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Detox Literário.

A breve dança do fogo – Conto (Antonio Stegues Batista)

Dante bebia seu Dry Martini no elegante Kripta’s Bar. Marcus o conhecia como Lorde Dante Feratus Alterra. Só não sabia se o Lorde era nome próprio ou um título. De qualquer forma, Dante se vestia e se comportava como um fidalgo.  Era empresário, dono das Vinícolas Alterra. Não falava muito, apenas o necessário. Quando Marcus tentava saber algo mais de sua vida privada, ele desconversava, mudava de assunto. Então, Marcus o deixava quieto. Costumava chegar alegre, satisfeito com a vida, mas naquela noite estava sério, aborrecido, aparentemente melancólico e entediado. Para Dante Feratus, parecia que a noite seria igual a tantas outras, ele acabaria o drink e sairia do bar em busca de sangue fresco.

Então, a mulher como que se materializou de repente ao seu lado. O coração de 267 anos pulsou extasiado como nos velhos tempos. Se não tivesse visto Lívia pegar fogo e virar cinzas diante de seus olhos, diria que aquela mulher de cabelos vermelhos e olhos verdes era ela. Teria Lívia ressuscitado das cinzas?

Ela olhou para o copo diante dele.

— Essa bebida aí é gostosa?

— Ruim não é. Eu gosto – respondeu ele, referindo-se não só a bebida, mas a figura dela, bela, jovem, esbelta.

— Então vou experimentar.

— Marcus, traz um desse para a senhorita

A mulher estendeu a mão delicada, que ele aceitou com prazer.

— Isabela Cortázar.

— Dante Constantino Alterra.

Ela fez uma expressão de surpresa.

— Alterra, me lembra alguma coisa.

— Vinho?

— Isso mesmo. Já tomei esse vinho que é muito bom. Tem o mesmo nome então, o senhor…

— Sou o dono da vinícola Alterra.

Marcus colocou a bebida diante dela, Isabela pegou a taça com delicadeza e provou um gole.

— Delicioso.

— E você, faz o quê?

— Trabalho numa rede de televisão como redatora. À noite sou caçadora de vampiros.

Olhou para ele de viés e um sorriso debochado.

— Verdade? E onde está o martelo e à estaca?

— No carro, um Chevrolet Ônix vermelho.

— Eu tenho um Maverick anos 70, em Toscana, na Itália. Sou colecionador de objetos antigos e raros.

Isabela tomou um gole da bebida e passou a língua pelos lábios.

— Fale mais sobre você.

Fui moldado nas forjas de Vulcano. Corre em minhas veias a essência dos imortais. Fui o escravo que assentou a primeira pedra das pirâmides de Gisé. Apreciei a dor quando o chicote do feitor abriu sulcos ensanguentados em meu dorso. Cansado, fui curar minhas feridas nos prostíbulos de Gomorra e acalentado nos braços de uma cortesã, adoradora de Isis. Andei por terras distantes, Pound, Ofir, Lemúria, até que encontrei minha alma gêmea. Já existíamos quando o Espirito soprou sobre as águas e as Sombras se recolheram às cavernas. Éramos física quântica, pó das estrelas. Voamos na atmosfera de Netuno, nas tormentas sibilantes dançamos com os vórtices de metano. Nossos risos eram como relâmpagos ecoando pelas escarpas sulforosas. Naquele dia, nos beijamos pela primeira vez e sequer imaginamos que ela partiria tão cedo, sem despedida, sem aviso. Atormentado, me joguei no Deserto e me tornei parte dele. Vazio. Seco. Morto. Morri no último minuto, da última hora do fim do dia.

Dante calou-se e esvaziou o copo. Isabela continuou olhando para ele, admirada.

— Que linda poesia! Quem é o autor?

— Eu mesmo. Acabei de fazer agora. Falando sério. Sou empresário. Gosto daquilo que me dá lucro, ou prazer. Fale sobre você. Sei que tem um Ônix, trabalha como redatora e tem por passatempo, caçar vampiros. É sério isso?

— Claro que não. Você acredita em vampiros?

— Nesse mundo doido tudo é possível.

— Pois é., mas, falando de mim, estou de férias e pretendo viajar, conhecer lugares novos.

— Que coincidência, eu estou voltando para Toscana essa semana. Gostaria muito de ter sua companhia. Eu teria um imenso prazer em te mostrar minha colação de pinturas e objetos raros e antigos.

— Claro, adoraria.

Dante sorriu, satisfeito. Por nada do mundo perderia aquela mulher

***

O sol surgiu entre as nuvens quando o carro parou na frente da mansão. Dante saltou, deu a volta e abriu a porta para Isabela descer. Ele usava gorro, óculos escuros, luvas e roupas grossas para se proteger do sol. Ela vestia um casaco de pele porque estava frio. Olhou ao redor e se encantou com a morada, uma casa que parecia mais um castelo rodeado de árvores, Era outono e as folhas estavam caindo, atapetando o pátio de vermelho-dourado. Algumas sebes ainda estavam verdes. Um jardineiro varria as folhas secas, colhia com a pá e colocava num carrinho-de-mão. A porta da casa se abriu e surgiu uma mulher magra, empertigada, de cabelos pretos enrolados num coque. Após ela saiu um dos empregados para pegar as malas no carro.

— Senhorita Isabela, sou Micaela Francis, a governanta. Benvenuto. Seu quarto está arrumado e o banho preparado – disse a mulher num tom seco, porém, amistoso. Não sorriu porque não gostava de bajular os hospedes do patrão, principalmente quando eram mulheres. A governanta acompanhou a hospede ao quarto e se retirou. Isabela desfez as malas, tomou um banho e mudou de roupa. Estava satisfeita, o ambiente era luxuoso e aconchegante.

Ao anoitecer Micaela mandou servir o jantar e dispensou os empregados. Não era conveniente que eles passassem a noite ali, ainda mais quando o patrão vampiro estivesse em casa. Quando Dante desceu com Isabela, estava perfumado e vestido como um lorde da Era Vitoriana. No reinado de Jorge III, em 1780, ele foi deserdado e expulso da casa do pai. Virou contrabandista e numa viagem a Romênia, foi mordido por um vampiro, discípulo de Drácula. Era o que Micaela sabia sobre o homem que amava. Ele ofereceu o sangue dele para ela beber e se tornasse imortal. Um gesto de caridade para que ela permanecesse perto dele, mas sem desfrutar de seu amor. Todo vampiro alfa necessitava de pessoas de confiança, ainda mais quando se tornavam empresários.

Micaela, seguindo as regras, deixou os dois jantando e foi para o quarto. Ficou ali até eles terminarem de jantar e depois desceu para recolher a louça e colocar na pia, enquanto Dante mostrava a casa e seus objetos de arte a Isabela. Depois de arrumar a sala a governanta tomou um banho, vestiu o pijama e foi dormir. Mas não conseguiu pegar no sono. Ficou imaginando Dante e Isabel na cama. Depois de transar, Isabela pegaria no sono, Dante cortaria com a unha o pescoço dela e chuparia o sangue. O corte seria curado com a saliva dele, Isabela acordaria de manhã sem perceber nada. Depois de 4 ou 5 dias, Dante enjoaria dela e a mandaria embora, como fez das outras vezes com suas conquistas. Porém, Micaela sentia que desta vez era diferente. Dante parecia estar apaixonado por sua vítima. Pela manhã, ele levou Isabela para visitar a vinícola. Micaela ficou pensando, tentando lembrar de onde conhecia aquela mulher. Animou-se quando se lembrou de uma pintura no Salão Azul, uma mulher que talvez fosse parente de Dante. Deixando o quarto, desceu as escadas e dirigiu-se para o salão. Desligou o alarme antes de entrar. As paredes estavam cobertas por quadros com telas de pintores famosos. Mas ali não estava a figura que permanecia em sua lembrança. Pegou uma chave que estava escondida em um dos quadros, que ela descobriu por acaso, mas nunca teve coragem de usar para entrar no escritório de Dante. Dirigiu-se para a porta ao fundo, meteu a chave na fechadura, girou, abriu e entrou.  A escrivaninha tinha tampo de acrílico, a base em madeira de ébano com detalhes em marfim e ouro. Na parede, atrás da cadeira, estava um quadro coberto por uma cortina preta. Ela tinha visto o quadro fazia muitos anos, não se lembrava quem era na pintura.

Agarrou a cordinha da cortina e puxou, revelando o retrato. A mulher era idêntica a Isabela. A jovem vestia um vestido vermelho e usava um colar de pérolas. Os cabelos ruivos estavam enrolados num coque elegante. Permanecia de pé, com uma mão repousando no espaldar de uma cadeira ricamente lavrada. Na ocasião da mudança, Dante havia dito que era uma prima. Naquela ocasião ela pouco se interessou pela pintura, mas agora teve a ideia de olhar atrás da tela. Tirou do gancho com cuidado e virou. Na parte de trás da moldura estava escrito em letras miúdas; Retrato de Lívia de Grenville, duquesa de Wilker, por Benjamin West. 1783.

Micaela teve um mal-estar. Suas mãos tremiam quando ela colocou o quadro no lugar. Abalada, voltou a trancar o escritório e saiu para o quarto. Deitou-se na cama. Logo que ela conheceu Dante, e se tornou sua discípula, ele contou sobre Lívia, a única mulher que ele amou. Uma vampira igual a ele que se tornou sua companheira, e que por acidente, ficou exposta ao sol e morreu incinerada. Dante morderia o pescoço de Isabela, a transformaria em uma vampira e em sua esposa. Isabela, que se parecia com Lívia de Grenville, que para Dante, era Lívia encarnada, ressuscitada. Micaela sentou-se na cama, bufando de raiva. A campainha tocou lá embaixo. Eram os empregados chegando para suas tarefas rotineiras.

Micaela acalmou-se um pouco, distraiu-se dando ordens à cozinheira e camareira, mas à noite, voltou a pensar no assunto que a afligia, Isabela. Ela não podia continuar vivendo. Não poderia se tornar esposa do vampiro alfa. Precisava matar sua rival. Mostrar a Dante que aquela não era Lívia de Grenville. Não conseguiu dormir à noite toda pensando e até que se decidiu. Foi à cozinha, pegou uma faca e se dirigiu ao quarto de Isabela. Sem fazer barulho, abriu a porta com uma cópia da chave e entrou. Sob os primeiros clarões da manhã, Isabela dormia placidamente. Micaela contemplou-a por um momento, depois ergueu a faca e cravou várias vezes no peito da mulher, que sequer, gritou. Dante saiu do chuveiro, nu. Primeiro ele viu Micaela com a faca na mão, depois olhou para Isabela e o sangue se espalhando pelo lençol. Ele soltou um grito de desespero, abraçou a jovem junto ao peito. Depois ergueu o rosto, os olhos avermelhados, para Micaela.

— Ela não é Lívia. Não é. – disse a mulher, tentando se convencer que Dante entenderia o seu gesto extremo em nome do amor que tinha por ele.

Dante soltou o corpo inerte, e com um urro selvagem, se tirou sobre Micaela e a vidraça atrás dela, que se partiu em cacos, e os dois despencaram pela janela, tombando no piso do pátio. Micaela quebrou a cabeça e o pescoço. Atordoado, Dante se ergueu com um pedaço da vidraça cravado na ilharga. Ele cambaleou de dor, pensou em voltar para dentro de casa, mas os primeiros raios do sol que nascia, atingiram o topo da sua cabeça e os olhos explodiram. Cego, gritou de dor. Cambaleou de um lado para outro, enquanto o sol se erguia no horizonte lançando sua luz sobre ele. Dante se transformou numa tocha humana. O fogo foi breve. Em segundos só restaram cinzas que o vento espalhou sobre as folhas vermelhas-douradas no pátio. Da beira do telhado, caiu uma gota de orvalho sobre o cadáver de Micaela. Parecia uma lágrima em seu rosto branco-mármore.

4 comentários em “A breve dança do fogo – Conto (Antonio Stegues Batista)

  1. Kelly Hatanaka
    11 de junho de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Gostei bastante desta história de terror/amor. Achei uma pena a morte de Livia ter sido um acidente. Fiquei imaginando que uma morte besta deva parecer ainda mais inaceitável para seres imortais. As cenas estão bem descritas e a ambientação bem feita. Fiquei o tempo todo pensando que Isabela fosse uma caçadora e que a qualquer momento ela ia sacar uma estaca da bolsa. Muito bom!

    • Antonio Stegues Batista
      12 de junho de 2024
      Avatar de Antonio Stegues Batista

      Às vezes o personagem nos leva a um final imprevisível, mas nesse conto, o final já estava estabelecido na minha mente. Obrigado pela leitura e comentário.

  2. Priscila Pereira
    10 de junho de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Gostei de ver, seu Antônio! Muito bem escrito e muito bem revisado! 👏👏👏

    O conto está muito fluído e gostoso de ler, dá pra imaginar muito bem a cena, o senhor sabe como fazer isso perfeitamente, fazer com que o leitor imagine tão bem a cena que parece que estamos vendo um filme!

    Mas eu tenho que te falar que esse conto poderia muito bem ser o final de um romance, já pensou nisso? A história da Isabela, da Lívia e da Micaela merecia uma história muito maior!

    Gostei bastante do conto, muito bom de ler! Parabéns por mais um ótimo trabalho! Até mais! 🥰😘

    • Antonio Stegues Batista
      12 de junho de 2024
      Avatar de Antonio Stegues Batista

      Pois é, tem elementos para um texto maior, mas eu nunca escrevi um romance, um texto com mais de 200 páginas, no mínimo. Obrigado pelo incentivo.

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 10 de junho de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .