EntreContos

Detox Literário.

Delia Elena San Marco – Clássico (Jorge Luis Borges)

Despedimo-nos em uma das esquinas do Once.

Da outra calçada tornei a olhar; você havia se virado e acenou-me com a mão.

Um rio de veículos e de gente corria entre nós; eram cinco horas de uma tarde qualquer; como eu podia saber que aquele rio era o triste Aqueronte, o intransponível?

Não nos vimos mais e um ano depois você estava morta.

E agora procuro essa memória e a vejo e penso que era falsa e que por trás da despedida trivial estava a infinita separação.

Ontem à noite não saí depois do jantar e reli, para compreender essas coisas, o último ensinamento que Platão põe na boca de seu mestre. Li que a alma pode fugir quando morre a carne.

E agora não sei se a verdade está na infausta interpretação ulterior ou na despedida inocente.

Porque, se as almas não morrem, é bom que em suas despedidas não haja ênfase.

Dizer adeus é negar a separação, é dizer: “Hoje brincamos de nos separar, mas nos veremos amanhã”. Os homens inventaram o adeus porque se sabem de algum modo imortais, embora se julguem contingentes e efêmeros.

Delia: um dia reataremos – à margem de que rio? – este diálogo incerto e nos perguntaremos se algum dia, em uma cidade que se perdia em uma planície, fomos Borges e Delia.

8 comentários em “Delia Elena San Marco – Clássico (Jorge Luis Borges)

  1. Gustavo Araujo
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    É fácil se aferrar à prosa borgiana porque ela nos remete às nossas próprias experiências de despedida, daquele tipo em que não pudemos perceber tratar-se do adeus derradeiro. Todos já passamos por isso e ainda haveremos de passar — e o que é mais dramático, sem jamais estarmos prontos. Resta assim o apego à memória, às recordações mais recônditas. Talvez seja a única maneira de mantermos viva a presença de quem se foi sem que para isso seja necessário recorrer ao sobrenatural. Um viva a Borges porque ele soube, como poucos, falar sobre fraqueza e esperança, qualidades que nos definem enquanto espécie.

  2. Leo Jardim
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Leo Jardim

    Lindo e triste. Já que estamos nessa de abrir o coração, minha mãe estava há 4 meses em coma depois de um AVC. Um dia, ela despertou e ficou assim durante quase uma semana. Eu aproveitei cada segundo que pude. Agradeço muito por esses últimos dias. Teria sido muito pior se tivesse sido repentino.

    Borges fazendo nesse texto aquilo que a literatura faz de mais bonito: nos fazendo pensar sobre a vida e além.

  3. Kelly Hatanaka
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Curto e lindo.

    Um dia, meu primo saiu de casa, foi se encontrar com amigos. Eu, de meu quarto, fiquei com preguiça de sair e me despedir dele. Ouvi quando se despediu de meus pais, abriu o portão e ligou o carro. Pensa num arrependimento, o único que tenho na vida. Como queria ter saído do meu quarto naquela hora…

  4. Givago Domingues Thimoti
    25 de setembro de 2024
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Lindo, curto e potente.

    Para os curiosos: “Logo após sua morte, a alma era levada de barco pelo Caronte, deixando no Rio Aqueronte todos os seus sonhos, desejos e deveres que não foram realizados em vida”

  5. Givago Domingues Thimoti
    25 de setembro de 2024
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Poucas palavras de um desabafo lindo e potente.

  6. Priscila Pereira
    24 de setembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Que lindo!

    Lembrei da última vez que vi meu pai, sem saber que seria a última. Nos despedimos sem ter ideia de que seria o último abraço aqui na terra, mas com a certeza de que passaremos a eternidade juntos no céu.

  7. Fabio Baptista
    23 de setembro de 2024
    Avatar de Fabio Baptista

    Tão simples e ao mesmo tempo tão bonito e reflexivo.

    Gostei.

    Boa sorte no desafio!

  8. André Lima
    23 de setembro de 2024
    Avatar de André Lima

    Belíssimo. Que sensibilidade com as palavras tem Jorge Luis Borges. Parece que as beijou uma a uma antes de colocá-las no papel.

Deixar mensagem para Leo Jardim Cancelar resposta

Informação

Publicado às 23 de setembro de 2024 por em Clássicos e marcado .