Avatar de Jorge Santos

    Gostei deste final. Foram resolvidos os pontos que tinha indicado no meu comentário ao conto original. A linha narrativa está coerente, desenvolvida de forma elegante por mão de mestre, a caracterização física e psicológica está mais completa – sabemos sempre o que sentem as personagens, as suas motivações e conflitos.

  2. Leo Jardim
    3 de outubro de 2024
    Avatar de Leo Jardim

    Ae! Essa isso que o povo queria! Aimoré morrendo e completando a vingança que foi vendida na segunda parte.

    A qualidade da escrita do chefe é sempre excelente e ele prova que pode escrever ação com a mesma capacidade.

    Se estivéssemos no desafio, talvez eu dissesse que não curti muito o final aberto, mas isso seria só uma chatice de avaliador. Parabéns, Gustavo, e obrigado por compartilhar.

  3. Thales Soares
    2 de outubro de 2024
    Avatar de Thales Soares

    Finalmente tivemos o final que o leitor tanto aguardava! A conclusão da vingança, o verdadeiro embate entre um corno raivoso e um filho extraconjugal.

    As descrições estão com um nível excelente! Mas achei que o conto demorou para mostrar aquilo que realmente queríamos ver, que é o clímax da história! No entanto… o embate final não me alegrou tanto, apesar de achar que a conclusão agora está com tudo perfeitamente amarrado e condizente com aquilo que se esperava. O motivo de eu não ter gostado se encontra justamente o finalzinho:

    “Um estrondo derrubou o homem de mau hálito. De sua fronte, um fio de sangue brotou, mas ele já estava morto antes de cair no chão. Aimoré tateou o coldre, mas seu revólver havia desparecido. Nas mãos de Maiara, agora era apontado para ele mesmo.”

    Achei muito fácil e abrupto! Até então, Curió estava tomando o maior cacete, sendo surrado como se fosse um saco de bosta. Aí quando pensamos que tudo está perdido, aparece sua mãe ex machina, e pronto… tudo resolvido. A mãe desse cara é tão foda, mas tão foda, que resolve a história inteira num único parágrafo. Penso que, apesar de pensarmos que Maiara tem semelhanças com Capitu, na realidade ela é mais parecida com a protagonista de Kill Bill.

    Depois disso, o conto termina com um final em aberto, no qual não me agradou por completo. Mesmo assim, como eu disse anteriormente, acredito que o final esteja bastante digno, apresentando tudo aquilo que havia sido prometido para o leitor pelo primeiro autor, e amarrando muito bem todas as pontas soltas do enredo.

    Muito bom, Gustavo!

  4. Kelly Hatanaka
    1 de outubro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Ah, curti essa conclusão. Encaixou bem com o resto da história, terminou de desenvolver o drama familiar e mostrou o prometido embate entre Curió e Aimoré.

    O final tem cara de lenda e fica aberto à imaginação do leitor. Mas qualquer uma das três opções fecha a história de forma interessante.

  5. André Lima
    28 de setembro de 2024
    Avatar de André Lima

    Um bom final, dando aspecto de lenda urbana para a história de Curió. Gostei bastante do ritmo, do fluxo. É bem imersivo! A mãe retornando como chave para a conclusão de uma trama que, no segundo ato, descobrimos que foi toda causada por ela, foi uma solução bem inteligente.

  6. Priscila Pereira
    28 de setembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Gustavo! Tudo bem?

    Ótimo final! Muito bem escrito, quase poético!

    Gostei bastante da Maiara ter matado o Aimoré no final e ter supostamente salvado o Curió. O final aberto dá margem para cada um escolher seu final preferido, e o meu é que eles conseguiram sair com vida e foram felizes, enfim…

    Uma coisa que eu gostei muito do começo e que depois só foi pincelada no meio, mas que teria sido ótimo se fosse aprofundado, foi o que o avô disse sobre os rios, que mesmo se tocando, não se misturavam. Aimoré não tinha a mesma essência de Iberê e os dois podiam estar juntos, mas nunca seriam iguais. E queria saber também porque Maiara escolheu o Aimoré e não o Iberê, afinal de contas…

    De qualquer forma foi um final muito satisfatório e gostoso de ler. Parabéns!

    Até mais!

  7. JP Felix da Costa
    28 de setembro de 2024
    Avatar de JP Felix da Costa

    Alguns contos do desafio deixaram-me um gosto amargo na boca. De início conseguiram cativar a minha atenção e, depois, na evolução das partes seguintes, acabaram por me desiludir. Devo dizer que Curió foi um deles. A segunda parte parece-me confusa, mas agora vale a pena ler para se poder terminar a história com este final.

    Um texto mais negro, com um peso bem medido, que nos mantém na expectativa do resultado. Não há exageros nem pontas amarradas à pressa. Um final pausado, mas intenso onde tudo se resolve e os personagens são ainda mais desenvolvidos.

    Um final condigno para uma história de vingança.

    JP

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Publicado às 27 de setembro de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .