EntreContos

Detox Literário.

O Fio do Machado – Conto (Bruno Raposa)

— Olhos de cigana oblíqua e dissimulada.

— O que tem?

— Foi essa frase que sepultou a literatura brasileira.

— Isso faz mais de século.

— E desde então vivemos todos à sombra dela. Os que vieram pouco depois, tiveram sorte, ainda aproveitaram as brechas do eclipse. Mas o que resta a nós, autores contemporâneos? Só o breu imposto por Machado.

— Você só está frustrado.

— E quem não estaria? Dedicar-se a ofício assassinado por seu maior expoente. Vil ironia. Crescemos admirando nosso algoz. Apenas para, anos depois, descobrirmos que não nos restou nenhuma especialidade além de legista. Não podemos tratar de cérebros, corações, nem mesmo pernas. Nos sobra a indigna tarefa de investigar as causas de nossos bebês natimortos.

— E a causa é o Machado?

— Não. Apenas a sentença.

— Olhos de cigana oblíqua e dissimulada?

— Isso. Olhos de cigana oblíqua e dissimulada.

— O que há de errado na frase?

— Nada. E tudo. É a epítome da perfeição inalcançável. Construída de forma impecável e imortal. Poderíamos tentar superá-la pela estética, embaralhando todas as palavras existentes em nosso léxico. Encontraríamos adversária à altura, ainda que por aleatoriedade linguística. Mas é impossível combater a perfeição da forma quando ela encontra também a perfeição do conteúdo.

— E qual o conteúdo?

— Nada.

— Nada?

— Nadinha.

— São as cervejas falando, melhor irmos pra casa.

— Sabe o que é um cigano?

— Um nômade, eu acho.

— Pois é muito mais. O povo cigano tem incerta origem asiática, uma história sem registros precisos, conectando-se pela língua e pelas diásporas. Durante séculos foram envoltos num manto de mistério, magia e medo. Em muitos países foram perseguidos e exterminados. Sobreviveram se espalhando pelo mundo, sempre alvo de fascínio e preconceito. De tão obscuros e inconsistentes viraram adjetivo.

— Disso não sabia.

— Então me diga, meu caro, como os olhos de um indivíduo desse povo deveria parecer?

— Pensando assim… Mas ele deve ter usado como adjetivo, como você disse.

— Tanto pior! Aproveitou do apagamento de um povo, de uma cultura, do sangue perseguido e derramado, apenas para fazer uma metáfora. Que classe de genocida faz isso?

— Você está exagerando.

— Estou? Estou? Pois agora lhe faço outro questionamento, meu amigo. O que, aos seus olhos e ouvidos, parece ser algo oblíquo?

— Sei lá. Só lembro de ouvir a palavra em aulas de matemática. Ângulos oblíquos, eu acho.

— Consulte o dicionário e verás que se trata de algo torto, que foge de paralelos e perpendiculares. Um desvio, quase uma deformidade. Agora note que Machado, o perverso, não disse que os olhos de Capitu eram oblíquos, mas que eram de uma cigana oblíqua. O que tal jugo te parece?

— Colocando dessa forma…

— É um escárnio! Em busca de sua obra prima Machado humilha milhões do passado e condena milhões de seu futuro. Milhões dos seus! Escritores!

— O álcool o está exaltando. Além do quê, Dom Casmurro não se resume a uma analogia.

— Ah, não? Então porque tamanho interesse em Capitu? Por que só questionam sua possível, veja bem, possível, traição? E quanto a Escobar e seus ardis de potencial amigo traidor? E Bentinho, amargurado, péssimo pai e com um estranho interesse por Escobar? Não, só olham para Capitu. Por causa dos olhos. De cigana oblíqua e dissimulada.

— Olhos dissimulados faz sentido.

— Lógico que faz. E assim poderia ser a frase. Capitu de olhos dissimulados. Não nos sentiríamos estúpidos ao escrever sobre olhos brilhantes, olhos misteriosos, olhos sedutores e tantos outros clichês ao qual estamos aprisionados. Olhos dissimulados. Bastaria. Com cigana oblíqua Machado condenou a todos nós, casmurros, ao ostracismo. 

— Casmurros?

— Sim, porque essa foi a troça final. Nomear seu personagem com o título que destinara a todos os escritores a carregar após sua obra. Casmurros de frustração, de ódio, de desgosto, eternamente assombrados por um olhar inexistente. 

— De cigana oblíqua e dissimulada.

— Só oblíqua, dissimulado era o autor. Quão bem conheces a obra machadiana?

— Meio por alto.

— Pois ele veio preparando sua tocaia desde muito antes do açoite final. A quem ele dedica suas memórias póstumas? Aos vermes que roerão as frias carnes do seu cadáver. São esses restos pútridos que estamos perpetuamente a mastigar.

— Os casmurros?

— Pois. E em Quincas Borba? Era um recado de Machado, o inclemente, avisando que nos tornaríamos todos Rubiões, perseguindo a fatal filosofia de Quincas.

— Nunca li Quincas Borba. Achei que era um cachorro.

— Era. Também.

— Ah…

Machado. Sabe qual era seu nome? Joaquim Maria. Escolheu Machado, como o instrumento ceifador. Sabia que com sua lâmina gélida degolaria em dois golpes fatais todos que tentassem seguir o ofício das letras.

— Pra ser fatal não pode ser um golpe só?

— Dois. Um cigano e um oblíquo.

— Nenhum dissimulado?

— Dissimulado era o autor.

— Verdade.

— Mas acho que encontrei um jeito de dobrar o velho Machado, o facínora. Ele foi iluminado com a perfeita descrição do olhar feminino. Tenho que achar a contraparte masculina. Ninguém jamais conseguiu descrever o olhar de um homem de maneira tão inexorável.

— E você encontrou a descrição?

— Ainda estou pensando. O que acha de olhos de curdo obtuso e incógnito?

— Acho que você bebeu demais. Vou pedir a conta.

— Olhos de um saxão boçal e escuso, olhos de um judeu torpe e sigiloso…

— Garçom!

— Olhos de um neandertal néscio e caviloso, olhos de um viking rústico e recôndito…

— Desce mais duas cervejas. Duas não, traz logo meia dúzia!

— Olhos de um índio selvagem e desavergonhado…

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12 comentários em “O Fio do Machado – Conto (Bruno Raposa)

  1. angst447
    13 de janeiro de 2021

    Muito bom esse conto feito de um diálogo que fica entre o analítico (que transparece a inveja de Machado de Assis) e o cômico (tentativas de criar uma descrição de um olhar masculino tão marcante quanto o de Capitu). Quem diria que uma frase de Machado daria tanto assunto para conversa de boteco? Narrativa muito divertida, sagaz e bem elaborada. Uma machadada certeira. Parabéns!

  2. Leda Spenassatto
    9 de janeiro de 2021

    Meu Joãozinho!
    Preciso respirar. Ufa! Esse machado me acertou em cheio. Jamais imaginei que o machado que tantas vezes usei (uso) fosse descrito em tão bela narrativa.
    Estou de boca aberta.
    O machado e o Machado fundidos para nos questionar.
    Acredito que ainda estou no cabo.

  3. Fabio D'Oliveira
    5 de janeiro de 2021

    Gostei desse conto, Bruno.

    É o tipo de conto que admiro, pois possui várias camadas, podendo agradar vários tipos de leitores. Considero isso uma virtude, principalmente quando acontece naturalmente, o que foi seu caso, como afirmou em comentários.

    Sobre minha interpretação, eu vi um pouco do que você pretendia: uma pessoa frustrada, incapaz de notar suas falhas, buscando, através da bebida e do discurso, uma zona de conforto. É mais fácil achar que o problemas são os outros do que você mesmo, né? No fundo, despertou alguns questionamentos: nossa literatura realmente se resume ao Machado de Assis? Não acho que seja o caso, mas parece que ele foi o ápice de nossa literatura. Por quê? Esse tipo de reflexão nos direciona para outras coisas, até questões atemporais, o que dá mais valor para a narrativa.

    Sobre o diálogo, achei um tanto artificial, mas não encarei isso como um problema. Você queria dizer algo e, para isso, precisou de direcionamento. Então o beberrão frustrado conduz o tempo inteiro, deixando a segunda voz do diálogo como um mero receptor, que ajudava a direcionar o discurso para o que você queria dizer.

    É um bom trabalho, Bruno, a leitura foi gostosa e seu humor continua afiado. Parabéns!

    • Bruno de Paula
      5 de janeiro de 2021

      Você gostou, Fábio? De um continho assim em moldes tão tradicionais?

      Acho que o mundo acabou em 2020 e esqueceram de me avisar. Isso aqui é o limbo?

      Mas falando sério, agradeço pela leitura e comentário. Me diverti escrevendo o conto e tenho me divertido com as reações tão díspares a ele.

      Fazia muito não escrevia humor, bom ver alguém da “velha guarda” ainda apreciando minhas piadocas.

      Abraço!

  4. Luciana Merley
    5 de janeiro de 2021

    Olá, Bruno
    Gostei demais da sua labuta Machadiana. Muito divertido e perspicaz. Todo em diálogos que me prenderam do início ao fim. Parabéns.

    • Bruno de Paula
      5 de janeiro de 2021

      Obrigado Luciana. E aguarde que o conto da noite de cachorro solto virá. 🙂

  5. Anderson Prado
    3 de janeiro de 2021

    Olá, Bruno! Parabéns pelo texto! Que prenda! Digno de um campeão do EntreContos! Inteligentíssimo! E divertido! Abraço!

    • Bruno de Paula
      4 de janeiro de 2021

      E aê, Anderson.

      Como leitor você tá salvo, agora precisa mandar seu próprio conto pra temporada.

      Meu próprio machado ainda tá aqui nas minhas mãos, haha.

      Que bom que gostou.

      Abraço!

  6. antoniosbatista
    3 de janeiro de 2021

    Muito boa a ideia de analisar a escrita de Machado de Assis, em especial uma frase de um de seus romances, criando um conto somente com diálogos. Tem uma dose de humor, mas a filosofia da questão se destaca, oblíqua e soberana.

    • Bruno de Paula
      4 de janeiro de 2021

      Valeu pela leitura, Antônio.

      Curiosamente, eu não tinha nenhuma intenção de analisar Machado. O humor e o ridículo da situação do escritor frustrado levando ao limite sua autoindulgência eram o cerne do conto quando o construí.

      Mas muitos viram além da minha piadoca. Seu elogio é até imerecido, mas eu o aceito, não tenho autoestima suficiente pra recusar nenhum agrado, haha.

      Abraço!

  7. opedropaulo
    3 de janeiro de 2021

    A princípio, achei graça, vi-me no lugar do amigo moderador que não deixa de escutar a reflexão acelerada do parceiro de bebida. Em nenhum momento deixei de achar engraçado, aconteceu apenas que… começou a fazer sentido e eu me senti um pouco ressentido.

    Também ri com o desfecho e desejo sorte à missão de caracterização do olhar masculino. Para esta feita, acho que está no caminho certo!

    • Bruno de Paula
      4 de janeiro de 2021

      Obrigado pela leitura, Pedro.

      Esse texto teve uma recepção muito curiosa. Achei que não caberia nada além da risada pela caricatura feita. Ou da não risada e frustração do leitor que não entrasse no espírito da brincadeira.

      Mas gerou outros tipos de sentimentos e interpretações nas pessoas. Esse seu foi bem particular, de se pegar concordando um pouco com o autor frustrado.

      Mas que bom que achou graça do conto, a intenção era essa. 🙂

      Abraço!

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Informação

Publicado às 2 de janeiro de 2021 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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