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Detox Literário.

Ensaio sobre a morte – Final alternativo (JP Félix da Costa)

*

Luca pousou a caneta e saiu silenciosamente. Sabia que Theo não o seguiria, por isso, sentou-se no degrau da escada e se apoiou no ferro do corrimão. As lágrimas deslizavam, lentamente, pelo rosto. Traíra o seu amigo. Não sabia se ele alguma vez o iria perdoar, mas não conseguia conceber a sua vida sem ele. Podia ser acusado de egoísmo, não se importava, mas ele era o único amigo que lhe restava e não estava pronto para se despedir dele. Aquela obsessão de Theo pela morte era algo que ele não entendia. O consenso atual da comunidade científica defendia que a ideia de vida após a morte era apenas uma deturpação, pela inteligência, do instinto primordial de sobrevivência do ser humano. Uma vontade de sobreviver à própria morte. Mas a única forma de o fazer era tomar a água da vida. Outro fator apontado para essa mitologia era a impossibilidade de alguém simular a sensação de morte. É impossível simular a inexistência. Mas o amigo mantinha a ideia de que deveria haver algo depois da morte. Que esta não era o fim, mas apenas uma passagem. Luca se lembrava de Theo lhe dizer isso e que, caso não houvesse nada depois, não sentiria nenhuma desilusão por não estar vivo pois não existiria.

O som abafado de uma pancada num móvel de madeira chamou-lhe a atenção. Ergueu-se e dirigiu-se para a porta do apartamento de Theo. Do interior ouviu um baque surdo, como alguém caindo ao chão. Luca ofereceu-se, em tribunal, para ficar responsável por acompanhar o amigo até ao dia da sentença. Graças a isso, o juiz ordenou que lhe fosse entregue uma chave da casa de Theo.

Na sala encontrou Theo tombado no chão, sem respiração. De imediato, ligou com os serviços de emergência para que ele fosse socorrido. Era caso inaudito, um pedido, assim, de socorro com tanta emergência. Isso levou a que a resposta fosse mais demorada e os paramédicos só chegaram na casa quase dez minutos depois.

Apesar da reanimação ser um sucesso, Theo foi levado para o hospital em estado de coma. A notícia correu como fogo em palha seca e a imprensa ficou hiperativa. Não só os serviços de emergência tinham sido acionados, mais de um século depois da última vez que tal aconteceu, como alguém estava em coma. Os médicos não conseguiam ocultar a sua alegria. Finalmente uma situação que se demonstrava desafiante. Pela bizarria do caso, foi pedida a imediata intervenção do tribunal. Analisados os fatos, o juiz decretou que, pela ordem natural das coisas, a sentença havia sido executada. Restava, porém, a pequena questão de que Theo deveria estar acordado, após a experiência de morte, para fazer um relato do que viu. Com base neste requisito da sentença, os médicos propuseram realizar um tratamento intensivo experimental com água da vida para estudarem as capacidades generativas da água em relação às células cerebrais e aos neurónios perdidos pela privação de oxigênio.

Aprovado o tratamento, a azáfama foi elevada, no hospital. A imprensa cobria todo o evento e acompanhava o tratamento dia após dia. A princípio os esforços pareciam fúteis, mas, com o passar do tempo e as doses máximas de água da vida que lhe eram administradas, Theo recobrou a consciência. A euforia foi total. Theo estava de volta. Todavia, apesar de se mover, alimentar, e realizar todas as outras funcionalidades corporais, mantinha sempre o silêncio, com o olhar no infinito, e não reagia a nenhum estímulo. Se não fosse alimentado como uma criança, não comia nem bebia. Era como se fosse apenas um boneco articulado. Foram realizados todo os testes possíveis, incluindo várias TAC, mas nenhum revelou qualquer tipo de lesão. A água da vida resolvera todos os problemas e devolvera ao cérebro toda a sua vitalidade.

Como estava vivo e reativo, foi presente a tribunal para cumprimento da sentença.

– Senhor Theobaldo Nunes. – O juiz tomava a palavra após os trâmites iniciais do julgamento estarem terminados. – O que viu no tempo em que esteve morto?

Theo manteve-se em silêncio fitando o infinito. A sala aguardava as suas palavras e nem uma mosca se ouvia.

– Dr. Murylo Reis. – Pouco depois a voz do juiz rasgava o silêncio. – Pode-nos indicar o estado clínico do senhor Theobaldo Nunes e quais as expetativas de recuperação?

– Após serem executados todos os testes e análises possíveis, é consenso da comunidade médica que o senhor Theobaldo Nunes nunca irá recuperar completamente, e há uma forte probabilidade de ficar neste estado para o resto da vida. O nosso diagnóstico final é que, apesar de as células cerebrais estarem vivas, estas são novas e, como tal, não retêm a informação nem as memórias do senhor Theobaldo Nunes.

O juiz processou aquela informação e decidiu que, se ninguém se responsabilizasse por Theo, ele seria enviado para uma instituição pública. Luca sabia que o juiz se referia aos chamados “armazéns”, instituições do Estado onde aqueles que não se adaptavam à sociedade eram encerrados. Assim, para isso não suceder, mostrou-se logo disponível para se responsabilizar e cuidar dele.

Com a autorização do tribunal, Luca se mudou para a casa de Theo. Sentia-se culpado pelo que sucedera e iria cuidar do amigo para toda a eternidade.

Theo era, agora, oficialmente, um homem novo e vazio, e não se previa melhoras para o futuro. Esta conclusão esfriou o interesse de todos no caso e, rapidamente, foi esquecido pela imprensa.

Em casa passava os dias sentado numa poltrona da sala. Os olhos apontavam sempre ao infinito e nenhuma palavra lhe passava pelos lábios. Luca tratava dele e todos os dias eram iguais. Estava mortificado pelo que fizera ao amigo. Não só tentara impedir que ele realizasse o seu desejo de morrer, deletando-o, como o impedira de o realizar, naturalmente, condenando-o a uma existência sem existir. Uma eterna morte em vida. Era a maior ironia da imortalidade.

*

Mais de três meses se haviam passado desde que Luca aceitara cuidar Theo. Ambos estavam na sala e Luca lia um livro enquanto Theo permanecia sentado à sua frente, mas um pouco ao lado. Para aliviar a pressão que sentia no pescoço, Luca ergueu os olhos e reparou que Theo estava olhando para ele. Quando um olhar se prendeu no outro, Theo falou.

– Eu não quero morrer. – Luca ficou de queixo tombado. – Eu não quero morrer, Luca.

– Ainda bem que não, meu amigo. – Disse Luca, quase delirante de felicidade. Não só o amigo falava, como já não queria morrer. Sentiu um peso sair-lhe dos ombros. Theo certamente iria lhe perdoar e agradecer o que fizera por ele.

– Eu não posso morrer.

– Claro que não, Theo, claro que não podes morrer novamente. Vamos viver para sempre.

– Eu estive morto muito tempo, é verdade.

– Sim, Theo, foram quase 10 minutos. Receei te perder, foi horrível.

– Só dez minutos? Eu estive lá muito mais que dez minutos.

– Você lembra de estar morto? O que você viu?

– Eu vi as cascatas de almas de Maiardu. Vi as planícies intermináveis de Crondanar. Vi um mundo de uma beleza indescritível.

– Sério? O mundo depois da morte é assim tão belo? Conta mais. – Luca esquecera por completo todas as ideias que tinha sobre a morte. O que o amigo contava, naquela voz calma e aveludada, enchiam-no de curiosidade.

– Não dá para descrever, Luca, só vendo. Estou com fome. – Theo ergueu-se. – Mas tens de ver pelos olhos do amo, como eu fiz, porque esse mundo está vazio e moribundo. As cascatas estão secas, as planícies não estão mais verdejantes, Luca. Nós estamos matando esse mundo e só nós o podemos salvar.

– Como assim? Amo, que amo?

Theo entregou à Luca um pedaço de papel onde estava escrito a palavra “Desculpa”. Este reconheceu a sua letra. Era a palavra que escreveu na agenda. Seguiu Theo para a cozinha.

– Você me desculpa pelo que fiz?

– Não, Luca, agora sou eu que estou pedindo desculpa para você.

– Porquê, Theo?

Luca se aproximou de Theo pelas costas. Este pegou uma faca do suporte magnético da parede, rodou sobre os calcanhares e, num movimento rápido, enterrou a lâmina, de bico e na horizontal, na garganta dele, perfurando a laringe. Os olhos de Luca estavam muito abertos. Fora pego de surpresa. Num movimento lateral brusco, Theo rasgou o pescoço dele cortando a veia jugular até a faca ficar solta. Luca colocou as mãos no pescoço, mas não conseguiu parar a enxurrada de sangue que esguichava pelo meio dos dedos. Como uma boneca de trapos, tombou no chão, numa poça do próprio sangue que se expandia pelo tapete.

– Porque o amo precisa de almas para restaurar aquele mundo, e eu vou enviar almas para ele. Nem que seja uma de cada vez.

6 comentários em “Ensaio sobre a morte – Final alternativo (JP Félix da Costa)

  1. Gustavo Araujo
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    Olá, João Pedro. Receio ter gostado mais da versão do desafio, que manteve a pegada introspectiva e filosófica estabelecida pela autora inicial. Não é que esta parte esteja mal escrita ou algo assim — ao contrário. É que me parece muito distante da ideia original. Confesso que até fiquei entusiasmado com a construção mais elaborada vista aqui, até mesmo por conta da ideia de uma tábula rasa em relação ao Theo ressuscitado, mas o final tipo “plot twist” não me agradou. Pareceu um tanto gratuito. É possível que agrade outros leitores, porém. Mas, de todo modo, como experiência, achei válida a tentativa.

    • JP Felix da Costa
      27 de setembro de 2024
      Avatar de JP Felix da Costa

      Obrigado, Gustavo

      Foi precisamente por não encapsular a primeira e segunda parte, dando-lhes um final em concordância, que guardei este texto e escrevi o que enviei para o desafio.

      Como achei que haveria quem fosse achar este interessante, partilhei-o.

      JP

  2. Leo Jardim
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Leo Jardim

    Boa, JP. Vou dizer que achei o final desse bem mais impactante que o anterior, embora possa parecer que tenha uma quebrada no estilo do conto até então, eu achei válido, já que o mundo distópico se apresentou na segunda parte. Difícil a avaliar esse sem o outro na memória, mas creio que daria uma nota um pouco maior pra essa segunda versão.

  3. Kelly Hatanaka
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Oi JP.

    Eu já tinha gostado do final deste conto. Mas também gostei muito desta sua versão. A ideia do amo e da existência de um assassino serial, com uma missão, em um mundo em que a vida pode ser eterna é muito impactante.

    Parabéns.

    Kelly

  4. Priscila Pereira
    25 de setembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, João Pedro! Tudo bem?

    Gostei bastante do seu final alternativo!

    Por mim podia ter mandando esse mesmo! Gosto de finais surpreendentes e esse tem muita lógica, Théo viu como o pós morte era e viu como estava agora por falta de almas e sabia como consertar esse erro, então tomo a tarefa para si.

    O ideal é que os dois finais fossem misturados, claro que o limite de palavras impediu isso, mas ficariam ótimos juntos. Particularmente gostei mais desse, com o Theo se tornando um possível assassino em série! Muito bom!

    Gostei bastante de conhecer sua escrita e sua criatividade! Espero que continue com a gente!

    Até mais!

  5. Luis Guilherme Banzi Florido
    24 de setembro de 2024
    Avatar de Luis Guilherme Banzi Florido

    Olá, JP! Tudo bem?

    Uma releitura muito interessante da história original! Gostei de como você manteve os elementos originais, mas subverteu a história e oxigenou com novas ideias. O protagonista, desta vez, sentiu passar um longo tempo no pós vida, e, ao invés de voltar desesperado pela ausência da morte, destruindo o pós vida, na sua versão ele encontrou o “amo”, provavelmente alguma espécie de anjo da morte. O homem então se torna um servo desse ser, e volta para ajudar a preencher novamente o pós vida. Gostei muito! O final deixou a perspectiva de muitos assassinatos, e o primeiro a pagar foi Luca, que acabou sendo castigado pelo próprio erro. Foi um triste fim para Lucas, que parecia infantilizado, mas não malvado.

    Enfim, gostei de como você utilizou os elementos da história original, mas deu sua própria versão. Ficou interessante, e faz um paralelo interessante com a história original.

    Parabéns!

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Publicado às 24 de setembro de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .