O barulho da campainha me tirou da cama. Caminhei. Pisando errado, dominado pelo medo. Quem seria? Passei pelo cachorro que, como eu, de vivo já não tinha nada, um enfeite aos pés da cama. Com esforço consegui passar pela sala, espiei pelo olho mágico. Era meu amigo! Meu amigo que eu já não via há muitos anos. Entrei em pavor. O que ele queria? Como teria meu endereço? Poderia ser uma dívida, eu não tinha dinheiro agora. Pior, poderia querer entrar, sentar no meu sofá, bater papo. Há anos não consigo olhar as pessoas. Emoções me assustam.
E meu amigo ali. Uma esfinge querendo me devorar. Com certeza ele sabia que eu estava observando-o. Lembro-me. Tempos da escola. Era baixo e magro, tagarela, conhecia muitas pessoas, rapazes e garotas. Não me lembro o nome dele, engraçado. Falava das garotas, das que queria levar pra cama e das que eram impossíveis, dos professores chatos e dos colegas que odiava. Mas… O que mais me recordo era dos pesadelos que me contava.
Não entendo como uma pessoa tão alegre tinha pesadelos daquele. Vira e mexe sonhava com grandes pombas de rua. Voavam pelo campo… Iam buscar recém nascidos sujos, jogados num chiqueiro. Carregavam, jogavam numa montanha formada por bebês mortos. Era um sonho recorrente, ele contava. Meu amigo namorava uma garota, Márcia. O nome dela eu lembro. Bonita, ruiva, de olhos verdes e simpática. Era muito apaixonada, estavam sempre de mãos dadas. Já meu amigo não era tão ligado nela.
– Aquela chata é ciumenta demais, não para de pegar no meu pé, todo sábado ela quer que eu vá na casa visitar os pais dela.
Depois de muito tempo eles romperam. Ela estava grávida, tinha abortado… Acho que eram só boatos, as pessoas inventam histórias. Nunca mais vi Márcia. Meu amigo não demorou, já estava com outra.
Anos depois encontrei Márcia na rua. Conversamos. Disse que trabalhava como professora de Geografia. Conversa vai, vem. Falei.
– E o *** (não me lembro o nome), lembra dele?
Sua fisionomia mudou, lábios apertaram-se, o olhar desviou. Disse que não tinha visto, não lembrava muito, não. Mudou de assunto, despediu-se, foi embora.
E agora estava o meu amigo aqui diante da minha porta. Juntei coragem, respirei fundo, não queria que ele percebesse que eu era um doente, anti-social… Abri a porta. Lá estava o meu amigo, praticamente a mesma coisa. Agora ostentava um cavanhaque, usava óculos. A camiseta azul com estampa de prancha de surf, um pouco amassada. Convidei a entrar, não fugi à regra. Apertou minha mão, foi sentando no sofá. Começou a falar. Era garçom, imagine! Sempre pensei que fosse tornar-se algo grande… Garçom! Me contou das mulheres com quem havia se envolvido, uma a uma, fazendo um esboço de como eram, meu amigo adorava falar em mulheres. Perguntei se queria bebida. “Coca-cola ou água?” Riu, perguntou se não tinha uma bebida de homem. “Não posso misturar álcool aos meus remédios”.
Falou dos pais que tinham morrido, do Cássio, um amigo que havia se casado e agora morava nos Estados Unidos. Depois de uns minutos conversando, levantou-se, precisava voltar pra casa. Logo começaria o turno em outro restaurante. Antes de ir embora, me deu seu endereço, a mesma casa dos tempos da escola.
A semana passou. Tive consulta com meu terapeuta. “Seria muito bom ir visitar seu amigo”. Segui o conselho a duras penas. Passei por pessoas, tive até que enfrentar um ônibus. Cheguei à casa dele. Bem humilde, pintura descascando. Toquei a campainha torcendo pra não estar. “Pelo menos tentei, ele que não estava em casa…” Mas ele veio. Me convidou a entrar. A sala não tinha muitas coisas, um sofá gasto, uma tevê antiga, alguns livros velhos. Perguntou se eu queria beber algo. Falou do serviço, mulheres, mulheres. Enfim, não tinha mudado. Lhe disse que tinha encontrado a Márcia tempo atrás. Meu amigo ficou interessado. Caí na besteira de comentar.
– Vo-vocês tiveram algum pro-problema bem grande, não?
– Pra ela foi um problema, pra mim não.
Seus pesadelos. Me contou. Esses pesadelos continuaram por tempo, sempre parecidos. Um dia teve um sonho mais nítido. Estava naquele lugar imenso, andava pela montanha formada por recém-nascidos. Havia moscas entre os bebês, por todo lado, carne e mosca. Andou e andou naquele cenário. Se deparou com um homem bem arrumado que lhe perguntou se queria ajuda. Disse que precisava sair daquele lugar, e rápido. Descendo a montanha, se depararam com um campo verdejante onde havia uma casa. Dessas de fazenda, colonial, muitos empregados, todos idosos, arrumando e carregando pratos pra cá e pra lá. O homem arrumado disse:
– Vou levá-lo para conhecer meu patrão, queira vir por aqui.
Subiram um lance de degraus, abriram uma porta e… Que surpresa! Pratos. Com pernas, cabeças, dedinhos, sangue, muito sangue. Tudo de bebês. Crianças. Fetos. Uma mosca gigante! Cerca de dois metros, um caninho saindo da boca. Ela se alimentava da carne que estava ali. A grande mosca parou de comer, ficou imóvel. Esfregou bem as patas dianteiras fazendo um ruído áspero: SHHHP! SHHHHP!
– Quero lhe apresentar o meu senhor, dono destas terras: Belzebu – disse o homem arrumado. – O que o meu senhor pode fazer por você?
– Que-quero ir embora!
– Ir pra onde? Não gosta daqui?
– Aqui não tem mulheres. É horrível.
– Meu senhor, Belzebu, vai lhe ensinar algo… Melhor do que mulher.
A mosca voou até o ouvido dele, chiou alguma coisa.
Meu amigo parece ter dormido por meses… Quando acordou, não se recordava de nada. Ligou pra Márcia, que lhe disse que nunca mais voltasse. “Sujo, depravado, monstro!”.
Me disse do sabor agridoce da carne preparada, um grande mestre-cuca, dedinhos na frigideira, molho, alho… Tudo.
– É muito gostoso. Foi receita do próprio Belzebu!
Meu amigo era maluco. Saí daquele lugar imaginando bebês escondidos ali. “Então não sou a única pessoa doente, meu amigo também é um anormal”. O caminho pra casa foi difícil. Sempre tem um sujeitinho fazendo churrasco de rua. Comprei um. Ao chegar em casa, sentei no sofá e imaginei. “Como seria o gosto da carne de um bebê?”
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