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Detox Literário.

Alfas e Betas – Director’s Cut (Jorge Santos)

Prólogo

Quando Raquel nasceu, a Segregação já era uma realidade há duas décadas. No passado, a humanidade tinha separado as pessoas pela raça ou pelo credo, mas agora a separação era feita com o suposto objetivo de poupar recursos. Os Alfas tinham todos os benefícios e regalias. Viviam nas partes mais ricas das cidades, tinham acesso aos melhores trabalhos e a uma saúde de primeira categoria. Os Betas viviam nas zonas mais pobres, assoladas pela criminalidade. À nascença recebiam a marca, uma tatuagem no meio da testa com a respetiva letra grega. Um Alfa poderia passar à categoria de Beta como punição por um crime especialmente severo. Os filhos herdavam a categoria dos pais.

Nenhum Beta passara à categoria de Alfa. Esta é a história da primeira pessoa que o conseguiu fazer.

1

– Força! – Berrou a parteira, mas por mais força que fizesse, Raquel não conseguia expulsar o seu primeiro filho. Diziam que era por isso mesmo, por ser o primeiro, mas a contar pelas dores que sentia, seria o primeiro e o último. O hospital ficava nos subúrbios, estava atolado de gente. A pequena sala onde decorria o parto era imunda e fedia a sangue, urina e excrementos.

Foram necessárias 3 horas de um longo e extenuante trabalho para que, finalmente, Júlio viesse ao mundo. Quando o teve nos braços, Raquel rapidamente esqueceu o cansaço e as dores.

– Parabéns. É um menino perfeito. – Disse a parteira, lavando as mãos. A Raquel foi levada para uma sala a arder de calor, onde outras quatro mães recuperavam dos partos. Todas elas tinham o β tatuado nas testas. Dentro de uma semana, seriam obrigadas a marcar os filhos com a mesma letra. Comentavam isso de uma forma ligeira, em tom de brincadeira, habituadas como estavam à sua sorte. Já Raquel tinha um segredo: o pai do seu filho era um Alfa. Se ao menos conseguisse que marcassem o filho como Alfa, mesmo que ela nunca mais o visse na vida. Havia sacrifícios que valiam a pena. Mas era um grande “Se”. Raquel sabia que tinha apenas uma semana para o fazer. A pena para um Beta não marcado era a morte.

A mãe, Ivone, veio vê-la poucas horas depois do nascimento do neto. Ostentava no meio da testa a sua letra Beta com um orgulho desmedido. Enviuvara há poucos anos. O pai da Raquel, Jaime, nascera Alfa. Tinha sido um dos primeiros. Depois cometera um crime. Na altura já tinha casado com Ivone, o que não era bem visto pela sociedade. A família virou-lhe as costas, ele foi despedido e Jaime foi viver com Ivone para os subúrbios, numa zona controlada pelo crime organizado. Assim que o chefe da família Zarreta se apercebeu de que tinham um Alfa a viver no bairro, tratou de o aliciar. Sem trabalho, a começar uma família, Jaime não viu outra alternativa. Foi o seu maior erro.

2

– Temos de falar.

Não tinha sido simples falar com Aurélio. Raquel cobrira como pudera a sua marca, de forma a parecer um descuido. Levava o filho nos braços. Felizmente que era um bebé calmo, que dormia facilmente. Por fim, Aurélio consentira encontrar-se com ela num parque da zona mais rica. As roupas de Raquel contrastavam com a ostentação de quem passava por ela, mas Raquel não sentia o mínimo de vergonha. Estava a lutar pelos direitos do seu filho, e lutaria até à morte se isso fosse necessário.

– É ele? – perguntou.

Raquel riu.

– Quem é que querias que fosse? Olha bem para ele, Aurélio. Tem os teus olhos, o teu nariz.

Aurélio tirou gentilmente o bebé dos braços de Raquel. Por momentos ela teve medo. O seu coração de mãe entrou num sobressalto.

– Sempre quiseste ter um filho, Aurélio. É teu, todo teu, se o quiseres.

Aurélio passou-lhe o filho novamente para os braços.

– Abdicarias dele, se o tornasse um Alfa?

Raquel confirmou, com todas as forças. Por dentro, tremia. Esperava que ele aceitasse mas, ao mesmo tempo, queria que rejeitasse. Eram tempos terríveis para quem amava um filho.

– Não vai acontecer. – Sentenciou Aurélio.

Raquel explodiu. O filho começou a chorar.

– Vais condenar o Júlio a uma existência miserável? Pulha!

– Não tomo essa decisão de ânimo leve, Raquel. Estou de casamento marcado. Peço-te para que nunca mais me procures. Toma.

Aurélio estendeu-lhe um maço de notas, que ela espalhou pelo ar com uma pancada forte. Depois, afastou-se rapidamente, esgueirando-se pelas ruas opulentas da zona nobre da cidade. Apanhou um autocarro com a letra Beta, o único onde poderia entrar. Sentou-se ao lado de uma senhora idosa, apertou o filho contra o peito e começou a chorar.

3

Ao sétimo dia, Raquel foi ao registo com o filho. O funcionário que a atendeu, um Alfa excessivamente novo e pretensioso, perguntou-lhe o nome do pai da criança. Ela afirmou não saber. O funcionário riu-se. Raquel chamou-o de porco em pensamento, porque sabia que se o fizesse em voz alta passaria a noite na cadeia.

Depois de registado, o filho seria marcado. Foi colocado numa cadeira especial, que lhe imobilizava o corpo enquanto o tatuador lhe fazia o Beta na testa. A criança berrava, e Raquel sentia as dores do filho como facas que lhe espetavam no corpo. Sabia que os Alfas tinham procedimentos que evitavam a dor nas crianças, mas o seu filho era um Beta, pelo que se tinha de habituar, desde cedo, à dor.

Raquel combinou com a mãe criarem juntas o filho. Ficou com alguns dos trabalhos dela, de limpeza na zona nobre da cidade. Sempre que limpava a merda de uma retrete onde um Alfa tinha cagado, lembrava-se do pai do filho e a sua raiva aumentava.

4

– Quero fazer xixi, mamã. – Disse o Júlio. Tinha cinco anos. Era, tal como a parteira tinha afirmado, uma criança perfeita. Bonito, forte, inteligente e esperto. Seria o que quisesse na vida, não tivesse a vida escolhido por ele um destino menor. Um Beta não podia seguir para além do ensino médio. Não podia ir para a Universidade. Não podia sonhar. O destino do Beta era servir os patrões a vida toda, sem direitos praticamente nenhuns. O menino interrogava-se sobre tudo o que via. “Porque havia diferenças entre as pessoas, mamã?”, perguntou, e ela respondeu que era assim desde sempre.

Olhou em volta. Estava num jardim de uma zona de Alfas. Havia apenas um WC. Ainda chegou a entrar, mas um segurança pô-los fora.

– O meu filho precisa de usar a casa de banho. – Disse Raquel, se bem que já soubesse que era como falar com uma parede. Uma parede talvez fosse mais compreensiva.

Tentou arranjar um sítio discreto para o filho se aliviar mas já não foi a tempo e o Júlio ostentava uma grande mancha de urina na frente das calças. Tirou o seu casaco e, ignorando o frio do forte vento que se fazia sentir, ordenou que o segurasse à frente das calças. Depois, regressaram a casa a pé, pelo caminho mais longo e sob reclamações constantes do filho. Chegou enregelada a casa e durante uma semana foi trabalhar com gripe.

5

Quando o filho fez seis anos, e depois de muitas perguntas insistentes sobre o pai, às quais ela dava respostas evasivas, Raquel decidiu contar a verdade. Afinal, ele era um Beta e tinha, desde cedo, de se habituar a desilusões.

– O teu pai renegou-te, meu filho. Por isso somos só nós dois. É essa a nossa força. Ninguém nos pode separar.

O pequeno Júlio choramingou durante algum tempo, no calor do abraço da mãe.

Aos quinze anos, Raquel adoeceu gravemente. Valeu-lhes a ajuda dos vizinhos. O diagnóstico de tuberculose, uma doença que em qualquer hospital Alfa seria tratada como uma vulgar constipação, era quase uma sentença de morte para um Beta. Raquel sabia, mas ocultou esse facto ao filho, que mantinha uma esperança inabalável na recuperação da mãe, até que ela se tornou uma sombra do que tinha sido, os braços que antes o abraçavam não eram mais do que débeis traços e era agora ele que a abraçava. Júlio sentiu-lhe a respiração irregular até que o resto das suas forças se esvaíram num suspiro que guardou para sempre na memória.

6

Ninguém soube de onde o rapaz arranjou forças para se aguentar. Vivia na casa de vizinhos, que eram, agora, a sua única família. Estudou mecânica e eletrónica, mostrou uma inteligência acima da média que, caso fosse um Alfa, lhe permitiria ser Engenheiro. Quando terminou de estudar, empregou-se numa empresa que fazia a manutenção das estruturas dos Alfas. Tinha acesso privilegiado a assistir as mordomias às quais tinham acesso, coisas que eram apenas miragens para um Beta.

No caminho para casa, costumava fazer um desvio. Ficava algum tempo a olhar para a casa onde o pai vivia. Tinha descoberto o nome dele nas coisas da mãe, depois do seu falecimento. A casa estava bem guardada, rodeada por muros com câmaras de vigilância. O pai era uma pessoa importante, um político, casado com uma mulher de aparência artificial, que parecia estar constantemente a fazer operações plásticas para fintar os estragos do tempo. Júlio descobriu que tinha uma irmã, Lara. Ela era cerca de três anos mais nova, extremamente bonita e desinibida. O oposto da mãe. Júlio raramente via o pai.

Um dia tomou coragem e aproximou-se do segurança que estava na porta principal.

– Eu sou Júlio, filho do Senador Aurélio. Gostaria de falar com ele.

O segurança, que media quase meio metro a mais do que Júlio, olhou-o de alto a baixo e disse-lhe apenas: – Eu sei. Ele não quer ver-te. Vai embora antes que chame a polícia.

Como Júlio não arranjou resposta para aquilo, limitou-se a ir para casa, num passo lento. Sentia-se desmoralizado.

7

Júlio sabia quem eram os dois homens que o esperavam em casa. Todos sabiam quem eram, naquela parte da cidade dos Betas. Patrício Zarreta, El Negro, não era, realmente, negro. A alcunha do homem de sessenta anos e aspeto rude viera dos tempos de uma gangue à qual Patrício pertencera.

– Pedi à Dona Elvira permissão para entrar. – Disse El Negro, numa forma cordial. – És muito parecido com o teu avô Jaime.

Júlio não respondeu. Sabia que o avô tinha trabalhado para a família Zarreta e que isso tinha sido o maior erro que cometera na vida.

– O meu avô morreu por trabalhar para si.

– Todos os dias morrem pessoas, Júlio.

– O que quer de mim?

Patrício sorriu.

– Pareces ser um rapaz inteligente. Vou fazer-te uma proposta. Quero que sejas rico, mais rico do que um Alfa.

– O que teria de fazer?

Patrício olhou para os lados, como se alguém estivesse a ouvir, mas não estava ninguém no apartamento para além de Júlio, Patrício e o seu guarda-costas, Ximenes.

– O teu trabalho dá-te acesso aos túneis de manutenção da cidade. Terias de colocar bombas debaixo dos principais edifícios. São mais frágeis do que parecem. Aliás, toda a sociedade dos Alfas é mais frágil do que parece. Tornaram-se vítimas da sua cobiça. Não passam de porcos convencidos. Basta um pequeno abalo na sua estrutura e deixa de haver Alfas e Betas. Haverão apenas Betas. Os outros serão mortos ou feitos escravos. As suas mulheres servirão para o nosso divertimento.

Júlio abanou a cabeça, conhecendo bem os riscos de contrariar a pessoa mais poderosa da cidade dos Betas.

– Recusas?

– Os Alfas não têm culpa de terem nascido Alfas. Não merecem morrer por isso.

Patrício riu alto.

– Gosto de ti, rapaz. Outro estaria a cagar-se todo ao dizer-me isso. E eu gosto de gente corajosa. Um dia ainda vais trabalhar para mim, vais ver. Até lá, mantém esta nossa conversa entre nós. Se souber que me traíste, aqui o Ximenes vai divertir-se contigo e com todos os que conheces. Gosta de brincar com facas. Nem imaginas o tempo que demoram a morrer nas mãos dele. Gosto de adormecer a ouvir os berros deles. Durmo como um bebé.

Patrício e Ximenes saíram do apartamento. Júlio sentou-se no sofá onde antes estivera sentado Patrício. As pernas tremiam-lhe.

8

Num fim de tarde especialmente frio, Júlio fumava um cigarro enquanto observava a casa do pai. Viu Lara sair sozinha pelo portão principal. Trazia dois copos na mão. Aproximou-se de Júlio num passo decidido. Havia um pequeno jardim à frente da casa, do outro lado de uma estrada sem grande movimento. Júlio estava sentado num banco de jardim. Ela sentou-se ao lado dele e ofereceu-lhe um dos copos.

– É café. – Disse ela.

– Não tens problema em ofereceres um café a um desconhecido?

– Vais-me matar com uma faca?

– Não sei. Ainda não provei o café.

Júlio deu um gole. Nunca tinha provado café tão bom. Ela sorriu.

– Eu sei quem tu és. A minha mãe não sabe, mas como ela passa o dia todo a dormir, nem sabes que existes. És uma cópia do nosso pai. Ele disse-me que existias. Disse que era tarde para te pedir desculpa e não quer falar contigo. Ele sabe que pode ser morto por favorecer um Beta.

– O nosso pai é um covarde.

– Não é, Júlio. Todos temos de sobreviver. Achas que é fácil ser Alfa? No meio de tanta riqueza, perdemos a nossa humanidade. São regras em cima de regras. Estou farta. Preferia ser Beta…

– Preferias ser Beta? Isso é loucura.

– Mostra-me.

– Mostro-te o quê, Lara?

E quando Lara explicou o que queria ver, Júlio teve a certeza de que, embora o pai fosse um covarde, a irmã era a rapariga mais corajosa que conhecia.

9

A música invadiu subitamente um quarteirão da cidade dos Betas. Havia comida e festa rija. Gente começou a abarrotar as ruas cheias de lixo. O São João era a festa mais importante da cidade, quase uma provocação aos Alfas que, por estarem relativamente perto, se sentiam incomodados pelo barulho. Há algum tempo que estes não tinham festas ruidosas, daquelas que enchiam as ruas de gente. Categorizavam-nas de eventos de segunda categoria, preferindo concertos de música clássica, Jazz e óperas. Dois anos antes, e em represália pela festa, os Alfas tinham desligado o fornecimento de eletricidade e água a toda a cidade dos Betas, matando pelo menos três pessoas que estavam internadas no hospital. Mesmo assim, os habitantes da cidade dos Betas recusavam-se a ceder e, nos dois anos seguintes, voltaram a organizar a festa.

Júlio segurava a mão de Lara, que tapara a testa com um lenço, de forma a ocultar a sua tatuagem com a letra α na testa. Furaram pela multidão até encontrarem uma clareira. Lara começou a dançar espontaneamente ao som da música que músicos de rua tocavam. Júlio deixou-se ficar a olhar, maravilhado pela forma como Lara se integrava com os Betas.

Segundo ela, havia muitos Alfas que não compreendiam nem aceitavam a Segregação. Alfas que eram obrigados a esconder as suas relações, as paixões que sentiam por Betas.

O apito fez-se ouvir por volta da 1h da manhã. Barulho, motores. Tiros. A polícia dos Alfas entrava na cidade para dispersar as pessoas e acabar com a festa. Júlio puxou pela mão de Lara e desataram a correr pelas ruas da cidade. Houve duas mortes e vinte e quatro presos. Quarenta pessoas ficaram feridas, entre elas o baterista da banda, que, muito provavelmente, nunca mais poderia voltar a tocar. Mas outro o substituiria, e, no ano seguinte, a festa voltaria, ainda com mais força. Porque essa era a vontade das pessoas, não importava a letra que ostentavam nas testas.

10

Por intermédio de Lara, Júlio conheceu outros Alfas. Soube que Patrício tinha razão quando afirmava que a sociedade Alfa era mais frágil do que parecia, mas Júlio nunca aprovaria o terrorismo como forma de luta. Estavam dependentes dos Betas e ele era das poucas pessoas a conhecer os dois lados. Definiu um plano. Algo arrojado, que nunca ninguém tentara e que, por isso mesmo, poderia funcionar. Lara concordara com ele e, por intermédio dela, o pai ajudava, de uma forma discreta.

A luta começou numa segunda-feira. Quando os Alfas esperaram os trabalhadores de quem dependiam para tudo, nem um único Beta apareceu. Júlio tinha demorado semanas a falar com os diversos grupos de trabalhadores, que sabiam perfeitamente que seriam presos por desobediência, mas não havia celas suficientes para todos. Imediatamente os polícias invadiram as casas e tentaram tirar de lá os Betas, mas eles recusaram-se a trabalhar, mesmo quando os cacetetes começaram a cair com força. No dia seguinte, a luta continuou. Firme, incisiva, sem retaliação. As prisões continuavam, mas por cada trabalhador preso eram cada vez mais os trabalhadores que fincavam os pés.

Ao terceiro dia, começaram a descobrir Alfas dentro das casas dos Betas. Alfas que lutavam a seu lado, que eram presos e muito provavelmente seriam convertidos em Betas. Aceitavam o seu destino com serenidade e espírito de missão.

Ao final da semana, a polícia dos Alfas mudou de estratégia. Procurou o cabecilha da revolta. Encontrou dois numa casa, no centro da cidade dos Betas. Júlio e Lara deixaram-se prender sem oferecer resistência.

11

O Senador Aurélio Jordão, recebeu sem surpresa a notícia da prisão da filha na cidade dos Alfas. Foi mais difícil explicar à esposa, que teve um ataque de histeria.

O senador dirigiu-se à prisão. As ruas estavam sujas, ainda mais imundas do que as ruas da cidade dos Betas. O cheiro do lixo acumulado fedia o ar. Chegado à prisão, fez com que libertassem a filha, que se recusou a sair sem o irmão. Aurélio fez então questão de ver o rapaz. Encontrou-o na cave, nu, sentado numa cadeira e com evidentes sinais de tortura. A cara desfigurada mais não era do que sangue e pedaços de carne amorfa. Faltavam dois dedos em cada mão e tinham-lhe arrancado as unhas dos restantes dedos. A respiração ténue mostrava que tinha chegado ao fim da sua luta. Com os olhos cheios de lágrimas que Aurélio abraçou o filho e ordenou que o levassem para o hospital. Lara acompanhou-o.

Foi com a camisa com marcas de sangue que Aurélio se deslocou ao Parlamento da Cidade dos Alfas, onde se discutiam novas medidas punitivas da revolta. Perante uma turba de senadores desconcertados, pediu para falar. Vozes discordantes foram abafadas pelo Presidente da Assembleia. Aurélio tomou então a palavra.

– Algum de vocês se lembra de como a Segregação começou? Alguém se lembra dos verdadeiros motivos? Nenhum de nós estava vivo nessa altura, e os livros de história são os únicos testemunhos. Pois bem, proponho que se escreva nesses mesmos livros de história como nós escravizamos os nossos semelhantes, não por causa da cor da pele ou da religião, como faziam os nossos antepassados. Escravizamos os nossos semelhantes porque lemos nos livros de história que isso é a única coisa certa a fazer. Sem questionarmos, sem duvidarmos. Aceitámos que a Segregação é o caminho. E se não for? O que ganhamos, realmente, com a Segregação?

Gerou-se um burburinho. Deram ordem de prisão a Aurélio, depois um Senador discursou, apoiando a sua tese. As vozes discordantes começaram a ser cada vez menos, até que os dez histéricos senadores que eram contra o fim da Segregação foram convidados a sair do Parlamento.

12

Júlio foi o primeiro Beta a tornar-se Alfa, numa cerimónia meramente simbólica. O Parlamento tinha abolido a Segregação, tornando as tatuagens meramente decorativas. As duas cidades tornaram-se uma única e, no ano seguinte, o São João foi o maior de sempre.

7 comentários em “Alfas e Betas – Director’s Cut (Jorge Santos)

  1. Gustavo Araujo
    27 de setembro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    Olá, Jorge. Pelo que percebi, a continuação deste tem muita semelhança com a daquele que consta do desafio. Refiro-me à revolta dos betas, ao inconformismo com a situação por que passam e a luta que então resolvem empreender. Não há os ômegas, é verdade, mas de todo modo, o conto escorrega para o embate entre oprimidos e opressores. Claro que por ter sido escrita pela mesma pessoa, esta versão soa mais inteira, mais bem acabada, mas tanto aqui como lá, receio, o espaço para os desdobramentos foi pequeno. Há pontos positivos, claro, com a inclusão e com o desenvolvimento de outros personagens, mas depois de ler fiquei com o sentimento de que os fatos se sucederam de modo acelerado demais.

    O resultado é algo próximo de um relato, de uma sinopse, de um resumo, enfim, algo que leríamos em um livro de História na escola. Sim, é interessante e até certo ponto instigante, mas a meu ver faltou um tantinho de proximidade, de detalhe, algo que nos fizesse mais cúmplices dessa luta de classes. Talvez — e aqui estou a divagar de modo reconhecidamente egoísta — o conto funcionasse melhor se abordasse apenas um recorte da jornada de Julio e Lara. Ou talvez venha a funcionar melhor se for desdobrado em um romance.

    Por derradeiro, devo dizer que não gostei tanto do final. Pelo que entendi, a revolta foi sufocada e os divergentes, punidos, presos ou expulsos — algo que se abateu inclusive sobre os senadores que ousaram questionar o status quo. Só que no último parágrafo, vem a informação de que Julio foi promovido postumamente a alfa e que a segregação terminou. Bem, o que ocorreu entre a derrota dos revoltosos e a mudança da estrutura social, ou seja, entre a proscrição dos betas e a vitória da igualdade, ficou em aberto. É um arremate melhor do que a versão do desafio, mas que ainda assim me pareceu um pouco frustrante. De repente, a promoção post mortem de Julio a alfa com a continuidade do sistema de segregação soasse mais verossímil, pois é assim que acontece na vida real, não é?

  2. Priscila Pereira
    27 de setembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Jorge! Tudo bem?

    Pelo que entendi, Júlio morreu, não foi? Não ficou muito claro… Pq fala que “tinha chegado ao fim da sua luta” e depois a “cerimônia que foi meramente simbólica” ( entendi que era simbólica pq haviam abolido a segregação, mas…) me levou a pensar que ele morreu pela causa. Muito triste!

    Como disse no conto original (ou esse seria o original 🤔) parece que é o resumo dos capítulos de um livro, um ótimo livro!

    Gostei de saber como você tinha idealizado o conto, e como os colegas foram por outro caminho. Muito interessante!

    Até mais!

    • Jorge Santos
      27 de setembro de 2024
      Avatar de Jorge Santos

      Olá, Priscila. O Júlio sofreu um bocado mas está bem. Obrigado pela preocupação!!

  3. Leo Jardim
    27 de setembro de 2024
    Avatar de Leo Jardim

    Boa, Jorge. Gostei mais desse desfecho também. Quando planejei os ômegas, minha ideia ia mais por esse caminho de inclusão leve, algo mais de bastidores, que uma revolução terrorista. Seria inspirado em Clube da Luta, sabe? Até escrevi uma cena extra sobre isso, mas resolvi apagar para deixar o continuador mais à vontade para escolher o caminho. Enfim… rs

    Gostei bastante da Laura, uma ótima adição. Só achei que o espaço era realmente curto. Muitas coisas aconteceram em pouco tempo. Estendido mim espaço maior, com mais tempo em cada cena, ficaria um texto realmente excelente. Grande abraço!

    • Leo Jardim
      27 de setembro de 2024
      Avatar de Leo Jardim

      Escrever no celular e não revisar dá nisso

      minha ideia ia mais por esse caminho de intervenção* leve

      Estendido num* espaço maior

  4. Kelly Hatanaka
    27 de setembro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Aí sim! Terminou como prometido. Gostei.

    Pensei que a coisa fosse se tornar mais sangrenta, mas gostei dessa versão Gandhi do Julio. Uma revolta pacífica, a desobediência civil. Lara foi uma inserção muito boa. No começo, quando ele ficava observando a casa, pensei que a história fosse seguir um rumo mais “A Casa dos Espíritos”. Felizmente, me enganei.

  5. JP Felix da Costa
    27 de setembro de 2024
    Avatar de JP Felix da Costa

    Este conto tinha-me deixado um gosto amargo na boca. A forma como foi continuado não lhe fez jus. Quem escreveu a continuação, no certame, que me desculpe, mas, de todos os contos, este foi o que mais me desiludiu em termos de continuação. Em especial o final.

    Esta nova versão da história surpreendeu-me. A minha ideia para a história era mais negra e tenho de admitir que esta conclusão está bastante melhor do que a tinha imaginado.

    Parabéns Jorge. Gostei muito.

    JP

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Informação

Publicado às 26 de setembro de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .