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Um Salieri da Vida Real – o embate Poe X Griswold – Artigo (Sonia Zaghetto)

Edgar Allan Poe – nascido em 19 de janeiro – é o mestre do fantástico, do romantismo sombrio, raiz primeira do romance policial. Seu trabalho é impregnado de brumas, de morte e mentes transtornadas nas quais ficção e realidade se confundem em tramas engenhosas. Sua vida e morte não foram diferentes.

Dizem que todo crítico literário é um escritor incompetente. Poe, inspirado crítico, desmontou a tese. Tornou-se escritor de primeira grandeza.

Não teve o mesmo sucesso quando tentou viver apenas de sua escrita. Amargou as dores da pobreza e teve uma das mortes mais misteriosas da história da literatura.

Em 3 de outubro de 1849, o escritor foi encontrado sujo, vagando delirante pelas ruas de Baltimore, usando roupas que não eram suas e “em grande angústia”, de acordo com Joseph Walker, que o encontrou. Foi levado para o Washington Medical College, onde morreu no domingo, 7 de outubro. Não ficou consciente tempo suficiente para explicar como chegou àquela condição degradante. As lendas em torno de sua morte afirmam que ele chamou repetidamente o nome “Reynolds” na noite anterior à sua morte, embora não se saiba a quem ele estava se referindo.

Algumas fontes citam suas palavras finais: “Lord help my poor soul” (Senhor, ajude minha pobre alma).

A causa real de sua morte continua sendo um mistério. Todos os registros médicos de Poe foram perdidos, incluindo sua certidão de óbito. Final doloroso de uma vida na qual não faltaram perdas e dores lancinantes.

Os jornais da época atribuíram a morte de Poe a “congestão cerebral” ou “inflamação cerebral”, mas estes eram eufemismos comuns para mortes que tinham causas mal vistas na sociedade, como o alcoolismo. As especulações incluem delirium tremens, doenças cardíacas, epilepsia, sífilis, meningite, cólera e raiva.

Imediatamente após a morte de Poe, iniciou-se uma sequência que parece saída de um de seus livros: uma história macabra entre um vivo e um morto. Seu rival literário, Rufus Wilmot Griswold, iniciou uma das mais terríveis campanhas difamatórias de que se tem notícia.

Começou por escrever um obituário destacado no New York Tribune. Assinava-o com o pseudônimo Ludwig. No texto, falsidades e calúnias apresentavam Poe como um lunático que “andava pelas ruas, louco e melancólico, com os lábios se movendo em maldições indistintas, ou com os olhos erguidos em orações fervorosas (nunca por si mesmo, pois sentiu ou pareceu sentir, que já estava condenado)”.

O parágrafo inicial do obituário anunciava o tom que permeou todo o texto: “Edgar Allan Poe está morto. Ele morreu em Baltimore anteontem. Este anúncio surpreenderá muitos, mas poucos sofrerão com isso.”

Uma obra-prima da vingança póstuma. Griswold, sim, merecia a má fama que injustamente atribuíram a Salieri em “Amadeus”.

O obituário cruel foi publicado no exato dia em que Poe foi sepultado. Logo foi reproduzido em todo o país. “Ludwig” rapidamente foi identificado como Griswold, editor, crítico e que guardava profundo rancor contra Poe desde 1842.

Griswold prosseguiu com sucesso a sua campanha difamatória contra o inimigo morto. Conseguiu convencer a sogra de Poe, Maria Clemm, a lhe vender os direitos das obras do genro. Sua obsessão em destruir a reputação do escritor incluiu publicar as obras de Poe em 1850, anexando a elas a uma biografia do escritor na qual narrou histórias de suas supostas embriaguez, imoralidade e instabilidade. Descreveu Poe como um louco depravado, bêbado e viciado em drogas.

Nenhum limite deixou de ser ultrapassado, nenhuma mentira intimidou Griswold, nenhum ultraje o fez hesitar. A escolha de Poe de não retornar à Universidade da Virgínia se tornou uma expulsão por comportamento selvagem e imprudente. A dispensa honrosa de Poe do Exército tornou-se deserção. A publicação de Tamerlane e outros poemas em 1827 foi descartada como mentira. Griswod chegou a acusar Poe de se envolver em segredos obscuros e chantagens; divulgou cartas falsificadas como evidência.

Ao elogiar os escritos de Poe e atacar sua personalidade, Griswold conseguiu parecer um admirador sincero, benfeitor da família do escritor. Em suma, assassinou seu inimigo no que tinha de mais caro: a reputação. E o fez dando a impressão que o respeitava.

Mais de uma vez, os amigos de Poe (John Neal, George Rex Graham, George W. Peck, James Wood Davidson, Henry B. Hirst, Charles Chauncey Burr e Sarah Helen Whitman) vieram em sua defesa, mas Griswold havia feito um trabalho consistente. Para cada publicação que lhe condenava a infâmia, três repetiam suas difamatórias afirmações. Suas alegações somente um século depois foram desmascaradas ou tratadas como meias-verdades distorcidas. Era tarde: o livro de Griswold tornara-se uma fonte biográfica popularmente aceita. Em parte porque era a única biografia do escritor, mas também porque os leitores ficaram seduzidos pela ideia de ler “obras de um homem perverso”. Ah, a humanidade e suas loucuras.

Em 1852, Griswold preparou outro artigo biográfico sobre Poe, que foi novamente amplamente reproduzido.

Embora Griswold tenha morrido em 1857, seu livro permaneceu a única biografia de Poe até 1875. Após 25 anos, sua apresentação de Poe havia se enraizado profundamente na consciência popular. Tudo o que suas acusações careciam de verdade foi compensado em repetição, uma vez que o escândalo e a morbidez seduz as almas mais dadas ao pensamento mágico.

Os amigos prosseguiram no combate às calúnias e muitos leitores sentiram a injustiça inerente ao relato de Griswold, mas foi em 1875 que surgiu um novo personagem, o inglês John Henry Ingram (1842-1916). Na inauguração de um monumento a Poe em Baltimore, a nova biografia recebeu muita atenção e iniciou a desconstrução da mentira de Griswold. Em 1880, com a ajuda dos amigos de Poe, Ingram produziu uma nova biografia em dois volumes, cuidadosamente pesquisada e documentada. Juntamente com as biografias mais breves de Eugene L. Didier (1877) e William Fearing Gill (1878), a reputação de Poe foi aos poucos restaurada.

Poe estava morto e difamado há 31 anos.

***

“Histórias Extraordinárias” (Tales of the Grotesque and Arabesque) e os poemas, com destaque para “O Corvo” (The Raven) são as leituras de hoje. Em português há várias traduções de “O Corvo”. Eu prefiro a do genial Fernando Pessoa. Faz par perfeito com as ilustrações de Gustave Doré.

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3 comentários em “Um Salieri da Vida Real – o embate Poe X Griswold – Artigo (Sonia Zaghetto)

  1. Angelo Rodrigues
    8 de fevereiro de 2020

    Curioso e estranho a um só tempo.
    Há um relato de Walt Whitman, em seu livro “Dias Exemplares”, que fala como era Poe nos anos 1845 / 1846, cerca de três / quatro anos antes de sua morte: um homem absolutamente normal, como segue a seguir, longe da imagem construída por Wilmot:

    “Também me lembro de ver Edgar Allan Poe e de ter conversado com ele brevemente (deve ter sido entre 1845 e 1846) em seu escritório, no segundo andar de um prédio de esquina (Duane ou Pearl Street). Ele era editor e proprietário, total ou parcial, do The Broadway Jornal. A conversa foi sobre um escrito meu que ele tinha publicado. Poe era bastante cordial, de uma forma tranquila, parecia bem pessoalmente, em suas roupas etc. Tenho uma lembrança clara e agradável de sua aparência, voz, modos e conversa; muito gentil e humano, mas reprimido, um tanto cansado.”

    Poe não era um homem desconhecido, tinha relações amplas com pessoas influentes, o que torna bastante estranho saber que pessoas tais como Walt Whitman não se tenham levantado imediatamente contra Wilmot e seu discurso difamatório contra Poe, e tanto tempo se tenha levado para restaurar a sua posição na literatura.

    • Angelo Rodrigues
      8 de fevereiro de 2020

      “… como segue a seguir…”;
      “…como segue abaixo…”

  2. Rsollberg
    8 de fevereiro de 2020

    Belíssimo artigo de uma história fantástica!

    Ainda tem o lance do Edgar ser o assassino de Mary Rogers e ter detalhado o crime em o Mistério de Marie Roget. Sei que ele chegou a ser suspeito investigado pela policia a época. Depois foi inocentado. Será que esse Griswold já estava agindo?!!

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Publicado às 7 de fevereiro de 2020 por em Artigos e marcado , , .
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