EntreContos

Detox Literário.

Sui Generis – Conto (Bruno de Andrade)

— Leu?

— Li.

— Mesmo?

— Mesmo.

— Jura?

— Juro!

— E o que achou?

Rompe-se o tecido social. Assumir uma falsa leitura é dessas cortesias das quais você não pode se esquivar. Aquele “mesmo?” já flertara com a linha do abuso. Mas, vá lá, há de se perdoar a carência de um escritor iniciante. Você já esteve nessa posição, sabe bem. É questão de caridade. O pedido de jura, porém, chegara ao limite da sociopatia, você devia ter percebido. Mas não, você embarcou nesse trem desgovernado. Agora busca um freio de emergência, revirando desesperadamente seus arquivos mentais em busca de adjetivos genéricos.

— Achei assim… imagético.

— Imagético?

— É, você descreve bem.

Ele encara a própria bebida, não parece muito convencido. Você complementa:

— Muito bem!

— E o enredo?

— Intrigante.

— Sério?

— Seriíssimo!

— Do que você mais gostou?

Ele busca especificidades. Você está contra as cordas. Agora é tudo ou nada. Ou assume a mentira ou o golpeia com um elogio forte o suficiente para desorientá-lo. Você opta pela ofensiva.

— É desses livros que é impossível parar de ler até virar a última página!

Ele abre um largo sorriso. E então você sabe que cometeu um erro.  Nada é pior do que um escritor feliz.

— Sabe, eu tenho recebido muitas críticas negativas.

— Mentira!

— Dizem que é uma obra hermética.

— Capaz! Respeita completamente a lógica interna dos acontecimentos.

— Sim! Mas parece que ninguém percebe.

Vocês trocam um olhar de compreensão entre gênios literários.

— O que achou da virada na trama?

Bem quando você achou que tinha vencido a batalha.

— Achei diferente.

— Diferente?

Ele parece desconfiado, talvez comece a entender seus truques. Ser genérico não é mais suficiente. É hora de ser genérico com palavras difíceis.

— Sim, diferente. Sui generis.

Ele volta ao sorriso satisfeito.

— Vai escrever uma resenha?

— Duas! Uma com spoilers e outra sem.

— E vai postar nas redes sociais?

— Assim que chegar em casa!

Ele vira o copo, exultante. Você relaxa os músculos, quase orgulhoso da sua farsa.

— Olha, eu sei que talvez seja pedir demais…

Um escritor feliz pedindo alguma coisa. Você está vivendo um pesadelo. Mas agora é tarde para recuar.

— Pode pedir!

— Eu vou fazer uma reimpressão. Não vendi quase nada, mas acho que foi porque fiz tudo de um jeito muito amador.

— Foi isso, certeza.

— Agora vai ser profissional. Arrumei uma boa editora.

— Olha só! Parabéns!

— É, parecem sérios. Só tenho que comprar uns quinhentos exemplares, a preço de capa. Oitenta reais cada um.

— Realmente, uma barganha.

— Você escreveria a orelha pra mim?

— Claro!

— Agora?

— Agora?!

— Agora.

— Por que agora?

— Ah, não sei se vou te ver em outra ocasião…

— Te dou meu email.

— Mas você gostou tanto do livro, né? É só rabiscar alguma coisinha aqui no guardanapo.

Escritores. Não há pior tipo.

—Não sei se consigo assim de supetão…

— Consegue. Tudo o que você escreve fica maravilhoso.

Você é incapaz de negar uma carícia ao ego. Aos veteranos também cabe a carência.

— Bom, não custa tentar.

Você pega o guardanapo e rabisco algumas linhas.

Vento sul é uma obra conectada ao seu tempo, com uma linguagem ágil e inovadora, mostrando um texto maduro, que reflete questões cotidianas sem abrir mão do lirismo. Cada capítulo traz uma surpresa ao leitor, que fica preso às linhas costuradas com maestria por Renato Duarte – fiquem de olho neste nome. Personagens cativantes, escrita precisa, enredo carregado de questões relevantes para a nossa sociedade: este é um livro que já nasce com alma de clássico.

Ele passa os olhos pelo papel, dobra-o e guarda no bolso. O rosto iluminado.

— Obrigado! Você captou mesmo a essência do que eu queria passar.

— Sempre que precisar.

Ele se levanta, pronto para ir embora. Não sem antes oferecer um último afago.

— Espero ansiosamente pelo teu próximo livro!

Uma questão passa pela sua mente

— É? E o que achou do último?

— Muito bom! Segue o padrão dos demais.

— Padrão?

— Sim. Texto inteligente, personagens bem construídos, linguagem fluida.

— Ah.

— Grande projeto literário o seu. Não esperava menos.

— Pois é.

Ele vai embora, feliz com todas as orelhas. Você encara seu próprio copo, sem saber direito o que pensar.

Escritores.

Não há pior tipo.

14 comentários em “Sui Generis – Conto (Bruno de Andrade)

  1. Angelo Rodrigues
    1 de abril de 2024
    Avatar de Angelo Rodrigues

    Olá, Bruno.

    Conto bem sacado. O escritor iniciante ou sem muito talento, de modo geral, é mesmo muito chato. Por isso nem me arrisco. Prefiro rabiscar sem compromisso.

    Mas… confesso que, se algum dia publicar alguma coisa, vou te pedir pra usar essa orelha que você rascunhou num guardanapo. Perfeita. No texto que você escreveu e na literatura de todo tipo. Não diz muita coisa, é perfeita. Nunca poderá haver engano por falar além da conta. Serve para qualquer tipo de literatura. Conto, Poesia e Romance. Crônicas também.

    “— A natureza da literatura, assim como a natureza das coisas, dispensa o supérfluo. O escritor sensato, que conhece seus limites, permanece com seus textos devidamente guardados em casa, só os mostrando aos amigos que tenham limites iguais aos seus e para que, com eles, tristemente se regozijem ao conhecê-los. Há nisso arte e beleza, porque este homem sabe muito bem compreender os seus próprios limites ao não dar a conhecer a muitos, mais que os amigos próximos, a imbecilidade que reconhece ter.”

    Texto bem-humorado que faz graça no tamanho certo.

    Parabéns pelo texto.

  2. Givago Domingues Thimoti
    31 de março de 2024
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Olá, Bruno!

    Tudo bem?

    Um conto quase meta linguístico sobre o ofício do escritor e a mania (chata) de buscar opinião (Ou seria aprovação?). Afinal, o que é do escritor sem alguém para ler?

    Acho que você abordou essa relação escritor, leitor e a validação de uma forma cômica leve e engraçada.

    Parabéns!

  3. Gustavo Castro Araujo
    30 de março de 2024
    Avatar de Gustavo Castro Araujo

    Falconeri vibes huahauahauhauaha Excelente conto, escrito com aquela ironia fina que nos faz perceber que já estivemos em ambos os lados da conversa, que na verdade estamos fluindo de um a outro a depender da pessoa com quem conversamos. Ah, esse maravilhoso mundo literário… Pena ser habitado por escritores.

  4. Juliana Calafange
    30 de março de 2024
    Avatar de Juliana Calafange

    Hahahaha! Muito bom. Ironia fina. Tô rindo até agora. Amei.

  5. Regina Ruth Rincon Caires - Caires
    30 de março de 2024
    Avatar de Regina Ruth Rincon Caires - Caires

    E bota “peculiar” nisso!

    Gostei muito. Só não sei se rio ou se choro. Pobre escritor, santa insegurança. Será que só ocorre com “escritor iniciante”? Lidar com as palavras de uma avaliação é um pisar em ovos, e seguir lendo um comentário é como entrar numa montanha russa. E o pobre vai de iluminado a parvo num minuto. “Imagético”, descompromissado, descrição exacerbada, adjetivação abusiva, linguagem incompatível, personagem caricato além da conta  – palavrinhas danadas!

    Claro que vivenciei tudo isso, mas não nego que cheguei a esboçar sorrisos nestas passagens:

    “Ele busca especificidades. Você está contra as cordas. Agora é tudo ou nada. Ou assume a mentira ou o golpeia com um elogio forte o suficiente para desorientá-lo. Você opta pela ofensiva.”

    “Nada é pior do que um escritor feliz.”

    “Vocês trocam um olhar de compreensão entre gênios literários.”

    “Ele parece desconfiado, talvez comece a entender seus truques. Ser genérico não é mais suficiente. É hora de ser genérico com palavras difíceis.”

    “Ele vira o copo, exultante. Você relaxa os músculos, quase orgulhoso da sua farsa.”

    “— Agora vai ser profissional. Arrumei uma boa editora.”

    “— É, parecem sérios. Só tenho que comprar uns quinhentos exemplares, a preço de capa. Oitenta reais cada um.”

    “— Você escreveria a orelha pra mim?”

    “— Mas você gostou tanto do livro, né? É só rabiscar alguma coisinha aqui no guardanapo.”

    “Você é incapaz de negar uma carícia ao ego. Aos veteranos também cabe a carência.”

    “Ele vai embora, feliz com todas as orelhas. Você encara seu próprio copo, sem saber direito o que pensar.

    Escritores.

    Não há pior tipo.”

    Fico contente quando vejo que existe pessoa capaz de colocar num papel, de maneira tão clara e pacífica, as aflições que fervilham no peito de um “escritor”. Na realidade, esses pensamentos são sofridos, insegurança não é coisa boa de sentir. Mas, descritos aqui, trazem uma “normalidade”. Até parece que tudo não passa de uma brincadeira. Só que não, né?

    E vou te contar uma coisa: Depois de muuuuitos anos, resolvi enviar o meu projeto de livro de contos para um escritor (que não é iniciante) e que também é editor. Passados meses, nada de resposta, escrevi uma mensagem perguntando sobre a impressão que ele teve. Ele respondeu: “Desculpe-me, tentei ler por diversas vezes, não consegui. Sinto muito”. Já pensou?!

    Parabéns, Bruno! Leitura muito boa para esta tarde!

    Abração.  

    • Bruno Raposa
      30 de março de 2024
      Avatar de Bruno Raposa

      Eita que nem sei como responder um comentário desses. :O

      Obrigado pelas palavras tão gentis, Regina.

      E, bom, o escritor da tua história não foi tão gentil assim, né? Mas ao menos foi honesto, eu acho. Ou não, vai ver nem tentou ler e foi babaca só pelo prazer da babaquice mesmo, o que daria uma outra boa trama. Jamais saberemos.

      Sigamos por aqui, rs.

  6. Priscila Pereira
    30 de março de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Oi, Bruno! Tudo bem?

    Ótima crônica! 😅

    Ah, esses escritores!!! Nunca fiz isso, sempre assumo que não li, até tentei, mas não consegui, um dia desses ainda termino…. Literatura é isso mesmo, tem as que engrenam maravilhosamente e as que não rolam nem a pau.

    Gostei muito! Parabéns!

    • Bruno Raposa
      30 de março de 2024
      Avatar de Bruno Raposa

      Você é mais honesta do que eu! haha

      Obrigado pela leitura e comentário. =)

  7. Kelly Hatanaka
    30 de março de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Curti! Achei imagético, intrigante, texto inteligente, personagens bem construídos, linguagem fluida kkkkkkkk.

    Bem humorado, direto e reto e muito fácil de se identificar, tanto com o escritor carente quanto com o leitor procrastinador. Os elogios genéricos mostram como é fácil afagar um ego sedento de atenção.

    • Bruno Raposa
      30 de março de 2024
      Avatar de Bruno Raposa

      Único problema é que agora nunca mais vou poder usar esses elogios num comentário, rs.

      Como o meu ego também é sedento de atenção, fiquei muito feliz com o feedback. Gradicido!

  8. rubem cabral
    30 de março de 2024
    Avatar de rubem cabral

    Oi, Bruno!

    Achei bem divertido, e o texto é bem ágil, criando pequenos plot twists a cada momento. Não é sui generis, hehehe.

    Lembrou-me um pouco o estilo do Luís Fernando Veríssimo.

    Abraço!

    • Bruno Raposa
      30 de março de 2024
      Avatar de Bruno Raposa

      Só em falar que lembrou um pouco o estilo do LFV já vale por todos os elogios possíveis, rs.

      Obrigado, Rubão!

  9. Fabio D'Oliveira
    30 de março de 2024
    Avatar de Fabio D'Oliveira

    Buenas, Brunão!

    Escritores… Não há pior tipo. HAHAHAHAHAHA. Maravilhoso. Como todo bom escritor, ou aspirante, ou falso escritor, tenho meus amigos com a mesma pretensão. E já cometi esse erro. Minha alma de procrastinador impediu de ler o livro do cara. E ele me colocou contra as cordas, assim mesmo, numa mesa de bar. Mas não tive a habilidade do seu personagem, HAHAHAHA. Depois disso, nunca mais menti sobre isso. Boto a culpa no meu eu-procrastinador.

    É o tipo de conto que tem inúmeras camadas. É simples, superficialmente, mas tem tanto nas entrelinhas que, por fim, rende um belo debate numa roda de amigos, bebericando o chope, recostados na cadeira, horas a fio, sem compromisso, apenas entrega.

    Continue escrevendo, Brunão!

    • Bruno Raposa
      30 de março de 2024
      Avatar de Bruno Raposa

      Como eu escrevo muito pouco, aproveito minha pouca inspiração pra caçoar dos outros escritores, hehehe!

      Obrigado pelo retorno, feliz que tenha curtido. 🙂

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Informação

Publicado às 30 de março de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .