EntreContos

Detox Literário.

Nó – Conto (Giselle Bohn)

Ela sabe no momento que atende ao telefone. Talvez porque a voz do outro lado tenha se demorado um segundo a mais. Talvez porque antes da saudação estranhamente casual ela tenha ouvido uma respiração sôfrega. De algum modo, ela sabe. E entre aqueles olá e oi e como estão as coisas e ah desse jeito né aí deve estar igual e sim que loucura tudo isso quem poderia imaginar, ela sabe que há mais. Ele toma fôlego.

– Eu tenho que te falar, eu tenho que tirar isso de mim, eu ainda amo você, eu não consigo esquecer, eu sinto tanto sua falta, eu sei que já aconteceu tanta coisa, já faz tanto tempo, mas eu já fiz de tudo, eu não sei mais o que fazer, parece que eu vou sufocar, eu tinha que te falar, você é o amor da minha vida, eu não estou te pedindo nada, eu não espero nada, mas eu precisava te falar, se você um dia ficar triste, se um dia você achar que nunca ninguém te amou de verdade, eu só quero que você saiba que eu te amo mais do que qualquer coisa nesse mundo e sempre vou amar… 

Ela não diz nada por um segundo, ou dois, ou três.  Ele espera. E então ela inicia uma enxurrada de não-diga-isso-você-sabe-que-não-é-verdade-você-acha-que-me-ama-mas-sabe-que-só-diz-isso-porque-está-aí-sozinho-você-não-devia-me-dizer-isso-você-vai-se-arrepender-depois-o-que-espera-ouvir-de-mim-por-favor-não e fala porque enquanto fala ele se cala e enquanto se cala ela não vai ouvir que ele a ama enquanto que ela nada sente e que ele sente sua falta enquanto que ela tem calafrios à sua mera lembrança e que ele a vê como o amor de sua vida enquanto ela o vê como um grande erro com nome e sobrenome e endereço. Mas mesmo enquanto ela fala ela sente o quanto ele sofre e o pesar por todo este absurdo inunda seus olhos e embarga sua voz e ela sabe que se ele a ouvir chorar vai pensar que se ela chora ainda depois de tudo e de tanto tempo é porque ainda há algo e ela teme que ele vai se agarrar a esse fiapo de esperança construído com lágrimas salgadas de pena e nada mais. 

E entre as frases vazias as lágrimas vêm cheias, pois ela sente tanto, tanto, tanto. Por que, meu Deus, por que as coisas têm que ser assim? Como pode o objeto de tanto amor não retribuir nada, como pode alguém amar quem não o ama, como pode alguém amar quem por outro tem amor, outro que nem a ama, outro por quem ela chora outras lágrimas também salgadas, não de pena mas de dor? Por que existe amor ainda que não seja nunca nutrido, como pode ele existir ainda que continuamente desprezado? Que inferno é esse em que vivemos, ao mesmo tempo com tanto amor e sem amor nenhum, recebendo o que não se espera nem se deseja enquanto esperamos e desejamos o que não podemos ter? Por que, por que as coisas têm que ser assim?  

Mas logo suas frases vazias se esgotam, e ela então se cala; percebe que ele não pode se agarrar a nada e que não restou fiapo nenhum, e quase sente na boca o gosto de seu arrependimento. No silêncio ensurdecedor que segue seu discurso de misericórdia ela sabe que ele se sente pequeno e patético e que daria tudo para nunca ter ouvido a rejeição travestida de bom senso que acabara de ouvir. E ele balbucia qualquer coisa e desliga, mas o alívio não vem. Pois ela pode quase vê-lo, tão longe dali, sentado, curvado, cabeça nas mãos, um nó na garganta e uma dor que não passa. E ela não pode nem ao menos encontrar consolo no pensamento de que aquela dor um dia há de passar. Ela sabe que não passa. Ela sabe.

27 comentários em “Nó – Conto (Giselle Bohn)

  1. Renata Medeiros
    17 de agosto de 2020

    Triste, mas singelo e verdadeiro. Nós temos nós que podem ser desfeitos e transformados em laços. Mas é preciso conexão. Um conto muito bom para refletirmos sobre as relações humanas afetivas e seus nós.

  2. Andreas Chamorro
    14 de agosto de 2020

    Monólogo interior e fluxo de consciência são arroz e feijão nas literaturas que consumo. Faço o caminho retrógrado: parto da consciência e, aos poucos, galgo obras que me tragam mais exterior, ao invés de ir do Romantismo ao Modernismo como comumente acontece. Gisele, parabéns pelo texto. Sou leitor de Joyce, simplesmente adorei sua “Penélope” mais controlada por acentos esparsos, por quês e meu Deus. O fato da ligação me ressaltou a ligação fina mas existente entre os dois personagens. Incrível, quero com certeza conferir o que mais tem as no dizer. Pessoa para arrematar: “Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém.”

    • Giselle F. Bohn
      15 de agosto de 2020

      Muito obrigada, Andreas, pela leitura e pelo comentário elogioso! Li seu conto e achei maravilhoso, logo fico honrada de saber que gostou do meu texto! 🙂

  3. Fil Felix
    6 de agosto de 2020

    Boa noite, Giselle! Um conto sensível, que faz a gente repensar sobre o amor, esse tema que já foi e continua sendo extremamente utilizado, mas que ainda nos traz tantas dúvidas e frustrações. Ela sabe como é o sofrimento porque ela, talvez, já tenha sentido isso. Esse tipo de detalhe fez a diferença no texto, que vai se desenvolvendo aos poucos e, apesar de curto, consegue transmitir tanto. E é sempre bom ler contos assim, que geram um debate ou uma reflexão. Um outro ponto interessante é a liberdade da escrita, sem se apegar à gramática “correta”, pulando vírgulas e pontos a fim de dar mais identidade e fôlego ao texto, coisa que a gente geralmente tem medo (e insegurança) de fazer.

    • Giselle Fiorini Bohn
      7 de agosto de 2020

      Muito obrigada pela leitura e pelo comentário!

  4. Dioneti Angela Moretti
    1 de agosto de 2020

    Que lindo, quanta sensibilidade! Incrível a forma em que a autora se apodera das palavras para transmitir tanta emoção.

  5. pedropaulosd
    31 de julho de 2020

    É um conto que ganha força nas minúcias. O primeiro parágrafo atrai quem lê e cria uma grande expectativa para o que virá, mas, realmente, quanto tempo se passou na narrativa daquelas quatro linhas? Aparentemente, não mais do que duas palavras foram ditas de cada lado e é o intervalo entre a próxima fala que cria toda a tensão.

    Essa mesma característica é explorada nas linhas que sucedem. Ao instrumentalizar um hífen para unir em uma palavra só a série de respostas mais comuns em situações do tipo, a um só tempo reconhece a própria repetição de palavras que deve ter sido ditas em um bilhão de términos e, ao mesmo tempo, dá o tom frenético da fala da personagem. A mesma velocidade permanece no parágrafo pela repetição de palavras e pela ausência de pontuação, imergindo quem lê na confusão de sentimentos que perpassa os dois do desfeito casal.

    Mas, quando se encaminha ao final, o conto não se deixa ser apenas um experimento sensorial, pois no meio do turbilhão de emoções contrárias, a personagem reflete sobre o amor e, talvez, sobre como esse sentimento, um que em sua forma legítima supostamente se dá puro, pode ser desencontrado? Afinal, se o amor de dois é um, o que se faz de um amor sem recíproca?

    É um ótimo texto, com a subversão da norma linguística e uma agilidade clara, na medida em que faz da leitura envolvente e versa sobre um tema tão repercutido e universal como o amor. Parabéns.

    • Giselle F. Bohn
      1 de agosto de 2020

      Estou adorando fazer parte do Entrecontos e receber estas avaliações críticas!
      Muito obrigada pela leitura e pela análise tão cuidadosa! 🙂

  6. Bruna Batistella
    31 de julho de 2020

    Gente que texto é esse???
    Estou aqui sem fôlego buscando o ar!!!
    Não sei se foi só comigo, mas pude sentir a diferente dor dos dois!!!
    Meu coração está acelerado e sinto que estou nessa agoniante situação!
    Que profundo e maravilhoso! E quem nunca passou por isso?
    E quem, lendo essa narrativa tão viva, não se lembrou de alguém???
    Obrigada por essa experiência!
    Texto maravilhoso! Parabéns!

  7. Karem
    31 de julho de 2020

    Uau, que texto maravilhoso! Cheguei a sentir um aperto no peito que doeu. O texto resgata memórias, que por algum motivo não tocamos, mas estão lá.
    Adoraria ler mais textos bem escritos assim que mexem com as minhas lembranças.
    Gostaria de agradecer profundamente a autora por esta jóia. Parabéns!

  8. Luciana
    30 de julho de 2020

    Narrativa profunda em sua reflexão e sentimento. O leitor acompanha a dor e sofre junto. Demais a escrita. Parabéns!!!!

  9. Thaís
    30 de julho de 2020

    Eu sempre me pergunto como os (bons) escritores fazem pra conseguir trazer tanta realidade pros diálogos, momentos, sentimentos… Lendo esse texto, eu senti o que esse casal estava passando…e juro que me pergunto se a escritora está vivendo tudo isso de tão vivo que o texto é.

    Eu sinto que esse texto seria perfeito pra ser publicado na sessão de relacionamentos. Quem nunca viveu uma situação do tipo? Mas o mais interessante é conseguir reviver lendo um texto, por mais que seja uma realidade pessoal distante nesse momento.

    Parabéns pra escritora.👏🏻 Sinto que seus textos tem um potencial altamente terapêutico, especialmente pras pessoas que estão “ dentro da situação”. É como se a gente não se sentisse tão só, lendo a própria situação. Ajudando a ganhar clareza também.

    Seria maravilhoso também poder ter essa coletânea de contos em um só lugar – blog, site, livro. Eu quando simpatizo com um autor, artista, etc, gosto de poder seguir a sua coletânea de obras, inclusive pra conhecer melhor a história e o processo de criação que considero fascinante. Gostaria de ser informada se existir, por favor!

  10. Márcia Tofanin
    30 de julho de 2020

    Caracas!!!! Fiquei sem ar! Simples e profundo! Sofrido, dolorido e maravilhosamente bem escrito! Amei!!!! Parabéns, Giselle Bohn!

  11. Cilas Medi
    30 de julho de 2020

    Perde-se o fôlego pela forma com que é feita a narrativa, sem pontuação, em um só lance de memórias e sofrimento. Parabéns!

    • Giselle F. Bohn
      31 de julho de 2020

      Muito obrigada!

  12. fabiolaterrabaccega
    30 de julho de 2020

    O conto, apesar de tratar de um tema comum, fica muito interessante e gostoso de ler justamente pela forma como é narrado.

    • Giselle F. Bohn
      31 de julho de 2020

      Muito obrigada! 🙂

  13. Henrique Antonio Carvalho Coelho
    30 de julho de 2020

    Parabens pelo conto.
    Vieram à tona os mesmos sentimentos de quando lí os autores da geração Beat. Considero essa comparacao um elogio pois estes autores, com suas obras foram responsaveis, em parte, pelo meu interesse em ler. Forma livre, ritmo e sentimento presentes sao cativantes. Parabens à autora e sua obra.

    plus,

    “As únicas pessoas que me interessam são as loucas, aquelas que são loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas; as que desejam tudo ao mesmo tempo. As que nunca bocejam ou dizem algo desinteressante, mas que queimam e brilham, brilham, brilham como luminosos fogos de artifícios cruzando o céu.”.

    Jack Kerouac

  14. Maria Marion
    30 de julho de 2020

    Muito bom esse conto da Giselle!! Realmente, muitas vezes amamos quem não nos ama. Gostaríamos muito de sermos correspondidos, mas a vida não é um conto de fadas sempre!!
    Parabéns!!

  15. Tina Zani
    30 de julho de 2020

    delicado, profundo e tocante. amor é o que sobra quando não se tem mais nada…

  16. arianne.scribone
    30 de julho de 2020

    Gente!!!! Que conto é esse?!
    Essa autora é maravilhosa, ela expressou as sensações de uma forma tão clara que a gente lendo, foi sentindo exatamente aquilo!
    Já quero ler os próximos contos dela!!! Parabéns!

  17. Mia Stefania
    30 de julho de 2020

    Amei muito!! Que escritora maravilhosa!

  18. Anderson Do Prado Silva
    30 de julho de 2020

    A (anti)literatura contemporânea parece ter encontrado na subversão às mais elementares regras gramaticais um fim em si mesmo. A receita para o sucesso parece ter se tornado escrever o texto o mais tecnicamente correto possível e, depois, remover todas as vírgulas, ou remover todos os pontos, ou inserir sinais gráficos onde não os haveria. O escritor não se preocupa mais em construir o texto: basta, agora, lançar palavras avulsas sobre o papel, que o leitor se incumbirá de construir o sentido. O esforço do leitor não se resume mais a ler, antes (e principalmente), o leitor deve inserir vírgulas e pontos nos certos lugares e extrair desse exercício algum sentido. Há uma espécie de coautoria que avaliza e gabarita o texto como bom.

    Nesse afã de praticar (anti)literatura, a forma parece ter assumido mais relevo que o conteúdo. Com isso, o oco parece ter encontrado seu lugar: onde nada há, passa haver – qualquer assunto, estapafúrdio que seja, encontra espaço na (anti)literatura. O oco se faz arte enquanto destrói a arte que o pariu. É possível escrever sobre o cós do calção, desde que se o faça com inobservância de todas as regras gramaticais tradicionais, e se terá então um irretocável (e intocável) exemplar da (anti)literatura. Coitados dos que ousarem criticar tal espécime: retrógrado!, reacionário!, anacrônico!, antiquado!, ultrapassado!

    Bem, sou dos que valorizaram o conteúdo antes da forma. Nenhuma forma, por mais ousada, transformar-me-á em admirador do que carece de bom conteúdo.

    E é neste contexto que se tem a estreia de Giselle Bohn e seu segundo parágrafo sem ponto e seu terceiro parágrafo hifenizado. A pergunta se impõe: Giselle Bohn é daquelas detestáveis praticantes da forma pela forma?

    Para responder à pergunta, há que se iniciar a investigação pelo conteúdo do texto: o amor – aquele mesmo de Romeu e Julieta, de Madame Bovary, de A Mão e a Luva e de O Amor nos Tempos do Cólera. É deste amor longevo que versa Giselle Bohn. É o amor tema digno de boa literatura? Depois daquela curta enumeração, responder à pergunta seria verter à idiotia.

    Sendo o tema tão sabidamente bom e nunca suficientemente batido, resta saber se a forma, em Giselle Bohn, é um fim em si mesmo.

    Na primeira vez que a forma suplanta o conteúdo, Giselle Bohn retrata a incontenção de um amor declarado através da fibra: no extremo da linha, o amante se despetala, num rompante, numa agonia que não admite a pausa longa dos pontos finais – sai tudo banhado de vírgula, como tem que ser.

    Na segunda vez que Giselle Bohn nada de largas braçadas pela forma é para hifenizar a enxurrada que fecha portas àquele por ora inoportuno amor e, aí, é preciso falar “porque enquanto fala ele se cala e enquanto se cala ela não vai ouvir que ele a ama enquanto que ela nada sente e que ele sente sua falta enquanto que ela tem calafrios à sua mera lembrança e que ele a vê como o amor de sua vida enquanto ela o vê como um grande erro com nome e sobrenome e endereço”, assim, deste jeito mesmo, sem varação, sem encalhe de ponto.

    Em Giselle Bohn, a forma não é um fim em si mesmo, ao contrário, ela se presta bem para desenhar a ânsia e a finitude desse amor não correspondido.

    Parabéns Giselle! Felicidades!

    • Giselle F. Bohn
      31 de julho de 2020

      Uau, que honra ler uma crítica assim!
      Mas que susto você me deu! Já estava ficando triste, como se chegando na casa escura no dia do aniversário de que ninguém se lembrou, quando de repente se ouve um “Surpresa!” vindo de todos os lados…
      Muito obrigada pela leitura e por essa análise construída tão lindamente! 🙂

  19. Gustavo Araujo
    30 de julho de 2020

    Quem nunca passou por isso? Ouvindo ou falando… Desde os tempos do Renato Russo, “uma menina me ensinou quase tudo o que eu sei”… Ficam as cicatrizes.

    O conto é ágil e a escrita transmite bem a angústia dos dois protagonistas. Destaque para as palavras emendadas, que me fizeram lembrar do Nick Hornby, em “Alta Fidelidade”, que tem uma premissa parecida — aliás, como todas as pessoas.

    • Giselle F. Bohn
      31 de julho de 2020

      Muito obrigada, Gustavo! Pelo comentário e pelo acolhimento! 🙂

  20. Dalva Estela Foti
    30 de julho de 2020

    Foi tão real que ao término da leitura fiquei com esse nó na garganta…

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Informação

Publicado às 29 de julho de 2020 por em Contos Off-Desafio e marcado .