EntreContos

Detox Literário.

Marcela (Gustavo Araujo)

Com o balanço do ônibus, deixou-se hipnotizar pelos faróis dos carros que vinham no sentido contrário da rodovia, iluminando a esmo os rostos desconhecidos ao seu redor.

Notou ao lado uma mulher pouco mais velha do que ela. Uns 25 anos no máximo. Tinha os olhos fechados e no colo um bebê que ressonava tranquilamente, a boca entreaberta e a chupeta pendendo de um cordão que sacudia no ritmo da estrada. Com a mulher e o bebê havia uma criança que mirava pela janela, debelando o reflexo indesejado com as mãozinhas em riste junto ao vidro. Talvez contasse as estrelas daquela noite sem nuvens.

Sem perceber, desligou-se daquela mãe e de seus dois filhos pequenos e passou a mão pela própria barriga. Cerrou os olhos uma vez mais na busca pelo sono perdido. Na penumbra de seus pensamentos, ainda ouvia a voz de sua mãe dizendo: o mundo não precisa acabar, Marcela.

******

A verdade é que não estava a fim de sair àquela noite. Só que se furasse mais uma vez, as amigas iriam reclamar por pelo menos três semanas, dizendo ah, a Marcela não tem jeito, é antissocial, se acha boa demais… Tá bem, vamos lá então Enquanto trocava de roupa imaginava, afinal, qual seria o grande propósito daquilo tudo. Encontrar o príncipe encantado? Achar alguém só para transar? Beber? Que derrota… Estava cansada desse jogo inútil, desse teatro, de voltar tarde para casa fedendo a cigarro, de ouvir bandas que detestava… Queria evoluir, libertar-se, fugir dali. Esse dia haveria de chegar, tinha certeza. Era só ter paciência.

Chamava-se Circus o barzinho. Estava apinhado de gente que deslizava de um lado para o outro equilibrando copos de cerveja, coquetéis ou qualquer coisa que pudesse levá-los para longe da vida modorrenta que tinham, ao menos metaforicamente. Marcela observava a fauna, espremida na multidão que cruzava o espaço ao som de uma banda desconhecida que se apertava no palco à frente, uns moleques que se metiam a tocar Metallica. O que eu estou fazendo aqui, perguntava a si mesma, ouvindo músicas de trinta anos atrás, uma indagação, claro, meramente retórica.

Foi quando uma briga estourou no meio do público. Uma roda se abriu como um redemoinho. No centro, dois sujeitos se encaravam. Um deles tinha o rosto manchado de sangue e o outro brandia uma garrafa. Cena clássica. Ao fundo, os acordes de Enter Sandman se sucediam no ar, intensificando o confronto. Dois seguranças apareceram do nada e imobilizaram os brigões sem muito esforço. Foi aí que a banda parou de tocar. Uma leve vaia se insinuou pelo público, mas não chegou a ganhar volume.

“É nessas horas que a gente se pergunta: o que é que eu vim fazer aqui?” disse alguém à retaguarda, assim, numa espécie de desabafo.

Marcela voltou-se e viu um rapaz de cabelos escuros acompanhando a cena com uma expressão negativa. Quando ele percebeu que ela o observava, não conseguiu evitar um sorriso de surpresa, meio sem jeito.

“Eu tava pensando a mesma coisa”, disse ela. Tinha gostado dele, da maneira como se vestia, calça jeans e camiseta com estampa da Legião Urbana. Um peixe fora d’água naquele lugar. Assim como ela.

O fato é que naquela noite Marcela não voltaria para casa. Não no horário combinado com as amigas, pelo menos. Quando começou a conversar com Caio – era esse o nome dele – o papo engrenou daquele jeito que poucas vezes na vida se repetem. Por que não aproveitar, chutar o balde, para variar? Maior de idade, vacinada, com emprego na prefeitura e prestes a se formar na faculdade de letras, uma pessoa de cultura acima da média e muito responsável – era como se enxergava. Isso tudo aos 22 anos. Não que fosse um exemplo de recato. Era responsável, sim, mas sabia aproveitar a vida nos momentos certos. E aquele parecia ser um momento certo.

Bebida, conversa, braços se tocando, olhares desenhando triângulos no rosto um do outro. O papo cessou. Veio o desejo. Mais bebida, mais conversa e finalmente o beijo. Meu Deus, que beijo bom. Queria beijar aquele cara a noite inteira. Caio estava em São José de passagem apenas, a caminho de Rio Pardo, mais ao norte, onde ia visitar um parente. A parada ali não fora programada. Um pneu furado obrigou-o a interromper a viagem. Aquele encontro entre eles era fruto de um acaso, uma chance em mil. No hotel em que ele acabara se hospedando disseram que haveria um show de uma banda cover do Metallica. Ele nem gostava tanto do Metallica, no máximo umas duas ou três músicas, mas era melhor do que ficar no quarto assistindo à novela. Foi o que disse a ela. Marcela achou engraçado, mas àquela altura acharia qualquer coisa engraçada.

Um acaso. Uma chance em mil. Se fosse ingênua e romântica, Marcela acreditaria que aquilo era o universo conspirando a seu favor, que Caio era um príncipe enviado pelo destino para que se conhecessem, se casassem e vivessem felizes para sempre. Mas Marcela deixara de ser ingênua há tempos. Olhando para aquele cara percebeu que queria transar. Sim, fazer sexo com ele, tirar-lhe a roupa, beijá-lo por inteiro e tudo mais. Porque só tinham aquela noite. “Você tem camisinha?”, perguntou com os olhos cravados nos dele.

No quarto do hotel, ao contrário das expectativas, Caio se mostrou um tanto decepcionante, mais preocupado consigo mesmo do que com ela. Queria acabar logo com tudo aquilo, gozar e pronto. Como alguém que beija tão bem podia ser tão sofrível na cama? Talvez o problema fosse com ela, pensou. Com aquele seu nariz fino demais que ela trocaria com qualquer pessoa. Não, definitivamente, não. O problema era ele. Era esse narcisismo típico masculino. Um adeus acanhado já na madrugada pôs fim a tudo. Tempo perdido. Até nunca mais.

******

O terminal rodoviário do Tietê em São Paulo é um mundo em si. Marcela estivera ali em outras oportunidades, mas nunca numa situação como aquela. Se das outras vezes viera com a mãe, para visitar parentes, agora estava sozinha. Mais sozinha do que nunca.

À frente, pessoas parecendo formigas cruzavam os saguões em marchas caóticas, umas apressadas, outras se arrastando, muitas carregando tralhas sem fim e outras sem nada. Chegavam e partiam de todos os lugares. Se prestasse atenção poderia perceber-lhes os traços de anseio e de decepção, todos com seus dramas, com suas histórias de grandeza, com suas perdas, com suas redenções.

Imaginou como eles a enxergariam. Uma mulher jovem de tez clara, cabelos escuros e compridos, que usava um vestido de flores e uma jaqueta jeans por cima, puxando uma mala de rodinhas com itens básicos. Decerto a tomariam por uma estudante sem grandes problemas na vida. Um gosto amargo lhe veio à boca. Colocou os óculos de sol que trouxera. Eram inúteis ali, mas de alguma forma se sentia protegida com eles.

Seguiu para o local de onde tomaria o uber. O som monótono da mala rodando pelo piso encardido abafava digressões mais profundas.  Tateou o bolso da jaqueta e sentiu nele o papel dobrado com o endereço de destino. Dizem que viagens trazem consigo o germe da transformação. Valia para todos ali no terminal, ela inclusive.

*****

Sentada na privada do banheiro de casa, em silêncio, Marcela aguardava. Tinha esperado a mãe sair para não correr o risco de ser surpreendida. Pelas instruções, a resposta viria depois de dois minutos. Resolvera aguardar três, só para garantir. Naquele tique-taque eterno, tentava convencer-se de que seu instinto estava enganado, de que o atraso da menstruação era só isso, um atraso, algo normal, como às vezes acontece. O problema é que seu ciclo era regular como um relógio suíço. Vinte e oito dias cravados. Sempre. Por isso aquela demora só podia significar uma coisa.

Quatro minutos se passaram. Olhou para as paredes do banheiro, daquele banheiro que conhecia desde menina, desde criança. Criança… Ah, meu Deus, não queria uma criança, não agora, não agora…

Quando olhou o aparelhinho sentiu o céu desabar sobre sua cabeça. Dois risquinhos vermelhos no visor. Positivo. Positivo… Ela estava grávida. Num átimo, viu-se com a barriga imensa, com dificuldade para caminhar, os pés inchados. Sozinha. Lembrou-se daquele rapaz no show. Caio era o nome dele. Em uma fração de segundo pensou em procurá-lo, em dizer a ele que daquele sexo horroroso que tiveram resultara um bebê e que ele precisava assumir a criança, pagar pensão e tudo mais. Abandonou a ideia no mesmo instante. Não queria saber de Caio, não gostava dele, não o via como parte de sua vida. Não, não queria Caio e acima de tudo não queria a criança. Não queria.

Respirou fundo e esforçou-se para sufocar o choro. Por que não tomara a pílula do dia seguinte depois daquele encontro? Devia ter tomado… Camisinhas furam… Como pôde ser tão burra? Balançou o aparelhinho na esperança de que o resultado mudasse. Mas não. Era claro como dia. Estava grávida. Grávida. Sua vida agora apontava para outro rumo. O horizonte e o futuro que havia planejado se esfarelavam. Lágrimas rolaram inevitáveis. Uma criança. Não, não queria ser mãe. Queria ser independente, passar num concurso melhor, ter uma carreira, viajar, protagonizar a própria vida.

******

Para sua mãe, a ideia, claro, beirava o absurdo. Como assim abortar? Pois Marcela não sabia que aborto era proibido no Brasil? Claro que ela sabia, mas também sabia que muita gente, muita gente mesmo, dava um jeito de tirar o bebê, e que isso era algo que não demandava muito esforço.

“Mãe, você é uma pessoa esclarecida… Sabe o fardo que uma criança é.”

“Eu sei, minha filha. Eu sei. Não sou idiota. E não, não é fardo. Olha para você.”

Isabel era uma mulher pesada, aparentando bem mais do que seus cinquenta e poucos anos. De seu rosto, os traços da mulher bonita que um dia fora tinham evaporado há tempos. Culpa da rotina opressiva a que se obrigara encarar desde a morte do marido, muito tempo antes. Horas e horas no escritório de contabilidade, onde trabalhava como auxiliar do financeiro roubando gradativamente sua saúde. Mas, no fim, dera tudo certo. Deus a ajudara. Marcela era seu prêmio. Doce Marcela, seu milagre, sua redenção.

“Mas eu não vim de surpresa, não vim de uma história de uma noite só com um desconhecido. Eu fui desejada por vocês. Não fui fruto de um acaso…”

“Sim, meu amor, eu concordo. Mas, de um jeito ou de outro, acaso ou não, um bebê é sempre uma felicidade imensa na vida da gente.”

“Não para mim… No meu caso, essa criança vai só me atrapalhar, eu não quero…”

“Se você soubesse como isso é transformador, Marcela, como dá significado à nossa vida… Eu me lembro até hoje de quando você…”

“Mãe, nem comece. Não quero ouvir isso. Eu tenho escolha. Ponto.”

Estavam sentadas à mesa da sala de estar. Entre elas, um bule de café, xícaras e pratos com o que restara de biscoitos e pão de queijo.

“Olha, eu te daria razão se essa gravidez fosse fruto de uma violência, algo assim. Mas não foi. Pense quantos casais queriam ter filhos e não conseguem, gente que faz tratamento por anos, pagam uma fortuna…”

“Mãe, eu não posso decidir meu destino pela frustração dos outros.”

“Entendo. Entendo mesmo. Mas me incomoda muito você querer acabar com uma vida que cresce dentro de você. Não consigo concordar com isso.”

“Mas é só um embrião… Não tem cérebro, não sente. É como se fosse parte do meu corpo, sei lá, um apêndice…”

“Não gosto desse discurso, Marcela. Embrião ou bebê, tanto faz, é uma vida que cresce aí na sua barriga, não percebe?”

“Parece minhas amigas falando, mãe. Achei que com você seria diferente, que me daria apoio…”

“Filha, eu te amo, de verdade. Mas você precisa fazer a coisa certa. Deus mandou esse bebê para você. É uma dádiva, um presente maravilhoso. Você não percebe isso agora, mas é.”

“Não é dádiva nenhuma, mãe. E Deus não tem nada a ver com isso.”

“Então por que Ele escolheu você?”

“Ele não me escolheu. Isso não existe… Você é que quer resolver um assunto da realidade com uma explicação esotérica. Que saco, viu…”

“Não tem nada de esotérico. É religião, e religião faz parte da nossa vida.”

“Faz parte da sua vida, mãe! Eu, euzinha, não consigo botar na conta de uma entidade sobrenatural tudo o que acontece comigo. Ah, porque foi Deus que quis… Não tem nada a ver. Eu é que sou dona de mim, da minha história. Não quero ter a minha vida roubada.”

“Ah, perfeito. E para não ter a sua vida roubada você se dispõe a roubar uma outra vida? É isso?”

Uma nuvem de silêncio se interpôs entre elas. Ao fundo, a torneira da pia da cozinha pingava com insistência, como se ditasse o ritmo da discussão. Até que Isabel falou:

“Meu amor, sua vida, seu destino, é ser mãe também. Entenda, um filho não vai te impedir de fazer as outras coisas que você planejou.”

“Ah, vai… Com certeza vai. Na fase que eu tenho que decidir tudo, carreira, estudos vou ficar presa cuidando de filho… No final vou ficar igual a… igual a…”

“Igual a mim?”

“Não foi isso que eu quis dizer, mãe. Desculpa.”

“E o pai do bebê? Não pode te ajudar?”

“Não quero saber dele. Esse cara não tem nada a ver comigo… Não quero ele na minha vida.”

“Não sei se concordo com você, filha. Ele é pai. Tem o direito de saber…”

“A escolha é minha, mãe. Já decidi.”

Isabel recolheu os pratos sobre a mesa e levantou-se.

“Você é a coisa mais importante desse mundo para mim, minha filha. Sabe que pode contar comigo. Mas bebê não é fardo. Eu vou estar lá para te ajudar. Sempre. O mundo não precisa acabar.”

Olhou para a mãe outra vez. Limitada pela diabetes, sofrendo em silêncio com o sobrepeso, com a pressão alta, com as pernas inchadas que a impediam de caminhar direito.

Marcela sorriu sozinha, com um tanto de amargura.

“Tá bem, mãezinha… Eu vou pensar.”

******

O uber a trouxe para um pequeno hotel na rua da Consolação, um local simples com paredes úmidas e manchadas. Café incluído, dizia o site, mas ela não estava preocupada com isso.

Viera para a capital porque era mais seguro. Porque São José era uma cidade pequena, onde todos se conheciam, onde muita gente faria perguntas. E também porque não teve coragem de enfrentar a mãe em definitivo. No fim ela entenderia, até porque tudo já estaria resolvido.

Foi em um grupo de Whatsapp que Marcela encontrou o que precisava: gente que dava suporte a pessoas como ela, que entendiam que a interrupção da gravidez é direito de qualquer mulher. Ali ninguém fazia perguntas demais, ninguém julgava ninguém. Apoio e orientação, era disso que se tratava.

Marcela se sentira acolhida. Havia muitos membros, mulheres do Brasil inteiro, que trocavam experiências, informações, ou apenas desabafos permeados por questões existenciais. Na omissão do Estado, pensava ela, restava àquela gente recorrer a ajuda do submundo. A triste terceirização de uma questão de saúde pública.

Duas pessoas – Paula e Mariana – pareciam coordenar as ações e foi com elas que Marcela se sentiu mais segura para encontrar as respostas de que precisava. Uma opção seria tomar remédios abortivos. Eram proibidos no Brasil, claro, mas dava para obtê-los pelos contatos do próprio grupo. Não eram baratos, já que chegavam ao Brasil ilegalmente, mas eram muito mais seguros do que os tradicionais métodos caseiros. “Os remédios vêm da Califórnia”, Paula explicou, “um local civilizado, você sabe, onde o aborto é permitido por lei”.

A alternativa era procurar clínicas clandestinas, explicou Mariana, que faziam o procedimento “por questões humanitárias”. O problema era que muitas delas eram improvisadas, onde a falta de higiene, o uso de ferramentas inadequadas e o despreparo das pessoas acabavam levando a complicações… Quantas mulheres morriam nesses ambientes?

Por natural, optou pelos remédios. Não tinha o que discutir. E Paula garantiu que eram confiáveis, originais. Não seria barato, mas o dinheiro que Marcela vinha guardando para férias em Maceió serviria plenamente para isso. Estava decidido.

O pacote chegou a sua casa pelo correio. Interceptara o carteiro no portão, sem que sua mãe percebesse. Com a desculpa de resolver um assunto da prefeitura, viera para a capital, onde, enfim, poderia resolver de vez seu problema. Até aquele momento, tudo funcionara como planejado.

Observou a cartela com os comprimidos. Ela os tomaria naquela noite, naquele hotel decrépito da rua da Consolação, e aguardaria o efeito. Iria doer. Muito. Ainda mais porque já estava com mais de quinze semanas. Algumas horas se passariam até que tudo se resolvesse e o feto fosse expelido. Ela atravessaria a noite assim, se contorcendo física e emocionalmente, protagonizando uma viagem cujo destino era transformá-la de volta na pessoa que um dia fora.

Se houvesse alguma complicação, se a dor se revelasse insuportável, se o sangue vertesse de seu ventre sem parar, ela deveria correr para o hospital mais próximo. E jurar de pés juntos, quando lá chegasse, que o aborto fora natural, jamais provocado, que não tomara remédio nenhum, que fora vítima da natureza. Ninguém lhe negaria socorro, isso era garantido, mas ela precisaria ser convincente, já que o risco de os próprios médicos chamarem a polícia era real.

Observou seu reflexo no espelho do banheiro. Manchas de ferrugem feriam as extremidades. Imaginou a mãe visitando-a na cadeia, em lágrimas. Não, isso não vai acontecer. Marcela não era alguém oprimida pela pobreza extrema, não ostentava na pele a cor da miséria. Sabia falar, sabia se comportar. Estava de um lado do espectro tradicionalmente favorecido. Não, ninguém chamaria a polícia. Acalmou-se dizendo a si mesma que sequer precisaria ir ao hospital. Resolveria tudo ali. E ponto.

******

O pior era aguardar o efeito. Tomara o comprimido por volta das 20h00 e depois de quatro horas não sentia nada. Conversava com Paula pelo grupo. Ela prometera permanece online durante todo o processo. Dizia a demora era normal, que Marcela precisava ser paciente.

Deitada, olhando para as paredes frias do quarto, Marcela mergulhou num estado de consciência abstrato, entre a vigília e o sono pleno. Imagens de crianças surgiam em sua mente, causando-lhe desconforto. Em momento algum, naquele processo todo, tivera dúvidas do que desejava para si. Inesperadamente, porém, sua mente lhe desafiava. Via bebês engatinhando, rindo, brincando com chocalhos e levando as mãos aos rostinhos como que para se esconder. E via a si mesma com um garotinho abraçado aconchegante ao seu pescoço. Ria com ele, sentia o cheiro dele, aquele cheiro de sabonete infantil, tão familiar. Súbito, viu a si própria como uma menininha, sentada no colo de sua mãe. Isabel segurava suas mãos pequeninas e juntas cantavam uma cantiga conhecida. “Fui morar numa casinha…”

A dor veio sem aviso, pungente, aguda, como se um braço de fogo invadisse seu ventre e retorcesse seu útero. Quando percebeu, estava no banheiro, suando, tentando controlar a respiração. “tá fazeno efeot…” escreveu à Paula, mas largou o celular no chão, levando as mãos ao abdome. Olhou para baixo e viu um filete de sangue se esvaindo por baixo. Era quase negro, grosso, e vertia em profusão. Passava das três, noite adentro. Marcela gemia e apertava a barriga, dobrando-se sobre seu próprio corpo. Deitou-se no chão, encolhendo as pernas e os pés repetidamente, manchado de sangue o piso do lavatório. No teto, a lâmpada fluorescente piscava em estertores. Ou talvez fossem seus olhos. Uma mensagem chegara pelo celular. Paula, provavelmente, mas ali, naquele momento, Marcela não tinha condições de olhar, muito menos de responder. Era como se lhe arrancassem a alma. A verdade desabou sobre ela: iria morrer. O coração, a respiração, tudo se acelerava para um ritmo insano. O fôlego curto era acompanhado de calafrios. Um engasgo, uma tosse. Olhou para baixo e viu mais sangue, mais e mais. Era um rio de vermelho negro que lhe escapava. Quanto tempo? Precisava de um hospital. Vou morrer aqui. Preciso…  Mais sangue, mais dor. Aquele remédio… Marcela maldisse Paula, o grupo. O que eu vim fazer aqui? Lembrou-se do rosto de Caio, daquele show idiota daquela banda de merda, dos acordes de Enter Sandman. Do aparelho de gravidez. Dos dois risquinhos. Dos remédios. Iria morrer junto com o feto, com o bebê. Talvez buscasse isso inconscientemente, talvez merecesse isso tudo afinal, por conta de seu egoísmo. Não, isso não é verdade. Ela só queria viver. Viver.

******

Eram dez da manhã quando um funcionário do hotel abriu a porta do quarto onde Marcela se hospedara. Uma mulher grande, de pernas inchadas, munida de urgência materna entrou apressada, percebendo a cama desarrumada, a mala desfeita e os frascos de remédios tombados na mesa de cabeceira. Olhou para o banheiro e notou o corpo desfalecido, o rosto familiar com a mão jogada por cima da testa.

“Filha…”

Ante os olhos do funcionário do hotel, Isabel tomou Marcela nos braços. Um sopro débil de respiração lhe escapava da boca.

“Mãe…”

“Eu tô aqui, meu amor. Eu tô aqui.”

Sobre Fabio Baptista

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50 comentários em “Marcela (Gustavo Araujo)

  1. Renato Silva
    1 de junho de 2024
    Avatar de Renato Silva

    Olá, tudo bem?

    Vê se que a autora tem pleno domínio da escrita, mas algumas passagens me soaram um tanto “artificiais”, como o “rolê” de Marcela no rock bar. Se tem um lugar onde nunca vi uma briga é num bar onde tá cheio de “marmanjo” bebendo cerveja e curtindo bandas. Apesar das mulheres serem minoria nesses lugares, o respeito é total.

    Sobre a Marcela, eu bem que tentei, mas ela não me “conquistou”, como diz o pessoal nos comentários quando não gostam de algum personagem (sim, já falaram muito isso pra mim também). Em relação ao Caio, coitado, nem soube que seria pai. Foi privado desta informação. Gostei de Isabel, a mãe que apoiou a filha em todos os momentos, que amparou a jovem e se dispôs a ajudar na criação do neto.

    Achei o diálogo entre mãe e filha bem acertado, exponde bem a personalidade e o grau de maturidade de cada uma, levando em consideração suas idades e aquele clássico conflito geracional. A todo momento, me identifiquei muito com Isabel. Não tenho filhos, estou na casa dos 40, mas vi em Isabel a minha mãe conversando com uma hipotética filha, caso o mesmo lhe acontecesse. E minha mãe estaria sempre com ela, ainda que reprovando o aborto, até a cena final. Pude sentir mais o sofrimento da mãe do que dá filha egoísta e mesquinha, que não pensou duas vezes antes de ir “furunfar” com um desconhecido.

    O final aberto me agradou. Muitos filmes teriam melhores avaliações se acabassem 5 minutos antes, omitindo algumas informações ou nos decepcionando com certos desfechos que estragam as duas horas do longa. Prefiro acreditar que Marcela sobreviveu, pois foi socorrida a tempo.

    Boa sorte.

  2. Pedro Paulo
    1 de junho de 2024
    Avatar de Pedro Paulo

    RESUMO: Com o que foi feito a dois, Marcela decide lidar sozinha.
    ANTES DO COMENTÁRIO EM SI, FAREI ALGUMAS PONDERAÇÕES NÃO SOLICITADAS, QUE PODEM SER PRETERIDAS POR UMA LEITURA DIRETA DO COMENTÁRIO, NO QUAL AVALIO O TEXTO.
    APONTAMENTOS PRELIMINARES: Antes de tecer minha avaliação sobre o texto, farei algumas ponderações. Neste conto, pelo burburinho causado no grupo me dei o trabalho de passar os olhos pelos comentários. Li a maioria, como também li algumas das respostas da autoria. Com alguns comentaristas, sobretudo em pontos de que discorda, a autoria apontou o aspecto do gênero e da leitura, sugerindo que as críticas dos leitores residiriam em sua incapacidade ou mesmo impossibilidade de se relacionar com um texto protagonizado por uma mulher e, ao que parece, também escrito por uma. Achei um contra-argumento fraco, uma vez que é dirigido só a quem quer que discorde (não concebo que o conto convide a concordar ou discordar, definitivamente é escrito como um conto e não convida a esse tipo de diálogo) dos posicionamentos da autoria, assumidos em suas respostas aos comentários. Acho que para apreciar leitura é necessário ter alteridade. Isto é, ler exige que assumamos o ponto de vista daqueles que constroem e são construídos pela obra literária, seus personagens, os cenários em que vivem e contexto nos quais estão inseridos. Como leitor, a avaliação técnica se refere ao sucesso da autoria em estabelecer um mundo ficcional em que eu consiga acreditar. A tal “suspensão de descrença” ou qualquer outro jargão. Escrevo isso para deixar claro um dos aspectos que considero ao avaliar.
    Também quero discorrer a respeito da resposta da autoria a um dos comentários, em que determinou que o conto não é polêmico por se tratar de uma história que ocorre todos os dias em nossa realidade. Ora, ser ou não ser polêmico não está – embora possa – em quem escreve, mas, principalmente, na recepção, na discussão levantada após a leitura. Não cabe a determinação da autoria, ainda que a abordagem de uma realidade palpável realce o conto pela sua verossimilhança trágica, a polêmica está nos debates gerados pelo texto, não no fato retratado. E, convenhamos, o debate em torno da descriminalização do aborto é sim polêmico. E dizer que “O Acontecimento” de Ernaux deveria ser leitura obrigatória nas escolas é irrefletido da sociedade e das instituições. Digo por trabalhar em uma escola pública de cenário extremamente conservador e reacionário, em que essa pauta em específico é bastante repudiada.
    Feitas essas ponderações não solicitadas, ao comentário.
    COMENTÁRIO: Narrado em terceira pessoa, a escrita é equilibrada: caracteriza, descreve e narra. Isto é, apesar do uso de terceira pessoa, as palavras escolhidas, a maneira como a personagem interage com o meio e com outras pessoas nos deixa entrever sua personalidade e seus pensamentos. Ao mesmo tempo, os cenários não comunicam somente o espaço físico em que a protagonista se encontra, mas também nos dá mais informações sobre ela. Dois bons exemplos estão nos primeiros parágrafos, em que a contraposição da figura dela à mãe e seus dois filhos nos direciona para onde o texto nos quer levar – redigindo este trecho do comentário me peguei escrevendo que a temática da maternidade seria mais forte do que o tema do aborto, mas a verdade é que são indissociáveis, nunca tinha feito essa conclusão. O outro exemplo é do bar, em que a cena prosaica do lugar ganha esses contornos devido ao desânimo da personagem. Outros trechos detém essa mesma qualidade. As considerações que Marcela faz sobre aborto interagem com a sua visão de mundo, quando, por exemplo, lamenta a negligência do Estado ou faz uma autoavaliação um tanto egoísta, mas razoável, de que sua posição na sociedade – classe e raça – a garantiriam um desfecho melhor. Não tomei como uma informação na narração, mas um reflexo da própria Marcela, o que, pelo grau de esclarecimento que a personagem apresenta e do qual se orgulha, pareceu-me inclusive um ato desesperado, algo que não falaria em voz alta (o trecho em que vê a própria cor de pele), mas que o desespero da situação a induz a refletir, tentando se garantir que ficaria tudo bem. 
    A personagem preenche o conto, o que enriquece o texto. Ao mesmo tempo, não é de modo algum um conto intimista, não nos delimita dentro das reflexões da personagem, é mais sobre a postura dela em relação ao mundo. Mundo que nos aparece no bar, na transa frustrante, no diálogo com a mãe, outra personagem que é mais desenvolvida (tá aí outro momento em que Marcela se sobressai, seu julgamento despreza a mãe pelo seu corpo e pela saúde, como se a vida dela fosse trágica, o que expõe uma certa futilidade e egoísmo que a deixam mais verossímil enquanto pessoa, não uma heroína perfeita sendo injustiçada). Então existe uma narrativa que nos transporta de um ponto a outro, o que é aproveitado para a inserção do tema. Inserção rasa, se levada em conta apenas como um deslocamento geográfico, aprecio mais na consideração de que a viagem da personagem seria também metafórica de uma viagem a um ato solitário e perigoso e que talvez pudesse ser sua última viagem. Mas não vi investimento da autoria em dar mais relevo a essa interpretação.
    O desfecho é forte, trouxe-me à beira da cadeira apertando os punhos. Em audiovisual, eu aprecio muitíssimo quando direção e edição optam por inserir cortes rápidos de cenas anteriores para recontextualizar ou empoderar uma cena em específico. Quando esse artifício é usado corretamente eu sinto um frênesi que também senti ao ler o parágrafo final da penúltima sessão, longo e caótico, de mensagens escritas erradas a rostos de amantes dispensáveis, a melodia de Enter Sandman tocando no fundo. Visualizei tudo e experimentei o desnorteamento da personagem.
    Enfim, concluo que o conto tem uma narração muito competente que enriquece seus diversos aspectos por meio de focar em sua protagonista, enquanto a abordagem temática é mais marginal, no estilo “tem uma viagem presente”. Julgo que foi uma opção da autoria investir mais na decisão da personagem sobre as próprias circunstâncias. Estou ciente de que há uma interpretação possível sobre a contemplação do tema “roubo”, mas não a considero. Portanto, é somente no tema em que desconto pontos.
    Panfletário? Não. Longe disso. 

  3. Sílvio Vinhal
    1 de junho de 2024
    Avatar de Sílvio Vinhal

    O conto aborda um assunto polêmico e importante. É bem escrito, embora em alguns momentos se distancie um pouco da “boa literatura”, pelo “excesso narrativo” – sem a utilização de artifícios capazes de prender mais a atenção do leitor e provocar mais empatia com o texto.
    Entendo a intenção do autor/autora, porém, talvez valesse a pena fazer uma revisão na forma, pois há passagens longas que acabam se tornando pouco interessantes, se comparadas com o início.
    Achei um pouco estranho que o “grupo de apoio” não estivesse minimamente presente durante o “procedimento”, o que me leva a pensar se houve uma pesquisa mais aprofundada e se o autor/autora tem alguma proximidade real, ou um conhecimento mais profundo sobre o tema.
    No fim, vence o amor da mãe, o alinhavo que permeia todo o conto, e lança uma luz sobre a história. O final fica em aberto. Teriam sobrevivido Marcela e o filho?
    Tenho alguma de dificuldade para entender que o conto atendeu ao tema (viagem/roubo), pois tanto uma coisa como outra aparecem no texto apenas como uma menção.
    Creio que o tema é necessário e que o autor/autora tem o domínio das ferramentas, na minha opinião, falta lapidar um pouco mais.
    Parabéns e boa sorte no desafio!

  4. Mariana Carolo
    1 de junho de 2024
    Avatar de Mariana Carolo

    História: Uma moça conhece um cara de passagem, engravida e resolve abortar, viajando para que isso ocorra. Não é nada grandioso, é comum. E ai reside o interessante dela. 3/4
    Escrita: A autora aqui é mais competente em colocar a mensagem na história de maneira orgânica. Ela deixa clara a sua ideia, mas não parece um imenso panfleto sobre o aborto. É algo comum, que acontece. 4/5
    Imagem e títulos: Dentro do que o conto propõe 1/1

  5. Thales Soares
    30 de maio de 2024
    Avatar de Thales Soares

    Certa vez, quando eu fazia estágio numa escola da minha cidade, houve uma dinâmica em que os alunos de uma turma tiveram que se separar em dois grupos, e fazer uma espécie de debate no anfiteatro. O tema do debate era “aborto”, e um dos grupos precisava defender, sendo a favor da prática, e o outro grupo tinha que condenar, sendo contra. Lembro-me que não entendi nada da dinâmica. Sou muito leigo em assuntos sociais, pois tenho uma deficiência que me impede te compreender com perfeição essas convenções sociais, e eu acabo ficando indiferente e perdido diante desse tipo de assunto. O que vi aqui, neste conto, foi exatamente o que vi nesse dia da dinâmica de debate dos alunos. Dito isso, acho que é impossível de eu criar qualquer tipo de conexão com este conto, e como meu julgamento é extremamente pessoal e baseado unicamente no meu gosto pessoal, meu comentário não será muito agradável. Se o autor for sensível, peço que pare a leitura por aqui.
    A leitura do conto é dinâmica e fluida, e esse foi o único ponto em que gostei. No início, até achei que seria mais uma história divertidinha sobre romance. Mas… a linha narrativa seguiu por outro caminho. Após uma noite de romance vazio e sem profundidade alguma (aos olhos da personagem, e não do leitor, pois as descrições da cena estavam ótimas), a personagem se arrepende de ter se entregado aos hormônios e tesão da fase da adolescência. Depois de algumas semanas, ela descobre que fez cagada, e agora está grávida. Daqui em diante devo reiterar que devido à minha incapacidade física de sentir empatia, eu perdi total conexão com a história, e tudo me pareceu um tanto quanto inverossímil, por se tratar de temas que estão muito longes do meu alcance de compreensão. Por exemplo, por que a garota não queria ir atrás do pai para pegar um terço do salário dele durante mais de 20 anos? Em todos os casos que já vi de acidentes desse tipo, pegar a pensão do galanteador que foi irresponsável e deixou a catástrofe ocorrer, ser cobrado a pensão é a primeira coisa que ocorre. O fato de ela dizer que não queria o dinheiro porque não queria lembrar que aquele cara de pinto murcho era o pai, não me convenceu.
    Em seguida, começa uma parte da história que foi igualzinha a minha experiência que descrevi no início de meu comentário, onde o debate começa. Essa parte pelo menos é fluida, pois ocorre por meio de diálogos entre a garota e a mãe. Eu gosto de narrativas que se desenvolvem por meio de diálogos. Mas aqui, o tema é muito chato para mim. Era um diálogo previsível, que mais parecia uma dissertação de ENEM do que um conto de ficção. Ficar lendo argumentos pró e contras a respeito de um assunto que eu não consigo compreender a magnitude, para mim, foi torturante, mas, pelo menos, fluido. Aqui, porém, eu deixei de encarar este conto com uma história, e comecei a observá-lo como um panfleto, pois ele parecia estar mais preocupado em me educar, do que em me entreter, e isso diminuiu ainda mais a minha conexão com a história apresentada.
    Tudo o que veio em seguida para mim foi bem raso, pois o conto já havia perdido minha atenção. A moça encontra uma clínica clandestina, e decide fazer o aborto. Mas aqui vemos que ela já está grávida de 15 SEMANAS. Wow, pera aí… mas ela não descobriu a gravidez com 3 semanas? O que ela ficou fazendo durante esses três meses que se sucederam? Ficou durante todo esse tempo discutindo com a mãe? Se já se passou tanto tempo assim, eu imaginaria que ela já tinha até aceito a ideia de ter um bebê, e que as coisas já estavam decididas. Se ela mudasse de ideia, nesse ponto, não seria mais fácil esperar um pouquinho mais para ele nascer, e então colocar num orfanato? (não sei nada sobre o assunto, por isso estou perguntando). Mas enfim… ela opta por matar o feto mesmo. Então ela toma uns remedinhos de outro país aí, se, confiabilidade nenhuma. Ela pensa que vai morrer, mas não morre. Aí a mãe dela aparece do nada… essa parte eu realmente não entendi… ela escolheu o lugar que a mãe trabalha pra usar os remédios ilegais? E no final, numa cena que eu imagino que era para ser bonita, a mãe aparece e dá apoio para a filha… mas, como eu tenho coração de pedra, não senti nada aqui, apenas alívio, pelo conto ter acabado.
    Mais uma vez, peço desculpas pela minha crítica pobre. Eu não sou capaz de ler e comentar corretamente este conto, por isso optei pela sinceridade extrema, e relatei tudo o que eu senti conforme eu ia lendo. Espero não estar, de forma alguma, ofendendo o autor deste conto com meu comentário. Minha intenção não é menosprezar e nem magoar ninguém, mas eu possuo minhas limitações, e quando me deparo com uma história como esta, fico um pouco perdido, sem saber exatamente como proceder.
    Em suma, tecnicamente o conto está muito bem escrito. O tema, na minha visão, ficou totalmente ausente, e o autor se comportou como se o desafio fosse sobre tema livre. A história não se conectou em nada comigo, e para mim ficou mais com cara de “panfleto” do que “conto”, por dar prioridade a fazer debates de assuntos polêmicos do que entreter de fato o leitor. Tenho certeza que outras pessoas vão adorar a sua história, mas para o meu gosto pessoal, não me agradou. De qualquer forma, boa sorte no desafio!

    • Isabel A.
      31 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Tales, obrigada pelo comentário. Nem sei se você vai ler essa réplica aqui, mas eu preciso extravasar de qualquer jeito.

      Sou uma pessoa que aprecia sinceridade. Entendo a sua falta de empatia pela Marcela e pela história dela. Você é homem, e homens dificilmente se conectam com esse tipo de drama. Aposto que se os homens engravidassem essa polêmica sobre aborto nem existiria, o direito já estaria assegurado há muito tempo. Mas de qualquer forma não é problema seu, né?

      Não quero parecer indignada demais, mas esse tipo de ignorância que você assume ter parece muito conveniente. Não sei até que ponto não é preguiça de pensar sobre o assunto, de abrir a mente, sei lá… O fato é que enquanto caras como você forem a maioria, as mulheres estarão condenadas a fazer o que a Marcela fez.

      Não me refiro nem ao aspecto literário, afinal o conto pode parecer um panfleto para quem não gosta de discutir um tema difícil como esse. Me refiro ao aspecto social, sabe? É preciso falar de assuntos difíceis, Tales. E a literatura é um caminho para isso, já que (você pode ficar espantado) há nela muito mais do que mero entretenimento. É por ela que aprendemos a olhar para além da nossa bolha, é por ela que somos ensinados a ver o mundo que nos cerca, com todas as maravilhas e com todas as injustiças. Você sabe disso, claro que sabe, só se recusa a esticar o pescoço para enxergar mais longe.

      Quanto às suas dúvidas sobre o enredo, vamos lá:

      1) Marcela não quer saber do cara que engravidou ela porque ela não quer ter o bebê, entende? Cobrar pensão não faz o bebê sumir, não diminui a carga gigantesca de responsabilidade de uma mãe, especialmente se ela não quer ser mãe.

      2) Marcela não encontrou uma clínica clandestina. Você não leu direito. Também não há informação de que ela se descobriu grávida com três semanas. Bem, de novo, você não sabe, mas leva tempo, sim, para que a ideia de abortar se consolide, para que os contatos com as pessoas certas sejam feitos, para que os remédios cheguem em segurança, para que se decida tomá-los.

      3) A ideia de colocar a criança num orfanato é a cereja do bolo. Essa possibilidade não existe em termos legais, é crime. E mesmo que desse para fazer, haveria implicações psicológicas e emocionais enormes para a mãe biológica, para o resto da vida dela.

      4) Não, Marcela não escolheu o lugar que a mãe trabalha para tomar os remédios. De novo você voou. Elas moram no interior e Marcela viajou para São Paulo para tomar os remédios sozinha, num hotel, já que na cidade dela todo mundo ia ficar sabendo se alguma coisa desse errado.

      Olha, vou te dizer que não é a sua falta de atenção na leitura o que me entristece mais. O que me deixa chateada, mas não surpresa, é que você nem quis saber da história, tipo, o tema não te interessa, então dane-se tudo, vou alegar desconexão.

      Não fico ofendida, nem me sinto menosprezada. Seu comentário demonstra a nossa triste realidade, só isso. Homens que podiam abrir a cabeça se recusam a fazê-lo com a desculpa de que nada disso lhes diz respeito. Empoderar as mulheres? Para que? Conversa de feminista, panfleto, política. No fundo, ninguém quer perder privilégios.

      Mas sou uma mulher otimista. Tudo evolui. Todos evoluem. Devagarzinho a gente chega num lugar que se conhece vulgarmente por igualdade. Tenho certeza de que verei você por lá um dia.

  6. claudiaangst
    25 de maio de 2024
    Avatar de claudiaangst

    Oi,Isabel, tudo bem?

    O conto aborda o tema viagem (afinal, Marcela viaja para realizar um procedimento decisivo) e também o tema roubo – já que trata de vida roubada, em várias sentidos.

    A linguagem empregada é clara e não apresenta entraves que prejudiquem a leitura. Pequenas falhas, mas nada de importante.

    O diálogo entre mãe e filha me pareceu um bom longo e “civilizado” demais, faltou um pouco de emoção, de desequilíbrio. Talvez isso se justifique pelo cansaço da mãe, acometida de tantas mazelas.

    Quanto à questão do beijo ser bom e o sexo, péssimo, infelizmente acontece. O contrário também. Uma coisa independe da outra, mas claro que um beijo bom provoca altas expectativas. Não acho nada chocante uma mulher ter relações com um cara que acabou de conhecer (ou desconhecer). Os homens sempre fizeram isso e o mundo continuou a girar. Liberdade com responsabilidade, dizia minha mãe. Marcela preocupou-se com a segurança, o casal fez uso da camisinha… acidentes acontecem.

    O tema aborto é polêmico, tabu. E seja qual for a escolha da mulher, uma coisa é certa: nenhuma mulher acorda um dia e diz – oba, que legal, hoje vou fazer um aborto. Não é uma escolha fácil, não é um “tanto faz”. Vi uma amiga quase morrer na minha frente por entrar em choque por hemorragia após ter tomado um remédio abortivo… Felizmente, foi socorrida e tudo terminou “bem”. Eu desavisada de tudo, não sabia o que fazer. Ainda bem que alguém mais safa do que eu tomou a iniciativa de levá-la ao hospital. Ver a filha adolescente chorando desesperada ao ver a mãe desmaiando grudou na minha memória, trauma mesmo. Todos estão bem, e continuamos amigas… mas esquecer, eu não esqueço. Nunca a julguei, porque me formei professora e não juíza. Então é isso: cada um sabe de si e enfrenta os riscos que vêm com a decisão de ter ou não um filho. Viver é perigoso, já dizia Guimarães Rosa.

    Gostei do desfecho em aberto… Espero que Marcela sobreviva e tenha uma vida feliz. Só não entendi como a mãe descobriu o seu paradero, talvez Marcela tenha conseguido ligar, sei lá.

    Boa sorte!

    • Isabel A.
      26 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Claudia, infelizmente poucas pessoas tem a percepção igual a sua para entender o que este conto quer passar, a angústia, o medo e os dilemas. Em geral, preferem descartar a temática, já que é tabu, e seguir em frente. Fazer o quê? Acho que é mais fácil alguém que já passou por algo parecido, ou que esteve próxima de uma situação assim, que nem você, entender como isso funciona, como é complicado lidar com essas escolhas. Em todo caso a sementinha foi plantada, mesmo para quem não gostou, não quer saber e tem raiva de quem sabe. Quem sabe um dia atentem para o tamanho do problema que é o aborto no Brasil. É o que espero.

      Mamãe encontrou Marcela porque mães temos esse superpoder, né? Ainda mais se o celular for daqueles que permitem a localização, rs Não quis acrescentar essa explicação porque achei desnecessária. No momento que Marcela sentia as dores no banheiro do hotel, o celular toca, lembra? É isso.

      Obrigada pela leitura e pelo comentário.

  7. Amanda Gomez
    23 de maio de 2024
    Avatar de Amanda Gomez

    Oi, bem?

    Foi uma leitura interessante. Um conto que incomoda propositalmente. Bem desenhado, com uma personagem crível. 

    Ao terminar de ler fiquei sem saber o que a pensar. Pelas discursões acalorados sobre pró e conta não fui a unida. 

    Achei todo o drama da personagem legitimo. Ter sua vida redesenhada por causa de uma escolha ou falta dela não é fácil, deve pirar a cabeça, e pelo fato dela ter suas convicções não achei absurda sua escolha. 

    A historia embora não tenha me afetado tanto, imagino que desperte vários gatilhos. Talvez se a autora deixasse menos audível a sua voz dentro da voz da personagem teria tido mais sucesso no quesito ‘’conto planetário’’. Quem sou pra dizer o que cada um deve ou não escrever, mas sempre me incomoda quando a mensagem que o autor quer passar sobressai a historia, personagem e todo o resto. 

    É um texto bem escrito, com um desenrolar em aberto, sobre opiniões, escolhas e suas consequências. 

    De qualquer maneira, não teria um final ‘’feliz” ela tendo apenas uma indisposição, ela morrendo, ou tendo a crianças sem querer. É muito louco como a vida de uma mulher…acaba nunca sendo só dela. 

    Parabéns pela participação. 

    • Isabel A.
      26 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Amanda, você acertou na mosca quando disse que o conto é para perturbar. É a isso que se deve a literalidade do fluxo de pensamento, afinal numa situação dessas mil coisas passam pela cabeça de uma mulher. Mas entendo que para alguns leitores isso pareça forçado, incômodo. Não é algo que a gente goste de ler, mas acredite, precisava ser dito.

      Gostei do seu errinho quando falou planetário em vez de panfletário. O conto é planetário mesmo, já que a maioria dos países do mundo, especialmente as noções subdesenvolvidas, ainda tem dificuldades em aceitar que a mulher é dona do próprio corpo. No fim, panfletário será tudo aquilo que a gente discorda mas é dito de forma veemente. Vai vendo, rs

      Muito obrigada pelo comentário e pela leitura.

  8. Mauro Dillmann
    19 de maio de 2024
    Avatar de Mauro Dillmann

    Um conto bem escrito. Narrado em terceira pessoa, tem a opção de contar exatamente o que está acontecendo.

    Sabe aquela diferença entre contar e mostrar na escrita literária? O ‘show don’t tell’. Na minha percepção, o conto poderia ter mostrado mais e contado menos. Talvez com a inserção de mais diálogos. Mas entendi a opção por ‘contar’, ao menos até o longo e monótono diálogo entre mãe e filha sobre o possível aborto.

    Os tempos verbais mudam e complica um pouco. O narrador, às vezes, usa o presente do indicativo (“Tietê em São Paulo é um mundo em si”) em meio a narrativa no pretérito.

    O focalizador do conto está em Marcela, até surgir a mãe dela, Isabel. Nesse momento, o foco do narrador muda. Depois, surgem outras personagens, que são pouco construídas.

    Na trama, a personagem Marcela, com 22 anos, “deixara de ser ingênua há tempos”, segundo o narrador. Daí engravida. Estabelece diálogo com a mãe sobre a possibilidade do aborto. E, por fim, acaba fazendo o abordo. Tudo certo. O conto, no entanto, é prolixo, se desgasta no excesso de palavras, de explicações, tornando-se um pouco cansativo.

    O final não convence. O conto em si, embora trate de um tema relevante, em termos de enredo e linguagem, não foge do lugar comum. Essa é minha percepção como leitor.

    O abordo como sendo a viagem. Penso que foi muito forçado para se encaixar no tema do desafio. Na verdade, não cumpre o tema ‘viagem’. O tema desse conto é outro.

    Alguns detalhes.

    No início, usa termos meio chavões: “a esmo”, “debelando”, “em riste”. 

    Abreviatura de horas: não é “20h00”, mas 20h.  

    “Caio (…) mais preocupado consigo mesmo do que com ela” [‘consigo mesmo’ é redundante. A palavra consigo significa ‘com si mesmo’, então, pode dizer apenas ‘consigo’ e eliminar o ‘mesmo’.  Sou do tempo da Gramática do Faraco & Moura, rs]. 

    Parabéns !

    • Isabel A.
      20 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Mauro, a viagem é necessária para que o aborto possa acontecer, sabe? Mas entendo a sua percepção. A viagem está ali, mas o que se sobressai é algo além. Engraçado como o “show don’t tell” virou um tipo de mantra nas análises, como o que se importasse fosse o aspecto técnico do que a gente escreve. Saramago sofreria muito se postasse um conto aqui… Não que meu continho se compare, mas acho que vc entendeu. Quanto aos erros gramaticais, agradeço. Mas de novo é o academicismo falando alto, né? Às vezes alguma coisa escapa mesmo, tipo escrever aborto com “d” duas vezes. Acontece, rs. Obrigada pelo tempo que você dedicou à história da Marcela.

  9. Jorge Santos
    13 de maio de 2024
    Avatar de Jorge Santos

    Olá. Este é um texto poderoso, de uma temática complexa. Vivo num país onde o aborto foi legalizado, pelo que esta história não aconteceria. Pelo menos em teoria, na prática iria depender das condicionantes do Serviço Nacional de Saúde, aquilo que em Portugal vocês chamam de SUS no Brasil. A história está bem contada, mas vejo uma ténue ligação ao tema. Homem em viagem engravida mulher que decide roubar a vida ao filho. Ela opta pelos remédios proibidos e a coisa corre mal. O desfecho fica em aberto, não sabemos se a jovem sobreviveu. No entanto, é um relato poderoso e pormenorizado, que, mais do que prender a atenção do leitor, lhe prende a respiração. O único pormenor do qual não gostei foi o desfecho. Esperava algo menos aberto, que não deixasse o leitor com dúvidas.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Jorge, é um alívio saber que em Portugal esse drama não acontece. Em lugares como o Brasil ainda engatinhamos nesse assunto. Basta olhar alguns comentários a este conto.

      Você achou tênue a ligação com o tema, citando a viagem do Caio. Na verdade a ligação com o tema está na viagem da Marcela a São Paulo, o único lugar em que ela se julga capaz de levar a interrupção da gravidez adiante. Mas concordo com você que o final é aberto. Há quem goste, há quem não goste. Optei por parar ali, no reencontro com a mãe porque se eu cravasse que ela morreu, as pessoas iriam concluir que “abortar é ruim, por isso Marcela morreu”; se eu dissesse que ela ficou bem apesar de tudo, as pessoas diriam “olha só, é um panfleto a favor do aborto”.

      Como eu quis que cada um tivesse sua própria conclusão, achei melhor deixar assim, aberto mesmo, para cada pessoa preencher essa lacuna com base nas suas convicções.

      Fiquei feliz com o comentário no geral. Muito obrigada!

  10. Givago Thimoti
    13 de maio de 2024
    Avatar de Givago Thimoti

    MARCELA (Isabel A.)

    Bom dia, boa tarde, boa noite!

    Primeiramente, gostaria de parabenizar o autor (ou a autora) por ter participado do Desafio Viagem/Roubo – 2024! É sempre necessária muita coragem e disposição expor nosso trabalho ao crivo de outras pessoas, em especial, de outros autores, que tem a tendência de serem bem mais rigorosos do que leitores “comuns”. Dito isso, peço desculpas antecipadamente caso minha crítica não lhe pareça construtiva. Creio que o objetivo seja sempre contribuir com o desenvolvimento dos participantes enquanto escritores e é pensando nisso que escrevo meu comentário.

    No mais, inspirado pelo Marco Saraiva, também optei por adotar um estilo mais explícito de avaliação, deixando um pouco mais organizado quando comparado com o último desafio. E também peguei emprestado do que o Leo Jardim fazia antes, com categorias e estrelinhas, e também deixando no final um “trecho inspirado”, que é uma parte do conto que achei particularmente digno de destaque.

    Mesmo diante de tudo isso, as notas e os comentários podem desagradar, como percebi hoje, dia 29/04/24. Como já está no meio do desafio, e eu já avaliei alguns participantes, eu vou manter o estilo de avaliação, “anunciando” a nota e tecendo minha opinião do mesmo jeito. A diferença é que essa nota é provisória e sujeita a alterações. Obviamente isso se estende aos contos já avaliados.

    Outra coisa que eu percebi que deu ruído até o momento também foram os critérios. Vamos lá, para tentar esclarecer: refleti bastante sobre o assunto e a minha conclusão é a seguinte: não consigo avaliar um texto literário como um conto, dentro desses critérios, sem considerá-los como um todo.  Afinal, uma técnica apurada pode beneficiar a história do mesmo jeito que o contrário pode ocorrer; um conto com a escrita não tão boa pode afetar a história, seu desenvolvimento e seu impacto e assim por diante.

    Por fim, é isso! Meu critério é esse e não sofrerá mais alteração. Creio que é o mais justo entre meu jeito de avaliar, a lisura do certame e o respeito e a consideração pelo autor/pela autora.

    AVALIAÇÃO + IMPRESSÕES INICIAIS

    + Isabel A. De Isabel Allende, a escritora chilena??

    +/- 🛎️🛎️ toca o sino, é sinal de polêmica!

    HISTÓRIA  (1,5/3) 

    A história de Marcela, uma jovem com a vida toda pela frente, que diante de uma gravidez indesejada após uma noite de sexo casual, opta por viajar para a capital para fazer um aborto.

    O aborto de Marcela, após o período indicado para fazer (o certo seria até 3 meses), dá errado e ela quase morre. O conto termina com a mãe encontrando milagrosamente sua filha.

    Esse conto me lembrou um pouco um termo que vi recentemente num programa especial que a Globo fez sobre o Manoel Carlos e suas “Helenas”: merchandising social. É quando parte de uma novela serve para jogar luz numa questão social. Creio eu que isso serve também para filmes, contos, livros…

    E é aqui que tem a polêmica no que toca a história. Eu tô escrevendo esse comentário enquanto assisto um filme — Kings: Los Angeles em Chamas. O filme fala sobre os famosos protestos em Los Angeles, de 1991, ocorridos após dois assassinatos: o de uma menina negra por uma comerciante sul coreana, que a acusava de ter roubado um suco de laranja, e o de um motorista negro, espancado até a morte por 4 policiais. O filme tem um forte teor racial.

    Enfim, qual o paralelo que quero fazer entre o conto e o filme: contar uma história com um fundo social, com alguma mensagem que importe à autora, ao autor, como por exemplo o aborto e o racismo, é um desafio bem difícil para quem escreve porque ao mesmo tempo que precisamos dar ao conto a mensagem que queremos passar, temos que construir uma história. Caso contrário, o conto cai no “panfletário”. E o filme?

    O filme é muito bom, eu recomendo. E embora ele tenha uma mensagem bastante clara — demonstrar como esses dois assassinatos de pessoas negras, ao serem julgados a partir de uma ótica racista, serviram como combustível para a eclosão de um grande conflito social dentro de comunidades negras carentes, que se opuseram fortemente às forças policiais e outros segmentos sociais, como a comunidade de asiáticos. Quando a gente vê o filme, a mensagem não é tanto o foco. É a história. E é a própria história que passa essa mensagem. Não foi necessária uma frase do Martin Luther King para argumentar o porquê daquela revolta. Foi demonstrado naturalmente por meio da reação das pessoas ao assistirem, incrédulas, as filmagens dos policiais espancando um homem negro desarmado no chão inconsciente.

    Eu não gosto muito desse termo “panfletário”, mas penso que em certos momentos no conto a mensagem “pró-aborto” teve bem mais realce do que a história em si. Exemplo: Marcela entra num grupo de WhatsApp que é feito para mulheres que buscam o aborto e aí vem uma frase do tipo “Na omissão do Estado, pensava ela, restava àquela gente recorrer a ajuda do submundo. A triste terceirização de uma questão de saúde pública.” Eu achei até artificial esse trecho. Não porque é verosímil ou não uma pessoa pensar assim quando se procura um aborto, mas porque parece um trecho extraído de um roteiro que veio pronto e foi apenas encaixado ali. Está bem encaixado, mas ainda é encaixado. E é essa a crítica nesse ponto, ao meu ver: transformar uma boa história num meio artificial para passar a mensagem, quer ela seja uma boa mensagem ou uma mensagem ruim.

             Para além disso, creio que a história consegue mostrar parte da realidade de quem procura o aborto de uma forma clandestina (até porquê, contanto que não seja uma das 3 hipóteses que escapam da aplicação do crime de aborto segundo o Direito Penal), e mostra até mesmo os erros das indicações. Marcela estava de quase 4 meses. O remédio abortivo (assim como o método mecânico) são extremamente perigosos após os 3 primeiros meses. Essa inconsistência é natural e condizente com a realidade brasileira, na qual observamos os efeitos da chamada pela autora de “terceirização de uma questão de saúde pública”.

             No mais, Marcela é uma personagem complexa, com seus erros e acertos. Essa questão ficou um tanto na entrelinha, ao meu ver, muito por conta da construção da autora. Ao mesmo tempo que Marcela escolhe passar pelo aborto, ela sabe que por ser branca, concursada é quase formada em Letras, ela tem (na cabeça dela) quase um salvo-conduto para fazer o aborto. Marcela, na verdade, contrasta com o perfil típico de uma mulher que passa por um aborto (pelo pouco que eu sei).

             Por fim, creio que a história é boa, mas peca realmente por ter mais espaço para passar uma mensagem, do que contar uma história e deixá-la clara por meio do desenrolar da história.

    TÉCNICA  (2,5/3)

             Em termos de técnica, eu não senti grandes erros gramaticais. É um conto com uma escrita boa, fluida em certos momentos (em outros dá uma travada). Mas é uma técnica com alguns momentos de lúdico, de descrições mais literárias e artísticas.

             Infelizmente, isso ficou um pouco de lado por vezes.

    TEMA  (1 /1)

    Penso que o conto está adequado ao tema.    

    IMPACTO  (1/2)

              Acho que o impacto foi agridoce. Bom porque me obrigou a pensar, ruim porque eu não concordo exatamente com a forma como a mensagem é passada. Bom porque eu concordo com a mensagem, ruim porque teve algumas passagens problemáticas e algumas passagens que, por não serem bem explicadas, não mostram a furada que Marcela se meteu e, para o,leitor desavisado, perde a nuance necessária.

    ORIGINALIDADE  (0,5/1)

             Acho que a originalidade da história sofre um pouco com a forma que foi contada, focada muito mais em passar uma mensagem do que contada.

    Trecho interessante: A dor veio sem aviso, pungente, aguda, como se um braço de fogo invadisse seu ventre e retorcesse seu útero. Quando percebeu, estava no banheiro, suando, tentando controlar a respiração. “tá fazeno efeot…” escreveu à Paula, mas largou o celular no chão, levando as mãos ao abdome. Olhou para baixo e viu um filete de sangue se esvaindo por baixo. Era quase negro, grosso, e vertia em profusão. Passava das três, noite adentro. Marcela gemia e apertava a barriga, dobrando-se sobre seu próprio corpo. Deitou-se no chão, encolhendo as pernas e os pés repetidamente, manchado de sangue o piso do lavatório. No teto, a lâmpada fluorescente piscava em estertores. Ou talvez fossem seus olhos. Uma mensagem chegara pelo celular. Paula, provavelmente, mas ali, naquele momento, Marcela não tinha condições de olhar, muito menos de responder. Era como se lhe arrancassem a alma. A verdade desabou sobre ela: iria morrer. O coração, a respiração, tudo se acelerava para um ritmo insano. O fôlego curto era acompanhado de calafrios. Um engasgo, uma tosse. Olhou para baixo e viu mais sangue, mais e mais. Era um rio de vermelho negro que lhe escapava. Quanto tempo? Precisava de um hospital. Vou morrer aqui. Preciso…  Mais sangue, mais dor. Aquele remédio… Marcela maldisse Paula, o grupo. O que eu vim fazer aqui? Lembrou-se do rosto de Caio, daquele show idiota daquela banda de merda, dos acordes de Enter Sandman. Do aparelho de gravidez. Dos dois risquinhos. Dos remédios. Iria morrer junto com o feto, com o bebê. Talvez buscasse isso inconscientemente, talvez merecesse isso tudo afinal, por conta de seu egoísmo. Não, isso não é verdade. Ela só queria viver. Viver.

    Nota: 6,5

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Givago. Parabéns, você pegou a referência da mãe da Paula (um livro que indico muito). Olha só, entendo os seus critérios e acredito que são uma maneira de tornar mais igualitária a sua avaliação dos contos. Mas não acho que dê para usar essa metodologia para todo o tipo de conto. Veja só o item “Originalidade”: não tem como você comparar um conto que fala de aborto, que trata de aspectos bem determinados da vida de uma mulher, com um conto que trate de uma viagem espacial cheia de alienígenas, mundos, estrelas e batalhas. O mesmo vale para o item “História”.

      Não sei se você consegue entender meu ponto de vista, mas é que numa história sobre um tema cotidiano, dolorosamente cotidiano, não tem como ser muito original, entende? O foco vai ser na carga dramática que ele provoca. Ao contrário, um conto sobre viagens espaciais, com certeza vai ganhar mais pontos aí porque a temática é propícia para isso.

      Bom, não acredito que você vá mudar seu modo de agir neste desafio, mas acredito que você pode repensar esses critérios nos próximos.

      Agora quanto ao mérito do seu comentário, algumas coisas tb me incomodaram, como a assertiva de que o “o certo” é fazer até três meses. Muitos países discordam disso e autorizam o aborto mesmo em fases mais adiantadas da gestação. Mas gostei no geral, especialmente do paralelo entre o documentário e o conto, entre o contar e o mostrar. Não concordo muito, mas gostei, rs É que você, como homem, talvez não tenha captado as nuances que uma gravidez indesejada provoca na gente. Por isso achou panfletário, já que não te diz respeito, não faz com que você se identifique com a Marcela.

      No fim, estou achando que panfletário é todo texto do qual a gente discorda por tratar de temas que nos são desconfortáveis. Um homem negro certamente se identificará bastante com a revolta que o assassinato do Rodney King provocou, mas um homem branco, ainda que bem educado, bem intencionado, poderá achar que tudo isso é puro mimimi, que o documentário é panfletário e por aí vai… Questão de identificação com o problema, né? Mas agradeço bastante o seu comentário, Givago. Obrigada mesmo!

  11. Queli
    11 de maio de 2024
    Avatar de Queli

    O texto aborda um tema polêmico, mas importante. A autora escreve com clareza, mas, novamente, sinto falta do travessão nos diálogos. Isso realmente me incomoda.
    Tema ok.
    Gostei bastante do conto. Desejo boa sorte!

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Queli, tanta coisa para dizer a respeito do assunto e você foi falar nas aspas? Vamos lá, me diz aí a sua opinião: por que é importante, por que é polêmico… Achou panfletário? Acha que é um assunto que precisa ser debatido na ficção também? Você se identificou com alguma das situações descritas? Conheceu alguém como a Marcela? Em todo caso, fiquei feliz que você tenha gostado do conto. Obrigada pela leitura.

  12. Emanuel Maurin
    9 de maio de 2024
    Avatar de Emanuel Maurin

    Uma mulher que não queria passear, por insistência das amigas, vai ao bar ouvir uma banda retrô que eu adoro, mas ela detesta. Essa moça conhece um cara que beija bem, mas transa mal. Acho isso bizarro, porque quando o beijo é bom, todo o resto também é bom. Ela gosta do beijo, mas odeia o sexo. A camisinha fura e ela, uma mulher descrita que não é ignorante nem pobre, não toma remédio para se proteger, além da camisinha, é claro. Marcela, esse é o nome dela, e ela saiu com um estranho e já foi para a cama sem conhecer o cara? Para depois de ficar grávida dizer que o cara é um ‘lixo e tal’. Tudo bem, pode ser, mas esse foi o pai que escolheu para seu filho. Já que você mesma se colocou em risco. Bom, tudo bem, a transa foi uma merda, mas ela ficou grávida e decidiu tirar o filho. Tá, esse foi o final, sem surpresa alguma. Surpresa seria se ela assumisse a maternidade e procurasse o pai para ajudar a sustentar. O conto não teve uma boa construção que levasse ao clímax e a leitura foi um pouco arrastada, nada de emocionante.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Manuel, de uma coisa eu tenho certeza. Você não entende nada de mulher. Pelo contrário, quando diz que quando o cara beija bem é bom em todo o resto… Olha, suas experiências pessoais não contam aqui, até porque não são garantia de um padrão.

      Pior é ver que você não acredita que mulher pode gostar de sexo a ponto de querer transar no primeiro encontro, como se isso fosse uma prerrogativa só dos homens. E que quando a gente decide transar com um cara é porque intimamente escolhemos ele para ser o pai dos nossos filhos. Sério, não sei se rio ou se choro da sua ignorância.

      Mas a frase campeã do reacionarismo foi quando você disse que “ela mesma se colocou em risco”. Transferência de culpa que chama, né? Tipo a mulher que é estuprada por causa das roupas que usa… Mesma coisa. Nada a ver.

      E no final, para você, a Marcela deveria ter o filho e procurar o pai para sustentar a criança. Mds, isso é discurso para lá de machista, de quem parou no tempo tem uns 70 anos, neandertal mesmo. Ela que procurou, ela que se ferre, né? Se tivesse ficado em casa fazendo crochê nada disso tinha acontecido.

      Se eu fosse educada, agradeceria sua leitura, mas o comentário foi tão ruim que eu não consigo.

      • Emanuel Maurin
        18 de maio de 2024
        Avatar de Emanuel Maurin

        Isabel, eu não entendo nada de mulher mesmo, sou homem, apenas disse o que acho. Eu já sabia que vc viria com esse discursinho mequetrefe pra cima de mim. To me lixando pro que vc acha disso ou aquilo. A escrita é livre e o comentário é livre e o choro é livre. Sou mesmo dos anos 70, tempo que Deus usava barro bom pra fazer pessoas.

      • Isabel A.
        18 de maio de 2024
        Avatar de Isabel A.

        Taí o macho alfa que não gosta de ser contestado, que sente orgulho de se dizer homem, como se isso fosse sinal de superioridade. Desde quando brigar por igualdade é “discursinho mequetrefe”? Não estamos mais nos anos 70 (muito menos em 1870, que é o que você imagina). Preconceito como o seu agora se combate, sim, esteja você se lixando ou não. Antes vc tivesse feito que nem a Glória Pires, meu caro. Notando que o conto é sobre aborto, se recolhesse à sua ignorância orgulhosa e dissesse “não tenho condições de opinar.” Seria mais honesto e você ainda passaria por inteligente. Ao vomitar misoginia, provou ser o contrário.

    • Emanuel Maurin
      18 de maio de 2024
      Avatar de Emanuel Maurin

      Isabel, sua paixão pela igualdade de gênero e pelos direitos das mulheres é inspiradora! É incrível ver alguém tão comprometida com essas causas. Quanto ao beijo, concordo que cada pessoa tem suas próprias experiências e percepções. Quem sabe, se a personagem Marcela, beijasse algum personagem criado por mim, eu poderia mudar minha opinião sobre a relação entre beijos e o resto? No entanto, parece que ela prefere um homem sensível, que não paga pensão, não paga a conta do restaurante, não manda flores, não abre a porta do carro e nem puxa a cadeira no restaurante. O homem sensível é aquele que, quando vê alguém sendo agredido ou desrespeitado perto dele, sofre uma crise de MIMIMI, fingindo não se importar, pois a culpa é do sistema opressivo. Para esse tipo de homem sensível, minha nota é: ZERO.

      No caso da Marcela, concordo que a culpa nunca é da vítima.

      Sobre o aborto, concordo que é um assunto complexo e delicado. Que tal organizarmos um debate sobre o tema, com diferentes perspectivas? Podemos convidar a Marcela e outras mulheres para compartilharem suas experiências e opiniões. Certamente será uma conversa enriquecedora!

      E quanto ao “macho alfa”, agradeço pelo elogio. Sou um homem simples que sabe apreciar uma cerveja gelada, valoriza o trabalho, a dignidade e a vida em família. Nesse quesito, dou a você: dez.

      Vamos continuar a conversar e trocar ideias, sempre com e abertura para todos os pontos de vista. Juntos, podemos construir um mundo mais justo e igualitário para todos! Mudei o tom para continuarmos a manter um bom relacionamento entre comentaristas e escritores aqui nesse MARAVILHOSO ENTRECONTOS.

      • Isabel A.
        20 de maio de 2024
        Avatar de Isabel A.

        O que as mulheres querem, Emanuel, não é necessariamente um cara que abra a porta, ofereça flores, puxe a cadeira. Isso é legal, mas o que a gente quer de verdade é ser respeitada, ser tratada como igual e não servir como bibelô ou troféu. É o que se conhece por feminismo. Tem gente que foge só de ouvir a palavra, torce o nariz, chama de mimimi, mas só nós sabemos o que é o medo, o que é a insegurança, a falta de apoio.

        Enfim, não quero mais me alongar. Acho que tanto eu como você aprendemos um pouco com essa discussão toda. Espero que a gente possa evoluir, entender que o mundo se modifica e que a gente precisa mudar também. Que ficar parado no mesmo lugar, com as mesmas crenças é cultivar a burrice. Viva Raul, meu caro. E sim, nisso estamos de acordo, viva o Entre Contos, que nos permite falar e ler sobre assuntos difícieis.

        #pas

  13. Cícero Robson
    8 de maio de 2024
    Avatar de Cícero Robson

    Oi, Isabel. O seu conto me fez lembrar o livro “O acontecimento”, da Annie Ernaux. A trajetória de Marcela me prendeu do início ao fim da história, ansioso pelo que poderia acontecer. O roteiro também está bom, pela forma como encadeia os eventos. No entanto, acredito que o texto possui algumas palavras e expressões meio “clichês”, que poderiam ser substituídas, ou até mesmo suprimidas. Exemplo disso é o trecho “não ostentava na pele a cor da miséria”. Achei a construção meio problemática.

    Talvez eu esteja enganado, mas considero que a conexão inicial entre Marcela e Caio soou pouco convincente. Superficial, quem sabe…

    Outra questão que me causou estranheza é o fato de Marcela tomar o abortivo sem nenhum amparo das amigas, numa cidade distante, sem condições de procurar um hospital.

    Ainda assim, a história é interessante e, pelo tema que aborda, gera debates acalorados.

    Boa sorte no desafio.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Cicero, você captou bem a referência. O livro da Anne devia ser leitura obrigatória nas escolas, até para tirar a má vontade com esse tema que é tão presente quanto escondido no nosso dia a dia. Concordo que há clichês por todos os lados, mas isso é próprio do tema, não tem como fugir.

      A alusão à cor da miséria é porque Marcela não é preta, não é desfavorecida pela sociedade ou pelo poder público. Branca, tem mais chances de se sair bem numa situação como essa, mesmo que seja obrigada a ir para um hospital de emergência. E bem, se a relação com o Caio ficou superficial, é porque era assim mesmo. É difícil acreditar que mulheres gostam de sexo casual, né? E quanto às amigas, se tivéssemos mais espaço para escrever, elas com certeza estariam ali, deixando a pobre coitada ainda mais perturbada.

      Mas obrigada por sua leitura atenta. Fiquei feliz.

  14. Priscila Pereira
    5 de maio de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Isabel! Tudo bem?

    Vou deixar minhas impressões sobre seu conto, lembrando que é a minha opinião e não a verdade absoluta. (Obviamente)

    Vai ser difícil comentar esse conto … Mas vamos lá.

    É claramente um conto que quer passar uma mensagem. Só que eu fiquei em dúvida sobre qual mensagem, porque está tudo muito técnico, com a apresentação do problema, e dois lados discutindo sobre a melhor solução.

    De um lado a Marcela mostrando sua vontade, e listando todos os prós, usando a ciência para embasar seus argumentos e do outro lado está a mãe, listando todos os contras e usando a religião e a moral para embasar seus argumentos. No começo me passou a ideia de e que a mensagem fosse a favor do aborto, mas no final, vemos que tudo deu errado, e não sabemos se Marcela sobrevive, então supomos que a mensagem era na realidade contra o aborto.

    Lendo os outros comentários vi que algumas pessoas viram o conto como anti-aborto e outros como pró-aborto. Então não acho que a mensagem tenha sido bem passada, já que não há um consenso sobre isso.

    Eu particularmente não gosto de contos que querem passar uma mensagem. Toda história passa uma mensagem, e se criarmos boas histórias, a mensagem estará lá, mas sem ser o objetivo final do conto.

    No mais, está muito bem escrito, bem ambientado e as cenas do aborto em si ficaram ótimas, você tem potencial para criar ótimas histórias que passem a mensagem que quiser, então foque na história.

    Boa sorte no desafio!

    Até mais!

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Obrigada pelo comentário, Priscila. Se você começa dizendo que vai difícil comentar, então já sei que a história te incomoda muito e que provavelmente você é contra o aborto. Por isso, agradeço muito a sua determinação e a sua (acho que não existe outra palavra) resiliência nessa leitura que, para você, é tudo menos agradável, né?

      Fiquei encantada com a sua sensibilidade em perceber a inexistência de consenso sobre o aborto, se é certo ou errado, se é contra ou a favor. Essa falta de definição é exatamente a proposta aqui, já que numa situação como a da Marcela, o consenso seria a última coisa a ser obtida. É o que acaba levando tantas mulheres a procurar meios clandestinos para interromper a gravidez, muitas vezes com consequências fatais.

      Foi para incomodar os leitores mesmo, sabe. Para fazer todo mundo pensar um pouquinho no assunto e, quem sabe, questionar as próprias convicções.

      Até mais!

  15. Gustavo Araujo
    5 de maio de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    Para que serve a literatura? Ou melhor, para que nos serve o ato de ler? Fuga? Informação? Conforto? Desconforto? Acredito que todas as opções são válidas, dependendo de cada um. E acredito também que um dos grandes méritos dos nossos desafios é encontrar textos que, em situações normais, não nos interessariam. Isso nos obriga a sair da casinha, da nossa zona de conforto (desculpem o clichê) e, talvez, tornar mais amplos os nossos horizontes.

    É o caso deste conto. Tema polêmico que, por conta disso, tem a pretensão de dialogar com o íntimo de cada leitor, avançando (ou distanciando-se) do aspecto literário. De fato, ninguém passa incólume por aqui e não deixa de ser curioso perceber como o drama de Marcela é absorvido por quem se aventura a acompanhá-la nessa jornada. Há quem a considera fútil, rasa e egoísta, e há quem compreenda a difícil escolha que ela tem diante de si.

    A história é simples e representa a realidade de muitas mulheres que se veem diante de uma gravidez indesejada. Marcela não é vítima de violência, seu bebê não é malformado – o que a permitiria, por lei, interromper a gestação. Mas ela se julga – como se diz por aí – dona de seu próprio corpo e por isso entende que essa interrupção é possível. O aborto é aceitável em qualquer circunstância? É essa a questão, a difícil questão, que o conto propõe.

    Teria sido fácil caracterizar a protagonista como alguém execrável ou como alguém adorável, mas de um jeito ou de outro, essas características acabariam influenciando na percepção do leitor, afastando-o da questão principal. Por isso creio acertada a opção em tratá-la de modo direto, aludindo tão-somente às aspirações colocadas em xeque pela chegada do bebê.

    De todo modo, para Marcela surge o dilema sobre o que fazer, o que não fazer, como fazer. Inevitavelmente, variáveis religiosas, éticas, sociais e morais vêm a reboque dessa equação de solução complexa e que, independentemente do resultado, deixa marcas abissais em qualquer mulher que passe por isso, até o fim da vida.

    Quanto à adequação aos temas do desafio, entendo cumpridos, já que há, de fato, um roubo metafórico, seja do futuro, seja da vida, quer da mãe, quer do bebê. E há, também, a viagem solitária de Marcela a São Paulo, fugindo do assédio que poderia enfrentar se permanecesse em sua cidade.

    Por fim, surge a questão: é um texto panfletário? Acredito que sempre que se escreve sobre assuntos polêmicos esse tipo de indagação acaba surgindo, ainda mais quando se assume determinado lado da controvérsia. Mas, sinceramente, não vejo isso como demérito. Segundo a lição de Hemingway, é preferível um posicionamento claro a uma isenção covarde. Aqui adota-se o lado pró-aborto e não há nada de mau nisso, assim como tampouco haveria se o lado adotado fosse contra.

    Em “Homenagem à Catalunha”, ao escrever sobre a guerra civil espanhola, George Orwell tomou o lado dos anarquistas republicanos em detrimento dos fascistas que desejavam restaurar o império – até pq lutou ao lado daqueles. Também ele criticou severamente o comunismo soviético em “A revolução dos bichos” – apesar de declarar-se socialista. Érico Veríssimo trouxe a lume todo o lado podre do capitalismo em “Olhai os Lírios do Campo”, assim como Jorge Amado o fez com as cores intensas de “Os Capitães da Areia”.

    Em uma abordagem rasa, essas obras seriam consideradas obras panfletárias, mas não é preciso ir a fundo para perceber que o mérito delas foi levantar questões incômodas e que precisavam ser debatidas. O mesmo vale para Annie Ernaux, em “O Acontecimento” ou Alinei Bei, em “O Peso do Pássaro Morto”, que corajosamente escrevem sobre o aborto e se posicionam sem qualquer receio de que seus livros sejam considerados panfletários. No fim, o que importa é aprofundar a discussão.

    Claro que não é o caso comparar este conto com nenhuma dessas obras, mas fato é que traz à baila um tema necessário e que precisa ser debatido com maturidade e sem meias palavras. Em suma, fala sobre o elefante na sala. Não vai ganhar o desafio, já que na mesma medida que poderá agradar a uns, decepcionará a outros. Mas não me parece que você, Isabel, esteja preocupada com isso.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Obrigada pelo comentário, Gustavo. Só vou dizer que o conto não é “polêmico”. É uma história que acontece todos os dias e, se você reparar bem, não tem um lado “correto”. Não defende nem se opõe ao aborto. É, que nem eu falei, só uma história. Quem lê é quem vai decidir, com base em seus valores pessoais, se é válida ou não a decisão dela, se ela está certa ou errada. Mas eu, euzinha, prefiro acreditar que é só uma história para incomodar e fazer as pessoas pensarem no assunto, questionarem suas convicções. Ganhar o desafio? Nunca passou pela minha cabeça. Nisso você está certo, meu caro.

  16. Regina Ruth Rincon Caires
    4 de maio de 2024
    Avatar de Regina Ruth Rincon Caires

    Um conto que fala sobre o drama de uma gravidez indesejada. Fiquei emocionada com a luta interior que ela enfrentou antes e depois do aborto. Acredito que não há decisão mais dolorosa que essa. E é tão solitária. A maternidade é inerente à condição feminina, e ela é incessantemente reforçada por milênios.

    Mas vamos ao conto. A escrita é clara, linguagem simples, a leitura desliza por entre as palavras feito água no leito do rio. Uns deslizes daqui e dali, mas o que pega forte é o “som”. O pronome “ela”, dependendo da palavra que o precede ou antecede, é uma caixa de ressonância, e aqui no texto isso é recorrente.

    Gostei da simplicidade com que o autor conta a história. A descrição do ambiente que frequentava é bem próxima do que conhecemos como diversão nas noites da classe média. Diversão simpática a muitos, mas enfadonhas para alguns.

    “Estava apinhado de gente que deslizava de um lado para o outro equilibrando copos de cerveja, coquetéis ou qualquer coisa que pudesse levá-los para longe da vida modorrenta que tinham, ao menos metaforicamente. Marcela observava a fauna, espremida na multidão que cruzava o espaço ao som de uma banda desconhecida”…

    Dolorida a narrativa que faz sobre a chegada ao Terminal Tietê. Descrição melancólica, sentimentos pesados. Um primor de escrita.  

    “Dizem que viagens trazem consigo o germe da transformação. Valia para todos ali no terminal, ela inclusive.”

    E pesado também é o contar solitário, enquanto aguarda o resultado do teste de gravidez.

    “Quatro minutos se passaram. Olhou para as paredes do banheiro, daquele banheiro que conhecia desde menina, desde criança. Criança… Ah, meu Deus, não queria uma criança, não agora, não agora…”

    A construção do texto é muito bem planejada. Mistura-se o antes e o depois, isso dá qualidade ao trabalho, sai do tradicional. Perfeito.

    A conversa entre mãe e filha é bem conduzida. A mãe de uma filha desejada argumentando com a filha que espera um filho não desejado. Um bom debate para avaliar e mensurar a dor de quem toma essa decisão crucial. Dá para o leitor perceber, em cada diálogo, a culpa crescente que Marcela tenta minimizar. É claro que não consegue. Isso acompanha a mulher pela vida toda.

    Parabéns pela competência em narrar o processo do aborto, é de arrepiar.

    Isabel, parabéns pelo trabalho!

    Boa sorte no desafio!

    Abraço.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Obrigada pela leitura, Regina. Como mulher, é mais fácil a você perceber as nuances que uma situação assim provoca na nossa cabeça. Decisões como essa são mesmo pessoais, solitárias e nos fazem pensar em muitas coisas, nas nossas contradições, nos nossos valores. É aqui que questionamos nossas certezas, nosso futuro, nossa responsabilidade com os outros, nossas culpas. Agradeço a você pela sensibilidade em notar tudo isso no conto.

      • Regina Ruth Rincon Caires
        14 de maio de 2024
        Avatar de Regina Ruth Rincon Caires

        Percebo que, a cada parágrafo lido, reforcei a posição bem esclarecida e fundamentada sobre a questão. Reconheço que não há nada mais pessoal do que o próprio corpo. E também sei que ninguém conhece mais a vida de uma pessoa do que ELA própria. E cabe a cada uma decidir o seu desejo, assumir a sua escolha. Ninguém, no seu lugar, irá assumir “a dor e a delícia de ser o que é”. Eu fico imaginando a tortura dessa escola. Ouvi alguém dizer que “se a gestação ocorresse no corpo do homem, a lei do aborto teria sido amplamente tratada desde a Constituição de 1824, e hoje nem criaria qualquer discussão”. Concordei. Abraço.

      • Regina Ruth Rincon Caires
        14 de maio de 2024
        Avatar de Regina Ruth Rincon Caires

        escolha

  17. Angelo Rodrigues
    4 de maio de 2024
    Avatar de Angelo Rodrigues

    Olá, Isabel A.

    Comentários:

    Conto sobre um coorte na vida de Marcela. Uma aventura, Caio, hotel, camisinha furada (?), gravidez. O drama meio que adolescente.

    A rigor, um drama familiar com o tira-fica no puxa-empurra de uma gravidez. Tantos dramas como este há.

    Estou lendo e comentando, e sinto, ainda que o que penso possa não se realizar, que o conto tende a estabelecer um valor moral sobre o aborto. Tomara que não. Não acho que seja legal um discurso moral sobre nada, particularmente em um conto.

    Não imagino ainda como o conto possa terminar, mas percebo que o centro do discurso entre mãe e filha é profundamente moral e religioso. Algo comum às famílias que se encontram em situação parecida.

    Bem. Terminei. Um conto de fundo profundamente moral.

    Embora o texto roteirize a vida de tantas garotas e mulheres, a forma de abordagem do assunto busca empurrar o leitor numa determinada direção, que não é a minha, o que pouco importa. Não me sinto confortável com esse modo de apresentar uma ideia num conto.

    Se o texto reage ao mundo ou se o aceita, pondo em destaque a construção do arrependimento, do erro que só pode ser corrigido pelo modo antigo, acaba dizendo muito, mas sobre quem?

    Parabéns pelo conto e boa sorte no desafio.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Estou lendo e comentando seu comentário. Fico feliz no início porque você perceve que este é um drama comum, infelizmente. E vejo que que você teme que o conto possa estabelecer um valor moral sobre o aborto, mas que apreciou o debate entre mãe e filha, que resume o que se argumenta de um lado e de outro sobre essa questão.

      Mas me estarrece que você tenha considerado o conto como “profundamente moral”, que busque empurrar o leitor em uma determinada direção, que não é a sua, e que isso te deixa desconfortável.

      A história da Marcela é só um relato. Não tem imposição moral nenhuma. No fim, é a pessoa que lê que dá o sentido. É só olhar os comentários para notar que cada um percebe o drama dela de modo diferente, alguns se identificando com as atitudes dela, outros não. É natural que seja assim com qualquer tema que force o leitor a revisitar suas próprias convicções. Obrigada pela leitura.

  18. Thiago Amaral
    4 de maio de 2024
    Avatar de Thiago Amaral

    Oi Isabel A., tudo bem?

    Seu texto demora um pouquinho para mostrar seu tema, porém me cativou já de início. Você sabe escrever bem sobre temas cotidianos, deixando interessantes as situações comuns que vemos na primeira parte da história.

    Os parágrafos são grandes, mas não cansativos. Cada frase tem propósito e traz ideias que contribuem à narrativa. Você parece ter bastante experiência com escrita, e parece fazer isso com fluidez!

    Quanto à questão do aborto em si, por um momento fiquei, sim, com medo de virar uma história panfletária. Mas acabei não considerando assim. Apesar de achar que, no fim, você pende mais pro lado da Marcela no debate (inclusive soando um pouco até didática ao falar dos grupos e formas de abortar), me parece que você compreende e representou bem ambos os lados da questão. Os últimos momentos do texto, pra mim, demonstram isso, inclusive quando a mãe chega para acudir a filha (só achei isso um tantinho forçado, mas não estragou nada, foi até doce naquele contexto. Um bom final em termos de significado).

    O momento do aborto, como outros apontaram, foi bastante impactante e bem escrito. Mas o parágrafo anterior, com ela imaginando o bebê com a vovó, esse realmente pegou…

    Parabéns pela participação e até a próxima!

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Obrigada pelo comentário, Thiago. E pela sensibilidade em perceber que não há nada de panfletário em narrar uma história que acontece todos os dias.

  19. Marco
    2 de maio de 2024
    Avatar de Marco

    Em primeiro lugar: durante este desafio eu não terei acesso a um teclado brasileiro, então os meus comentários serão desprovidos da maioria dos acentos. Perdão pela dor nos olhos!
    Em segundo lugar: resolvi adotar um estilo mais explícito de avaliação, pegando emprestado do que o Leo Jardim fazia antes, com categorias e estrelinhas, e também deixando no final um “trecho inspirado”, que é uma parte do conto que achei particularmente bela ou marcante.

    —————————————-

    Avaliação

    O conto narra o drama de Marcela ao descobrir estar gravida de um filho indesejado, e a acompanha quando decide pelo aborto, ate as ultimas consequencias. Eh a fotografia de um drama, passada com emocao e uma serie de comentarios politicos.

    Sinceramente, nao curti muito. Achei os comentarios politicos sobre raca e vacina meio gratuitos em um conto sobre aborto, e mesmo o comentario sobre leis para aborto veio de forma um pouco panfleataria.

    Marcela eh uma personagem estranha. O conto diz que ela eh jovem, fazendo faculdade, com menos de 25 anos, mas o que mostra eh alguem com a mente de 40. Alem da forma de pensar compativel com a de alguem mais velho (nao quer ir a festa, nao quer beber, nao quer ouvir bandas de musica), o conto tambem mostra que “…Marcela deixara de ser ingênua há tempos”. Quando li esta frase, imaginei que o conto iria explorar o motivo desta afirmacao. Como uma mulher jovem havia deixado de ser ingenua? Foi forcada a lidar com situacoes dificeis desde cedo? Passou por algum trauma anteriormente? Mas nao, a frase estava la, solta, entao nao consegui comprar a falta de ingenuidade de Marcela, ela sendo tao sonhadora e jovem, e transando com um homem legal na primeira noite em que o encontra.

    TÉCNICA ●●◌ (2/3)
    O conto eh narrado em um fluxo de consciencia bem escrito, com colocacoes informais que desenvolvem intimidade entre o leitor e a personagem. Apesar da habilidade do escritor, porem, certas decisoes de construcao de personagem e de comentario politico me tiraram da imersao.

    HISTÓRIA ●◌◌ (1/3)
    O enredo eh simples: Marcela engravida e quer abortar. Ela aborta e sofre as consequencias, que sao quase fatais. Nada muito fora do esperado, ou inovador.

    TEMA ◌◌ (0/2)
    Nao vi adequacao a nenhum dos dois temas do desafio. Ha uma citacao de viagem, quando Marcela viajou para longe para nao ser pega pela mae durante o aborto, e outra falando que o bebe “roubaria” a sua vida. Mas o tema do conto nao passa nem perto destas coisas.

    Acho importante citar que o fato do tema ser “viagem” nao significa que ele eh satsfeito apenas por ter um personagem viajando em certo momento do conto. O mesmo vale para “roubo”.

    IMPACTO ● (1/1)
    Apesar de nao ter curtido muito a leitura, nao tem como resistir ao impacto da cena final, da agonia passada pela personagem, e dos efeitos da decisao que tomou. A ultima cena eh bem descrita e impactante.

    ORIGINALIDADE ◌ (0/1)
    Nada a comentar. O conto simplesmente nao traz muita originalidade. Infelizmente, ao meu ver, acaba mergulhando no lago de outros contos do EC que tentam mais discutir politica do que contar uma boa historia.

    Trecho inspirado

    Nao vou replicar tudo aqui, mas o ultimo paragrafo da penultima parte – a cena do aborto – eh chocante e muito bem escrito. Acho que era o cerne do que o autor queria passar.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Marco, sinto que você tenha se incomodado com os comentários políticos. Provavelmente você está bem longe dessa realidade para saber que o lado social e o político estão ligados diretamente com a questão do aborto.

      Não vou ficar jogando mil estatísticas aqui, mas se você tiver paciência, depois dá uma pesquisada em quem mais se ferra com aborto clandestino. Vou poupar o seu trabalho: é mulher preta e pobre. Se vou falar de aborto, isso tem que estar junto, entende?

      Sim, as pessoas em geral são estranhas, mas não sei como você chegou à conclusão de que ela, uma pessoa de 25 anos, tem cabeça de 40… É um estereótipo isso? Desculpa a sinceridade, mas acho que você não sabe como as mulheres pensam, como evoluem, como são obrigadas a se proteger desde cedo e como querem, ainda assim, aproveitar a vida, ouvir música, beber, namorar… Enfim, não quero parecer mal educada com você, mas você não tem ideia de como essa questões impactam no nosso amadurecimento.

      Sobre o tema, vou te dizer, está lá, escancarado. Para ficar fácil: Marcela vai a SP para fazer um aborto porque não dá para fazer isso na cidade dela. Imagine você: o médico, as enfermeiras, todo mundo sabendo quem é ela… Óbvio que ela tinha que ir para outro lugar, longe de todo mundo.

      Enfim, a originalidade: sim, não é original pq trata de um tema absurdamente comum. Só que, apesar de comum, é ignorado porque a maioria das pessoas, repare só, “não querem discutir política”, porque o problema não é delas, é dos outros, ou melhor, das outras.

      Tem gente que usa literatura para se divertir. Eu prefiro usar literatura para falar do que incomoda. Se vai ser bem recebido ou não, não importa. Esse é um tema que precisa ser debatido e amadurecido. Nem todo mundo vai estar disposto, mas é uma semente que se planta. Você mesmo, arrisco dizer, dificilmente leria um conto como este nas CNTP, mas aqui você leu. Isso já me deixa feliz.

      Obrigada pela leitura e pela opinião.

  20. Luis Guilherme Banzi Florido
    2 de maio de 2024
    Avatar de Luis Guilherme Banzi Florido

    Olá, Izabel! Tudo bem?

    Eu estava seguindo um padrão bem organizadinho de comentários, que eu copiava e colava usando a mesma estrutura pra todos. Infelizmente, agora estou voltando pro Brasil e no avião preciso usar o cel, de modo que todo meu padrão foi pro beleléu. Desculpe. Ainda assim, vou comentar com o mesmo empenho e usando os mesmos parâmetros e seriedade. Vamos lá!

    Uma mulher engravida numa noite de sexo ruim e decide abortar o filho. Uma premissa bastante simples, que poderia ser uma leitura bem entediante se fosse linear demais. Felizmente, você teve a sacada de contar a história de forma não linear, entrecortando passado, presente e futuro, de forma que o leitor possar aos poucos juntar as peças. Claro que não tem nenhuma grande surpresa, já que fica claro logo de cara que a menina está grávida, que ela não quer o bebê, e que está viajando pra são Paulo pra abortar. Ainda assim, a montagem do conto ajudou a dar ritmo.

    Dito isso, infelizmente mesmo com uma boa montagem, eu achei a história um pouco monótona, já que falta um pouco de emoção ou mistério. Tudo é bastante previsível e claro, e eu fiquei imaginando se haveria algum tipo de revelação ou plot twist, o que não aconteceu, deixando um gostinho de que faltou algo.

    Acredito que o ponto forte do conto seja o drama de acompanhar uma pessoa passando por uma gravidez indesejada, sobre como vê o futuro que planejaram escapar por entre seus dedos, sobre como decide fazer o aberto, mas no momento crucial sente a dor da escolha. Achei esse momento o ponto alto do conto, pois mostra que, diferente do que algumas pessoas anti aborto parecem pensar, ninguém ama a ideia de abortar um filho. Mesmo que a mulher tenha convicção, ainda é uma escolha dolorosa e pesada. A protagonista se imaginando carregando a criança e lembrando de si mesma no colo da mãe foi um momento triste e impactante, o auge do seu conto. Parabéns pela forma como retratou.

    Tenho certeza que muitos comentaristas vão considerar que você colocou a mensagem acima da história, mas eu discordo. Acho que conseguiu introduzir drama e um peso à decisão da protagonista, ao mesmo tempo que parece expor sua opinião sobre um assunto tão importante. Ainda assim, como eu disse acima, me parece que faltou algo mais concreto que conduzisse a história de forma mais cativante. Por mais que o conto tenha seus momentos de brilho, especialmente na reta final, o restante da história é um pouco lenta e entediante em alguns momentos, especialmente o longo diálogo com a mãe.

    Em relação à técnica, não há problemas aparentes, já que o conto está muito bem escrito e estruturado.

    Conclusão: um texto pesado e triste, com uma clara mensagem sobre um assunto essencial, que na minha opinião não cai no campo do “mensagem acima da história”, por trazer peso e humanidade à decisão da protagonista, mas que de alguma forma perde um pouco de impacto por não conseguir manter o fôlego ao longo da história. O final é impactante e bonito.

    Pensando agora, talvez o texto tenha ficado longo demais para o que se propõe a contar, e seja isso que deixou o ritmo um pouco lento e monótono. Claro que você tem o direito de usar o limite máximo do desafio, não tô questionando isso. Mas talvez seu conto seria beneficiado por um número menor de palavras, não sei.

    Construção de personagens: 8,0
    Enredo: 5,0
    Ritmo: 6,0
    Técnica: 8,5
    Desfecho: 8,5

    Nota final: 7,2

    Parabéns e boa sorte!

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Luiz, sinto pela falta de mistério. Vida de quem quer abortar é assim mesmo… Realidade crua, sem mistério, mas com terror. Um drama sem saída fácil, como você mesmo percebeu.

      Claro que a gente sempre tenta passar uma mensagem com tudo o que a gente escreve, mas o problema é que com temas polêmicos isso tende a se sobressair. Quem concorda com a ideia, pode até aproveitar a leitura, mas quem não concorda vai encarar tudo como tortura mesmo. Enfim, eu já sabia que seria assim, não posso reclamar.

      Obrigada pela leitura.

  21. Kelly Hatanaka
    1 de maio de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Costumo avaliar os contos com base nos seguintes quesitos: Tema, valendo 1 ponto, Escrita, valendo 2, Enredo, valendo 3 e Impacto, valendo 4. Abaixo, meus comentários.

    Tema
    Dentro do tema. Uma mulher viaja para São Paulo para realizar um aborto.

    Escrita
    Correta, bonita, nada a dizer aqui.

    Enredo
    Marcela engravida, resolve não levar a gravidez adiante e toma medicamentos que vão interromper a gestação, com o apoio de um grupo.
    O enredo é simples, nenhum grande problema. Mas, infelizmente, não consegui simpatizar com Marcela. Uma mocinha, com grandes planos materiais e sentindo já um vazio existencial, se vê grávida e não cogita nenhuma saída que não seja o aborto. Acho que falou um desenvolvimento do personagem. Mostrar dúvida, uma conversa com Caio. Sua decisão é rápida, sua ação é rápida. No fim, apesar do drama, não senti por Marcela.
    As ideias de Marcela, expostas em sua conversa com a mãe, tampouco parecem sair de sua boca. Parecem frases prontas de grupos pró-aborto. E este seria um momento em que poderíamos vir a conhecer melhor Marcela.

    Impacto
    É uma boa história, mas o que me incomoda é que ela parece ter sido criada para vender uma ideia. Todas as histórias contêm as ideias do autor. Mas aqui a ideia parece atropelar todo o resto. Não estamos acompanhando a história de Marcela; estamos vendo como o aborto é ruim. Eu me senti lendo um panfleto antiaborto.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Kelly, pena que você não simpatizou com ela. Pelo que captei foi pq ela não cogitou nenhuma saída que não fosse o aborto. Qual seria a alternativa? Ter o filho, né? E isso ela não queria, nunca quis. Mas, se você não pensa como ela, então não vai gostar dela mesmo…

      O caso é de uma menina comum, igual a tantas outras que passam por esse tipo de situação e que não têm dúvidas sobre o caminho que devem tomar. Se a atitude é certa ou errada, se o jeito dela é superficial, egoísta ou não, se é tudo justificável, bom, isso vai depender de concepção de quem lê.

      Aliás, notei que você comentou diversos contos nesse mesmo dia e arrisco dizer que passou por aqui um tanto apressada, talvez porque a temática te incomode. Mas a história é para isso mesmo, para incomodar, para fazer as pessoas pensarem. Quanto a isso, acho que o conto funcionou.

      Enfim, obrigada pela paciência e pelo comentário.

      • Kelly Hatanaka
        15 de maio de 2024
        Avatar de Kelly Hatanaka

        Oi Isabel.

        Infelizmente, não é tão simples.
        Sou perfeitamente capaz de gostar de gente que não pensa como eu. Aliás, se não fosse assim, não gostaria de ninguém…
        Como expliquei em meu comentário, senti falta de um maior desenvolvimento da personagem, algo que me fizesse sentir a angústia de sua decisão. Porque essa decisão não é fácil. Se eu conseguisse me conectar com Marcela, eu sofreria com suas escolhas, torceria por ela. Sem isso, o texto soa panfletário, ao menos para mim. O que não é, de modo algum, sinônimo de “texto que fala de coisas que não gosto”. Panfletário é quando o texto traz seu objetivo na frente de tudo. É questão de gosto, não de certo ou errado, mas eu prefiro que o “assunto objetivo” seja tratado de forma mais sutil e que a história e os personagens brilhem.

        A temática não me incomoda, de forma alguma. Somente a forma. Tampouco minha leitura foi apressada. Apesar de postar meus comentários em lote, os contos são lidos ao longo de dias, comentados em word, avaliados, notas anotadas na minha planilha e, só depois, posto aqui.

  22. Antonio Stegues Batista
    1 de maio de 2024
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    O conto começa com as cenas básicas que vemos em filmes, garota chateada, vai a um bar chato, cheio de gente chata, ouvir música que ela não gosta, de repente acontece uma briga e surge o salvador da noite, o clássico peixe fora d’água, Caio, um garoto charmoso, irresistível que por força desconhecidas e sobrenaturais, vai ao bar sem querer ir só por que o destino quer. Os dois passam a noite juntos, Marcela fica grávida, decide tirar o bebe e tem uma longa discussão com a mãe sobre aborto. Como nos filmes, aqui começa o terror, o polêmico direito de abortar e o conto mostra as duas vias e suas consequências, se o final é bom ou não, depende. O conto está bem escrito, e é só o que tenho a dizer. Fim.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então Antonio, obrigada pelo comentário. Só faltou você dizer a sua opinião. É só o que tenho a dizer também. Fim.

  23. vlaferrari
    28 de abril de 2024
    Avatar de vlaferrari

    Um conto forte para um final de domingo, abrangendo uma questão muitíssimo complicada. Mas a discussão é necessária e esse não é o espaço adequado. Aqui é preciso avaliar a escrita e a estória. E a avaliação é positiva: bem escrito, bem montado e na medida certa das descrições, para não forçar demais. Apenas o princípio do procedimento e o final da estória, sem o “miolo sangrento e cheio de questões”. A narrativa é bem elaborada e talvez algumas vírgulas demais, mas nada que atrapalhe a imaginação do leitor.
    O tema foi atendido. E os dedos ficam “coçando” para expressar a opinião sobre ele, mas como disse não é o local apropriado. E por conta disso, fica a magia entre escritora/escritor e leitores/leitoras: a provocação proposital, que faz o conto perdurar na mente de quem o lê.
    Coisa de profissional, na MINHA OPINIÃO. Sucesso no desafio.

    • Isabel A.
      14 de maio de 2024
      Avatar de Isabel A.

      Então vlaferrari, acho que esse é o tipo de assunto que pode e que deve ser discutido em qualquer espaço, até aqui, por que não? Não precisa ficar só se coçando. Se não for aqui, onde temos a possibilidade, onde será?

      Obrigada pelo comentário.

      • Vladimir Ferrari
        14 de maio de 2024
        Avatar de Vladimir Ferrari

        Acho que vc não me entendeu. Meu comentário tem de se ater a opinar sobre a estória e sua escrita. O tema pode-se discutir em qualquer lugar. Abs

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Publicado às 28 de abril de 2024 por em Viagem / Roubo e marcado .